Quem já foi, sabe-o: Doc’s Kingdom é diferente de todas as mostras, programas e festivais de cinema que existem em Portugal. Ao longo de cinco dias de submersão numa povoação isolada, o mesmo grupo reúne-se em seminário em torno dos mesmos filmes. O cinema acontece em conjunto de manhã à noite, em experiências afectivas para sempre guardar. Portugueses e estrangeiros, reputados e anónimos, novos e velhos: aqui, a palavra é de todos, igualmente. As inscrições são limitadas a 100 pessoas, mediante pré-reserva e, para este ano, acabaram de abrir. Partilhamos notas e recortes da nossa experiência na edição anterior, desde 2015 plantada nos verdes dos Arcos de Valdevez, e antecipamos a edição que se inicia já no próximo mês de Setembro.
- Doc’s Kingdom: isto não é um festival.
O Doc’s Kingdom é um Seminário Internacional de Cinema Documental. Isto não é um festival – sublinha-se – isto é o contrário de um festival. Aqui os títulos não se opõem em secções competitivas e não há prémios. Aqui tudo se orienta por um princípio de convergência: não só se programam filmes que fazem sentido juntos em torno de um tema geral, como se reúnem à mesma mesa os seus autores, espectadores, críticos e programadores. A paisagem é também uma destacada protagonista, sendo a localização variável do seminário correspondente ao tema que enquadra uma discussão multiforme, alicerçada no alinhamento dos vários trabalhos. Ao longo de cinco dias, este seminário reúne um grupo de até 100 pessoas que, de manhã à noite, assistem aos mesmos filmes e, no final de cada dia, se encontram para discutir sobre eles. Em círculo se sentam estudantes, professores, cinéfilos, realizadores, programadores, críticos, académicos, artistas e curiosos. As distâncias encurtam-se à medida que a discussão avança entre os participantes das mais variadas áreas do cinema. A experiência de cada visionamento enriquece-se no interior das partilhas em voz própria. Trocam-se pontos de vista, testemunhos, experiências, em discussões que, para inclusão e compreensão de todos os participantes, são totalmente conduzidas em inglês. É o cinema que se vive, imersivamente, e os debates alargam-se em direcção aos jantares, aos intervalos e aos copos. É garantido que quem participa num Doc’s Kingdom não se esquecerá dele. E é precisamente a riqueza da experiência ainda tão viva de 2015 que aqui partilhamos ao detalhe, antecipando a prometedora edição de 2016, num horizonte já tão próximo.
Reconhecendo a bicefalia cultural do País, o Doc’s Kingdom valoriza permanentemente a necessidade da deslocalização geográfica, endereçando simultaneamente uma resposta ao sufoco dos programas impossíveis que sobrecarregam quantitativamente cada um dos festivais urbanos. Aqui, entra-se na sala escura pela porta do mistério. Não há mapas prévios de visionamento – o programa que se seguirá é, a cada dia, uma incógnita compartilhada.
Enfatiza-se o lado humano do cinema, feito de pessoas e para pessoas, e a convivência permanente transforma esta reunião numa experiência unificadora, onde verdadeiramente se alicerçam contactos para a vida. Contornam-se os olhos mirrados da cinefilia citadina, gastos em longas jornadas de sessões dentro do escuro e das multidões anónimas e, no Doc’s Kingdom, é tão importante o que se passa dentro como fora da sala. O número reduzido de participantes e a ausência de eventos paralelos, centra e direcciona a experiência colectiva.
- Doc’s Kingdom: a génese de uma homenagem a Robert Kramer
Do nome deste seminário deduz-se uma homenagem directa a um dos títulos de ficção da carreira de Robert Kramer, indispensável realizador americano cuja estreita relação com Portugal se traduziu em objectos vários – ficções, documentários, docuficções – que incluem incontornáveis registos de movimentos decisivos da História portuguesa do século XX. Doc’s Kingdom é uma ficção resultante de uma co-produção francesa, americana e portuguesa (Paulo Branco) que se passa em Lisboa e que envolve alguns actores portugueses, inesperadamente incluindo João César Monteiro num dos papéis principais. Um lance geral às migrações do próprio legado de Kramer, permanentemente cruzando o documentário e a ficção, podia servir para descrever o princípio contextualizador que orienta o seminário Doc’s Kingdom desde a sua génese. Irredutivelmente presente, é quase garantido que títulos de Robert Kramer sejam incluídos em cada programa anual. Na edição de 2015, revimos Route One USA e Dear Doc e, através de Wundkanal de Thomas Harlan, evocámos Notre Nazi. E não é verdade que todas as horas são oportunas para (re)ver um filme de Robert Kramer?
