27 de Abril de 2014, 04:30, um bar noturno algures em Berlim. Ao som da house minimal de DJ Koze, uma câmara avança pelo meio da populaça dançante, transfigurada em meras figuras decorativas e desfocadas, perdidas nas luzes strobe. Parece procurar um rosto, que se materializará pouco depois. É Victoria (2015), em completo abandono hedonista, mas sem perder a oportunidade de ajeitar o cabelo. Àquela hora já as padarias estão a fumegar e prontas para encher sacas de pão, mas a sua noite ainda agora começou. Ser rejeitada por um barman e beber um shot marca o pontapé de saída.
Surge um grupo de mânfios, auto-intitulados “os verdadeiros berlinenses”. Convidam Victoria para andar por aí, iniciando as actividades logo com patifarias. A nossa sensibilidade pérfida começa logo a dar de si, convidando a menina a ir para casa para evitar qualquer remake do Straw Dogs (Cães de Palha, 1971). Mas tão solitária é a jovem que nem nos ouve, preferindo continuar a seguir o maralhal (aparentemente) pouco aconselhável. Só ao fim de uns quarenta minutos, quando Victoria (Laia Costa) e Sonne (Frederick Lau) se encontram, por fim, sozinhos, é que a nossa preocupação se desvanece, fazendo-nos pensar que tudo até ali não tinha sido mais do que “the timeless art of seduction”. Que alívio.
Como um verdadeiro artista de Las Vegas, Sebastian Shipper sabe que é no cume da sua arte que se deve parar as agulhas e sair em glória, ou pelo menos mudar o repertório. Na, provavelmente, melhor cena do filme, passada num café, Sonne e Victoria elevam os níveis de sedução a um notável destrambelhamento. Piadinhas, enganos, ele um falsário de primeira, ela cúmplice das suas pequenas mentiras, e já vemos no horizonte o resultado palpável de todas estas estratégias de aproximação. Que os diálogos sejam produto da improvisação e que ela se encontre bem visível, ainda torna a cena mais “saborosa”, como diria o Manny Farber dos nossos dias, Sérgio Santos de seu nome. Se juntarmos o inglês-menos-que-perfeito do alemão e da espanhola, então está encontrada a cereja no bolo neste episódio. Por outro lado, começamos a pensar o que fará Schipper a partir deste ponto, e para onde levará estas duas almas (para a cama?), já que se começam a tornar visíveis os limites desta versão berlinense de um Linklater. Felizmente, tal como o artista de Vegas, Schipper, antes de esgotar as suas ferramentas de atracção, coloca um telefonema no argumento que fará Victoria mudar completamente de engrenagem.
Não é preciso muito tempo dentro do filme para a “proeza” do realizador se começar a tornar invisível, e se há efeitos de ostentação em Victoria, um deles não será certamente o tal “plano único”.
E agora pergunta-se: e não se escreve nada sobre o “filme de um único plano?” É já agora, senhores. Vamos lá a ver: a importância do plano-sequência de 138 minutos de Victoria não estará, parece-nos, no número tecnológico em si, que tanto poderá surtir reacções negativas da ala raquítica da cinefilia (Mamã! A moviola! Roubaram-na!), como de deslumbramento da ala “modernaça”, que fará da obra de Schipper a última coca-cola no deserto em termos de inovação (inexistente, diga-se) de linguagem cinematográfica. Não é preciso muito tempo dentro do filme para a “proeza” do realizador se começar a tornar invisível, e se há efeitos de ostentação em Victoria, um deles não será certamente o tal “plano único”. É um dos méritos de Sebastian, evidenciar de início a técnica para depois a apagar; é um filme de pessoas, não de máquinas a desbravar novos caminhos. O outro, bem mais significativo, é o de dilatar e tornar omnipresente a noção de acção em tempo real, que seria um bocadinho subtraída se a moviola entrasse em campo, por menos cortes que existissem. E, se queremos dourar a pílula, admire-se também o engenho “exterior” ao filme, aquele realizado em pré-produção e durante a rodagem, que deve ter envolvido um timing de precisão paredes meias com a perfeição.
Já sem pensarmos no dito plano, lá vamos nós com Victoria, Sonne e restante juventude inquieta. A tal mudança de engrenagem transforma o filme em algo que se poderia resumir assim: uma rapariga, uns rapazes, umas armas, e uns polícias, empacotados num ritmo de thriller urbano que está sempre a procurar soluções para manipular o espectador, como bem mandam as regras, acrescente-se. Estamos longe do Harold Lloyd, do Keaton ou do Chaplin (Bandido! A meter esses senhores por aqui!), mas os simples e eficazes princípios serão os mesmos: escapar da bófia. Além disso, é esta “segunda parte” que dará outra ressonância e perspectiva às relações estabelecidas pré-telefonema.
Victoria não é nem “um dos melhores filmes da década”, como já lemos ao roliço por aí (esta juventude…), nem se reduz ao mero número de circo na era das leves e portáteis câmaras digitais. Tem os seus problemas, como a “poesia” deslocada em algumas cenas, o excessivo uso de música noutras, a implausibilidade delirante a pairar sobre toda a trama (a maior das quais é a Laia Costa estar há três meses em Berlim e ainda não conhecer ninguém) ou a improvisação dos actores que torna, por vezes, as suas interacções repetitivas. Mas quando tudo termina por volta das 7:00 numa avenida deserta em Berlim, já com a luz do dia bem presente, e com o pão já prontinho nas lojas, o cansaço cúmplice com esta gente que vimos é tão grande que tudo isso é remetido e ignorado para o nosso lado cínico. Sim, sim, Sokurov, Hitchcock, Tarr, blah blah.