“Eu me chamo Nadja porque em russo é o começo da palavra esperança, e também porque não é nada senão o começo”
Nadja, André Breton
“I travelled far and wide throguh many different times,
What did you see there?”
Wilderness, Joy Division
Uma Rapariga no Verão (1986) é um filme flâneur, e a lógica fenomenológica do desperdício do flâneur se encontra presente de forma sistemática em seus raccords frouxos ou “casuais”, suas ações que começam mas não prometem terminar – ou que terminam subitamente -, suas deambulações a esmo (pela sequência, como “planos sequência”; ou de plano a plano), seus diálogos espaçados pela própria instabilidade econômica do corpo do filme, container de devires deficitários e influxos interrompidos, de palavras furtivas e gestos inacabados. O desperdício flâneur de um filme como o de Vítor Gonçalves assinala uma experiência do Mundo como totalidade inapreensível pela experiência finita dos personagens: sempre há de “sobrar” alguma coisa, sempre um ponto cego na pupila, sempre um impossível plus pairando no ar de Abril, e o filme é o processo tentativa-erro (justamente: um experimento) de apreensão destes dejetos da experiência que , mais do que ‘minha’, é nossa; Isabel, a protagonista, é antes de tudo um go-between, fio-condutor afetivo entre personagens e decores que no entanto, em uma insolência de flâneurs impenitentes, insistem em permanecer desconectados: uma vida passageira. E o Mundo por onde circulam “sem nele aderir” não é, evidentemente, aquela totalidade categorial que a metafísica deduziu da adequatio, mas a vida presente de homens presentes (lado documentário, rough cut do filme) nesta década perdida dos 80 em que os adolescentes foram finalmente cooptados pelo cinema, retratados como entidades bulímicas à mercê de um Eros consumista; sim, mas e o fantasma? o déficit atrabiliário que espreita sob cada superavitária quota de satisfação gregária, e talvez se constitua em sua secreta part maudite, a fonte “em negro”de seu gozo? Filmes graves e desconectados como Uma Rapariga no Verão nos oferecem finalmente a chance de conhecer o fundo medusino, o fora de campo ominoso que presidem, secreta e decisivamente, às chanchadas adolescentes bulímicas da década de 80: onde o Pai, onde a culpa, onde o ennui de vivre? aqui, nos encontraremos todos nós.
Às festas alcoolizadas, às orgias improvisadas, ao “La TV c’est le direct” (Narboni) de tantos filmes contemporâneos seus, Uma Rapariga no Verão nos oferta um “diário íntimo” de instantâneos que são como o révelateur em negativo do cinema adolescente dos 80; derivas e digressões deixadas de lado ali reemergem aqui como uma espécie de refoulé do barbitúrico: Portugal, a alteridade da alteridade, o dia seguinte do sonho americano bulímico. O que acontece na ressaca da manhã seguinte, quando o álcool rarefez-se e os colegas voltaram para seus containers de subúrbio? A depressão “pelo dia seguinte” é o tema secreto de Uma Rapariga no Verão; o que fazer quando precisamos continuar a trabalhar, a amar, a residir e a nos mover, mesmo e sobretudo quando tudo perdeu o sentido e as coordenadas do drama agora definem, não mais uma reta teleologicamente orientada (alternativa clássica: paranóia) mas uma tangente desregulada pelo tédio, a abulia, a tabula rasa do passado passado (a mãe defunta, o pai está morrendo à porta) e um futuro in extremis? Portugal, país muito antigo e muito pequeno, é este promontório outsider da distância do qual podemos avistar este outro cinema (dito majoritário) e ver com translucidez dolorida que o realismo pertence de direito àqueles que se equilibram precariamente entre as bordas, àqueles que sabem que se morre a cada minuto, dado que viver implica sempre a necessidade imperiosa de escolher um possível para ser atual, e aí fere-se de morte nosso ser livre: sim, Uma Rapariga no Verão existe apenas neste intervalo entre tantos futuros à nossa volta e à nossa mão e à impossibilidade de escolhê-lo, de lhe dar uma carne, um destino, de presentificá-lo em uma ação. Isabel sabe que tem um vasto leque de escolhas para fazer, para realizar-se, mas escolhe não escolher, já que é jovem e tem futuro (ou pensa que tem; mas logo o círculo se fechará progressivamente): casar-se com Digo, ajudar o pai nos programas de rádio, ser amada e ensinada (alguém lembra em certo momento; talvez domada seja o que queiram dizer). Quando somos jovens e temos ofertas, geralmente nos perdemos de tanto dom, e escolhemos não escolher: antes, somos escolhidos. É o que Isabel deseja: ser escolhida. A via mística lhe é interdita porque, afinal, estamos numa década “perdida”, ersatz crepuscular para as crenças entusiastas dos anos 60 e as crenças niilistas dos 70; é um marasmo, uma neblina, uma água morna e moribunda o mundo em que vivem. Então, ficamos com o intervalo, o interstício, o meio do caminho: enquanto não é escolhida, Isabel percorre como flâneur o mundo, e o seu flerte, casual mas idiossincrático, com aquilo que a percorre nos oferece um universo impressionado por um pathos de spleen: noites autômatas de beat punk nas boates, namoro casmurro com Diogo, incompreensão muda de patético recalcado entre Isabel e o pai, que certamente existe mais à vontade na companhia de Diogo.