A organização do Doc’s Kingdom é da responsabilidade da APORDOC-Associação Portuguesa pelo Documentário e apresenta-se como um Seminário Internacional de Cinema Documental, mas remete-nos permanentemente para o múltiplo lugar onde ficção e documentário se interseccionam. Foi precisamente esta travessia de TODAS FRONTEIRAS / ALL THE FRONTEIRAS o movimento agregador do programa internacional desta edição. O itinerante seminário, que já aconteceu no Alentejo (Serpa) e nos Açores (Faial, Pico), dando seguimento ao âmbito deste seu tema geral, em 2015 deslocou-se até à fronteira norte, situando-se pela primeira vez nos Arcos de Valdevez. Deslocado dos grandes centros urbanos, o Doc’s Kingdom sempre fez da paisagem um elemento interveniente, contextual e em estreita relação com o programa. Assim, encostados à Galiza, assistimos a obras dos realizadores galegos Eloy Domínguez Serén e Iván Castiñeiras Gallego que problematizam, precisamente, este lugar tão politicamente carregado onde converge a História recente dos dois países que aí acabam e começam. Também marcaram presença as cineastas portuguesas Filipa César, Catarina Mourão, Salomé Lamas e Joana Pimenta, o brasileiro Adirley Queirós e o francês Eric Baudelaire e tivemos ainda o privilégio de compartilhar conversas com o crítico francês Jacques Lemière.
- 2015 = 15 anos de Doc’s Kingdom:
Mas as novidades da edição de 2015, não se esgotaram na resituação geográfica. Sucedendo a José Manuel Costa (actual director da Cinemateca Portuguesa), é o programador e cineasta Nuno Afonso Lisboa quem, a partir desta edição, toma as rédeas de um seminário fundado em 2000 e que foi já responsável por trazer a Portugal alguns dos nomes mais incríveis que por cá passaram: Frederick Wiseman, Abderrahmane Sissako, Jean-Claude Rosseau, Edgardo Cozarinsky, Hartmut Bitomsky, Ben Rivers, entre tantos outros. Este seminário sempre vincou uma identidade entre-artes que a própria programação reflecte: ao longo destes últimos 15 anos, testemunhámos migrações desde o documentário primitivo aos limites mais experimentais do cinema, integrando autores tão pouco vistos como Peter Nestler, Angela Ricci-Lucci, Yervant Gianikian, Leo Hurwitz, etc. E é claro que este desvio às programações tipificadas, por sua vez resgatando o cinema emergente, independente e encoberto é, também, um gesto político e um dos mais fortes argumentos a legitimar a existência imperativa do Doc’s Kingdom no panorama cultural internacional.
- Doc’s Kingdom 2015 : Todas as Fronteiras / All the frontiers
Se cada seminário propõe um tema agregador, este programa leva-nos a atravessar Todas as Fronteiras nos sentidos mais literais e mais figurados. Alguns destes filmes endereçam questões de natureza geopolítica, problematizando a forma como as fronteiras geográficas se traduzem em conflitos históricos entre países; outros filmes tratam das fronteiras entre raças, entre classes sociais, entre vítimas e agressores, entre quem filma e quem está a ser filmado, entre realidade e ficção, entre verdade e mentira, entre som e imagem, entre paz e violência. A multiplicidade de caminhos possíveis para discussão adianta-se na introdução que resume este abrangente programa dedicado a uma multifacetada ideia de fronteira: ‘‘A fronteira apresenta-se como um limite, como um obstáculo ou como uma passagem.’’
- A TOCA DO LOBO: Potência de um chamamento de Além
O Doc’s Kingdom dá-nos umas surpreendentes boas vindas com a projecção de um dos mais interessantes títulos do cinema português recente – A Toca do Lobo. Convocada pelo seu passado, Catarina Mourão traz-nos uma figura próxima, a do escritor Tomaz de Figueiredo (1902-1970), seu avô. A realizadora dá início a uma investigação regressiva que parte de um álbum fotográfico familiar onde se reúnem quatro gerações da mesma família, à procura dos misteriosos últimos dias do seu avô que, progressivamente, se vai rematerializando no ecrã: justapõem-se as fotos, os home-movies, uma entrevista do autor concedida à RTP nos anos 60, e os vestígios que relembram ainda o legado de Tomaz Mendonça – uma rua secundária, uma biblioteca desactivada, objectos, fichas médicas e a memória de quem com ele privou. Na sua crítica ao filme, Francisco Ferreira sumariza as questões a que o filme permanentemente procura responder: em que circunstâncias, envoltas em segredo, terminou o avô os seus dias? Porque se separou ele da mãe da cineasta a dada altura? Porque não falam mãe e tia há mais de três décadas? E o que aconteceu ao tio, um resistente ao fascismo, preso pela PIDE, de quem a família evitava falar? Assim se adensa uma intriga que adquire a forma de drama policial, onde se alicerça uma meditação sobre os tabus encobertos pela ditadura portuguesa e, ainda, sobre esse tão generalizado e tão português movimento de calar para sempre. Enfrentando os fantasmas do fascismo e os silêncios que, ao longo da vida, sentiu no interior da história da sua família, os documentos adquirem a potência de um chamamento de além. Num trajecto entre o passado e o presente, a realizadora comunica com familiares vivos e mortos, aqui partilhando o ‘‘fechar de um ciclo’’ muito seu.
