O texto seguinte foi produzido por Raquel Morais, uma das participantes do Workshop Crítica de Cinema realizado durante o Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este Workshop foi formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que foram publicados, periodicamente, na página do Público, no blogue do Curtas Vila do Conde, na revista A Cuarta Parede e no site À Pala de Wlash.

…de su boca escuchamos que toda obra parcial es también historia, que algo tan inmenso como la invención de la imprenta había nacido del más individual y parcelado de los deseos, el de repetir y perpetuar un nombre de mujer.
Em 1980, o escritor argentino Julio Cortázar publicou uma colectânea de contos intitulada Queremos tanto a Glenda. A história que dá nome ao conjunto pode ser descrita, por meio de uma redutora paráfrase, nos seguintes termos: o narrador faz parte de um grupo de devotos admiradores da actriz Glenda Garson (uma referência desviada à britânica Glenda Jackson). O clã, desconsolado com algumas aparições menos fulgurantes da actriz, infelicidade que atribuem quase exclusivamente aos realizadores, entrega-se à missão de aperfeiçoar Glenda.
Aperfeiçoá-la significa reunir, graças aos recursos e contactos de Irazusta, glendiano e antigo sócio de Howard Hughes no negócio mineiro, cópias dos filmes em que a actriz surge, editá-las num laboratório a que só os adoradores mais fiéis têm acesso, e devolvê-las à circulação em cópias remontadas. Cortando “sequências menos felizes”, erros injustificáveis, finais acidentados, o núcleo cria versões depuradas dos filmes, versões que façam a devida justiça ao ideal de Glenda – uma imagem compósita, porque comunitariamente, e não sem algumas disputas, definida.
A actividade colectiva de corte e costura a que as personagens de Cortázar se dedicam no seu laboratório antecipa, “before it was cool”, o cinema à la Mark Rappaport, e o “one-man show”, proporcionado pelos avanços do digital, do realizador norte-americano. Este, entretido até ao final da década de 70 com ficções mais tradicionais, tornou-se, nos anos 90, o pioneiro de um certo tipo de vídeo-ensaio, aquilo a que chama “the fictitious autobiography”. Com Rock Hudson’s Home Movies (1992), Rappaport inicia uma série de biografias, onde se incluem as de Hudson, Jean Seberg, Anita Ekberg, Marco Dalio e Debra Paget. Nestes filmes, um uso positivamente arejado de found footage é comentado pela voz de um actor que traz de novo à vida a estrela retratada.
É assim no caso de Debra Paget, for example (2016), o último filme do realizador e um dos que integrou a secção “Ensaios Audiovisuais” da 24ª edição do Curtas Vila do Conde. Este centra-se, à semelhança do conto de Cortázar, numa figura feminina e, mais do que a eleição de uma estrela (por si só, um gesto trivial), importa que ambos dependam fortemente de uma ideia de ficcionalização – e, sobretudo, de uma primazia dessa ficcionalização sobre a realidade.
No conto de Cortázar, ao acabar de remontar os filmes de Glenda, o clã dá-se conta de que a actriz decidira recentemente retirar-se das telas e dos palcos. Esse afastamento tem a virtude de, aos olhos deste grupo de pigmaliões, legitimar a sua actividade criadora, que culmina numa significativa “felicidade do sétimo dia”. Os glendianos não estão minimamente interessados em conhecer a mulher que dá corpo à imagem que amam. Ela é, inclusivamente, um obstáculo a uma divulgação consistente dessa imagem ideal, como o seu inesperado regresso à actividade e o contundente desfecho a que este conduz revelam. A saída de cena de Glenda não apenas garantia não haver novos filmes a refazer, mas, mais importante do que isso, representava o desaparecimento da mulher de carne e osso em beneficio do fortalecimento da sua imagem.
Dentro desta mesma lógica, os filmes-biografia de Rappaport operam a cristalização de uma figura que não tem qualquer espécie de verosimilhança – nem tão pouco é essa a pretensão do realizador, que reiterou diversas vezes o seu desinteresse em saber como seria, por exemplo, Jean Seberg ou, a propósito de um documentário sobre Nico, quão aborrecido poder ser conhecer uma pessoa “na realidade”. Não obstante as incursões incluídas nos seus filmes pela vida real de Paget ou Hudson, o que Rappaport está a fazer não são verdadeiramente as biografias de Paget ou de Hudson, mas antes um super-cut do conjunto de personagens que cada um deles interpretou durante as suas carreiras. A maioria dos fãs e dos espectadores toma demasiado a sério a coincidência de um nome. Bastará, para entender isso, lembrar a história da estrela que, no filme, Paget mais inveja: Marilyn Monroe. Nesse caso, o abismo existente entre uma mulher e a sua imagem é instanciado pela diferença de designação: Norma Jeane sai vencida da sua luta com Marilyn Monroe.