Se nos filmes americanos fetichistas e bulímicos da adolescência, uma comunidade ainda é possível- mesmo que às custas do barbitúrico, do álcool e das simulações masturbatórias – aqui sabemos de antemão que estamos destinados ao entre-deux –, não escolher nem a ser escolhido, mas à deriva da sala de espera; Isabel prefere deixar o mundo falar, e esperar sua vez de entrar em cena: daí a digressão como infra-estrutura da percepção, daí a quase-vidência dos instantes zumbi na boate, sobre a relva, no quarto-, daí esses momentos que parecem só existir para serem curtidos e esquecidos; nada está acabado, nada está dado, estamos sempre à escuta e à espreita, porque somos muito jovens e podemos nos dar ao luxo de observar, julgar e finalmente admirar o mundo. Mas Uma Rapariga no Verão se limita a estes três exercícios de distanciamento: estacar diante de e fruir da visão. O filme não aprofunda nada, pois a sua démarche é anti-carnívora por excelência: ficamos sempre no limiar da experiência, óticos e jamais hápticos, esperando o mundo passar.
No filme, a mãe está morta e o pai está morrendo, e este é o entre-deux geracional decisivo para a experiência perceptiva de extravio do mundo/no mundo: nada mais está garantido, pois o passado como o futuro foram obrigados a estacar em um presente que jamais será intransitivo, que sempre marcha para diante: quase lá, nunca mais, ainda não; estas são as locuções adverbiais possíveis para alguém que não pode ser senão um estrangeiro diante do mundo e um exilado dentro de seu corpo. O mundo simplesmente passa (e passará), e nos arrasta em sua centrífuga viagem para a outra margem: Isabel está sempre em movimento, e mesmo parada seus olhos entrefechados devem sonhar províncias para um espírito nômade. A ausência de referências, de marcos, de “fundamento” (em resumo: a ausência tout court ou a presença esmaecida dos Pais) torna o filme de Gonçalves escorregadio e ziguezagueante, e nisso conterrâneo espiritual dos exercícios de Antonioni sobre a alienação da burguesia milanesa dos 60 , pelo menos em matéria de démarche de base: mas como comparar aqueles elefantes termitas onde a plástica sufoca o afeto para imprimir “à força” sobre as coisas e os homens um efeito de signature a este pequeno “caderno de rascunho” impressionista, onde nos reconhecemos instantaneamente (força fundadora do instantâneo como suporte da impressão), onde finalmente somos presentes, mesmo que de forma fugaz, incerta, aleatória até certo ponto – e não é este o nosso destino de modernos? o inacabamento, o fragmentário, o casual?
Vítor Gonçalves nos oferece a oportunidade de contemplar uma geração perdida (lado descritivo do filme): estamos sempre nos calcanhares de seus extravios, de suas rotas de fuga e atalhos, demasiado próximos nesta câmera fixamente fascinada com a possibilidade de se mexer quando tudo os condenava à imobilidade do establishment burguês; mas também é generoso o suficiente para nos dar a sensação de que poderíamos estar lá com eles (lado propriamente impressionista), ao escolher decores e enfatizar gestos que a rigor são fantasmáticos -olhares e gestos evasivos, decores sorumbáticos e vacantes-, e portanto podem ser reapropriados pela consciência do espectador, interiorizados em mim. Daney dizia de Le départ que este era um filme em que, se a câmera está muito próxima, temos um slapstick, se muito distante uma comédia dramática, etc. Algo semelhante sucede aqui: ora, quando médios, estamos próximos a uma “tragédia existencial de câmara”- perdidos como eles, impossibilitados de conjugar sem pudor o pronome Eu-, ora quando mais distantes e “planos sequência”, somos os juízes da causa, aqueles que observam valorando; então, temos um coté épique de tudo: quase painel materialista ou transcendentalista – o que sustenta esta experiência geracional do mundo, o que os leva a ver como vêem?-, perspectiva facilitada pelo fato diegético de que a ação raramente chega, a rota é sempre de fuga e o presente um temerário ponto de vista sobre a maré montante, que vai finalmente ser soterrado por ela. Uma Rapariga no Verão se encerra com a provável morte do pai (a quem não vemos na cama, pois finalmente Isabel ocupa o front direito do plano, quase na sarjeta do mesmo como estivera na sarjeta perceptiva da vida registrada até então, sempre aquém ou além, no interstício entre a espera e o queixume: Never more!). Mas esta também está condenada a desaparecer, como acontece no plano seguinte e final, figurativamente cingida pela noite e pela vista-canyon do plano geral. O que restará de nós? “De nous Il fault que quelque chose reste, André”, sussurra a esquizo Nadja a Breton. Restou-nos esta hora e meia de detritos, de estilhaços, de evasão e de exílio também, mas pensemos como Pangloss: diante do mundo fugidio e do futuro en sursis, podemos festejar a volta para casa.