- THE MAKES: as ténues fronteiras entre realidade e ficção
‘‘Cheguei à conclusão de que o guião não é nada. É por isso que peço a cada um dos espectadores que encenem o seu próprio filme, que filmem para si próprios no ecrã da sua imaginação.’’ Francis Picabia, prefácio a La Loi d’accommodation chez les borgnes
Em The Makes (2009), também partimos de fotografias para uma experiência única que reflecte acerca do núcleo de fantasia que está na constituição do cinema. A excelência do crítico Phillippe Azoury assegura-nos à partida e, enquanto fala e aponta para cada uma das fotografias dispostas sobre a mesa, confiamos que nos guiará através da história do cinema. Mas, sobre esta viagem entre fotografias protagonizadas por rostos japoneses, vai descrevendo um projecto de Michelangelo Antonioni, à medida que dirige o nosso olhar para uma Mónica Vitti e para um Alain Delon de traços orientais. Até chegar à clarividência, planta-se no espectador crédulo mas confuso uma estranheza que se transformará na desconfiança necessária para deslindar o dispositivo ali montado por Baudelaire. Pedindo emprestada a magnífica expressão de Manuela Penafria, é uma ‘‘documentira’’ o que aqui se põe em cena, adaptando uma das histórias por filmar que Antonioni partilha no seu ‘‘Filmes na Gaveta’’. No fundo, um exercício lúdico que planta uma gargalhada no fundo de cada espectador, subitamente consciente de que ver implica a pré-disponibilidade de acreditar no que se vê. Indicam-se as fronteiras ténues entre a ficção e a realidade, e inscreve-se no título completo THE MAKES / THE REMAKES essa qualidade de fabricação inerente ao cinema, permanente possibilidade de manipulação.
‘‘Existe um ‘sentido físico e territorial’ de fronteira e um sentido simbólico, que utiliza a ideia de limite e de marcador de todos os contextos possíveis. Dentro da família semântica de fronteira convivem: limite, limiar, separação, confim, terminação, borda, orla, margem, barreira. A fronteira é, basicamente, o limite de terra conhecida da nação, do Estado. Sempre vista de ‘dentro’, como protecção; ‘de fora’ como obstáculo.’’ Richard Zapata-Barrero, ‘‘Teoria Política da Fronteira e da Mobilidade Humana’’, Revista Española de Ciencia Política Nº29, 07/2012
- DOC’S KINGDOM / ROUTE ONE USA / DEAR DOC: Trilogia sumária de uma geração
‘‘A partir das nossas próprias vidas e de outras da nossa geração, criámos a personagem do Doc e situámo-lo no mundo real. Foi um processo dialéctico. Doc é uma síntese, uma expressão da nossa geração e da tensão criativa entre duas pessoas muito distintas.’’ Paul McIsaac – actor que interpretou a personagem de Doc
”Nesta video-carta, Robert Kramer dirige-se a Paul Isaac, o seu velho cúmplice, personagem principal de Doc’s Kingdom e, de alguma maneira, o seu alter-ego. Uma imagem do passar do tempo e uma breve reminescência sobre o filme que fizeram juntos. Filme gravad durante a montagem de Route One/USA.” no catálogo do Doc’s Kingdom 2015
Regressemos sempre à paternidade Kramer com a lição por rever: ‘‘Fazer filmes é aproximar-se, afastar-se. É chegar, partir. Ou é levar a distância necessária para os fazer.’’, disse Kramer sobre o movimento ensaiado por este Dear Doc (1990), que nos transporta até Doc’s Kingdom (1987) e até Route One USA (1989). Doc’s Kingdom introduz-nos a Doc (Paul McIsaac) um médico cada vez mais doente que vive onde a Europa cai para o mar – Lisboa – e que aqui se encontra com Jimmy, um filho perdido (Vincent Gallo). Em Route One USA (1989), Doc prossegue a sua deambulação, agora através da América e esta travessia é o lugar ideal para Kramer explorar numa técnica que, indistintamente, cruza documentário e ficção. Como reconhece Chris Fujiwara, esta viagem desenvolve-se ‘‘através da ideia de rebelião: rebelião dos colonos contra a Bretanha, do Sul contra o Norte, do filho contra o pai.’’ De facto, o tema da paternidade e da figura do jovem desviante, a postos para um combate com a geração predecessora, recorre desde o filme anterior. O cinema e a fotografia enquanto agentes produtores de arquivo e de memória, ligam-se directamente a este estudo das movimentações intergeracionais, que se alicerçará intimamente na visão analítica de Robert Kramer sobre o devir histórico e sobre a necessidade de ajustar contas com o passado. Reescreve-se a História à claridade do presente – derradeiro gesto de juventude que atravessa todo o seu cinema. O resultado deste projecto que se alonga por mais de 4 horas e que será retomado com a curta Dear Doc (1990), encapsula a importância precursora de um realizador/argumentista/actor/cameraman que deu voz aos valores da sua geração e que, através do cinema, recolheu o testemunho de cada um dos intervenientes, assim traçando uma verdadeira biografia da América marginal.