A julgar pela escolha de outros actores para interpretar as estrelas biografadas, como aberrantes bonecos de papelão, o que evidencia uma espécie de deflacção da importância do corpo da verdadeira Seberg ou do verdadeiro Hudson, talvez, caso tivesse essa possibilidade, Rappaport não escolhesse Debra Paget para “fazer de Debra Paget”. Muito poucas vezes a proximidade do actor à sua imagem é tão real quanto se pensa e raros são os casos em que ele efectivamente faz jus à série improvável de vidas que animou.
Os filmes de Rappaport destacam essa décalage: Rock Hudson’s Home Movies sublinha o abismo que existe entre aquilo que Hudson seria e aquilo pelo qual as pessoas o tomavam. O lado sedutor do trabalho de Rappaport é o facto de o comentário dessa cisão ser exclusivamente feito através de imagens. Debra Paget, for example mostra-nos um nome de modo absolutamente material: “Debra Paget” é uma espécie de metáfora para um conjunto de personagens e das cenas onde elas surgem.
A secreta subversão através da qual os adoradores de Glenda criam e disseminam activamente um ideal é similar ao esforço de persuasão inerente aos vídeo-ensaios de Rappaport (vale a pena relembrar a acepção da palavra persuasão enquanto “crença”, já que efectivamente tanto os filmes quanto o conto consubstanciam a vitalidade de uma devoção).
Quando Rappaport fala do seu trabalho como uma forma de arqueologia, importa perceber que, não obstante o inegável valor histórico e político destes filmes (ele não apenas recupera algumas figuras menos centrais da história do cinema, como evidencia também mecanismos próprios da indústria cinematográfica), não é esse o seu lado mais singular. A maior preciosidade desta obra é o facto de surgir como a reconstituição de um imaginário – o do próprio Rappaport, mas simultaneamente, de toda uma geração. E o grau de verdade do imaginário de alguém será, para qualquer indivíduo de bom senso, absolutamente irrelevante.
As cópias criadas pelos admiradores de Glenda deixam de ser, a certa altura, reconhecíveis como cópias adulteradas – são poucos os espectadores que identificam e denunciam uma estranha sequência ou um corte que não existia da última vez que viram o filme – transformando-se assim, por um processo curioso, nas cópias autênticas, tal como os quadros pintados por um exímio falsificador de arte podem não apenas ser tomados por originais, mas até por algo melhor do que os originais.
A veracidade e a objectividade são frequentemente alardeadas como uma espécie de valores supremos. Talvez o perigo desses valores seja um esquecimento das virtudes do que é particular. O que os membros do aguerrido grupo querem perpetuar é um objecto privado (e por isso valioso) – uma ideia de Glenda que, antes dos dias de laboratório, só existia na sua imaginação. À semelhança de Rappaport, são depositários de uma arrogância (própria da paixão) que, por ser frutuosa, se auto-justifica plenamente. Nenhum acto apaixonado – nem as joviais biografias do norte-americano, nem a dramática posição final do culto glendiano – pode depender de uma ideia de objectividade. Só se pode abraçar uma acção inteiramente quando se está convicto de que essa é, não apenas a melhor, mas a única coisa que vale a pena fazer.
A devoção que o conto de Cortázar retrata e, em certa medida, as biografias de Rappaport são talvez uma forma grave de delírio, como os admiradores de Glenda aliás receiam – “se preguntaban si no estaríamos entregándonos a una galería de espejos onanistas, a esculpir insensatamente una locura barroca en un colmillo de marfil o en un grano de arroz”.
Mas dar forma à mulher que povoa o imaginário de alguém é talvez a única forma de fazer sobreviver esse imaginário, e de, aliás, fazer nascer outras coisas. Pensemos, por exemplo, que o surrealista Joseph Cornell se tornou um dos pais do vídeo-ensaio por causa do desejo de fixar, em Rose Hobart (1936), a imagem de uma actriz mais ou menos esquecida; outro dos filmes que integraram a panorâmica dedicada aos ensaios audiovisuais, Film of Her (1996), de Bill Morrison, recupera igualmente a história de um homem movido pelo fascínio por uma mulher: Kemp Niver, anónimo funcionário da Library of Congress, cujo esforço de preservação da “Paper Print Collection” se confunde com a juvenil paixão por uma actriz que vira numa série de projecções na sua cidade natal. Como lembra Cortázar, certas obsessões têm, por vezes, uma inesperada fertilidade.