- LE PASSEUR: A lei natural de atravessar o rio
‘‘Historicamente a “naturalização” da fronteira pela sua associação ao rio tende a ocultar que aquela é, fundamentalmente, uma construção humana e um facto cultural. Mas a fronteira natural é subvertida, nestes filmes, por uma condição de devir de que o próprio rio constitui uma metáfora privilegiada. O rio é, também, um lugar arquétipo do esquecimento. Aqui, porém, cruza-se com a evocação de memórias individuais, nos relatos da emigração clandestina na primeira metade dos anos 70, assim sublinhando o carácter subjectivo e selectivo das estórias pessoais e da própria História. A dimensão tensional das ligações ou passagens que marcam, a diversos níveis, a instalação de Filipa César, está também presente na relação entre o documental e o ficcional. Por um lado, a apresentação dos relatos, quase sempre feita através da reacção de cada um dos passadores aos depoimentos recolhidos, tende a objectivar experiências subjectivas, ao mesmo tempo que acentua a mediatização da reconstrução da memória. Por outro lado, a ficcionalização fílmica da passagem do rio confere um carácter subjectivo à aparente objectividade do percurso entre dois lugares, sinalizando, nesse mesmo movimento, a ligação entre a experiência real e a cinematográfica. Nesta instalação, Filipa César propõe uma lógica de contaminação e devir permanente entre o rio, enquanto elemento natural, e a artificialidade da fronteira; o registo documental dos relatos e a visão ficcional cinematográfica; a objectividade do percurso entre as margens e a subjectividade das vivências e da memória. O passeur surge, assim, como metáfora da condição contemporânea.’’ Press Release de Le Passeur (2008) – Curadoria de Pedro Lapa (2008)
‘‘Para mim, uma fronteira era algo místico. Sempre pensei… Primeiro nunca tinha visto uma fronteira. Já era adulta quando vi uma. Quando fui para França com o Manel, atravessei a fronteira. Nunca tinha ido a Espanha, por isso, para nós, uma fronteira era uma barreira que era difícil atravessar. Para a Laurinda, era um rio, um lugar onde ela podia ir e vir consoante queria.’’ Em Le Passeur (2015), Filipa César, 2008
Escreveu Laurent Kretzschmar que um Passeur é alguém que ajuda a atravessar um rio com uma pequena embarcação e que é, por extensão, alguém que ajuda a travessar clandestinamente uma fronteira ou uma área de ‘‘não-trespasse’’. Neste Doc’s Kingdom, Filipa César exibe uma remontagem recente deste trabalho, adaptando a uma só tela uma video-instalação em 2008 concebida para múltiplos ecrãs. A fluidez do rio, elemento de transição, é protagonista de um filme que se apresenta com a força de um manifesto sobre a natureza da transgressão dos limites, limites que concretizam uma imposição humana desajustada às vontades dos homens. É, portanto, de uma superação do homem pelo homem do que se fala nesta narrativa de interdição vencida em conjunto. Como se ouve no testemunho do juiz, referindo-se à opressão do salazarismo que enfrentaram juntos: ”a justiça nessa altura não era justa.’’
- A RAIA: Os objectos são mapas do passado
”Vou contar-vos uma história que já se passou há muitos anos. Passar coisas do lado português para o espanhol e do lado espanhol para Portugal era a nossa ecomia. Para ganhar a vida. Porque não havia outros meios onde ganhar pão, eram esses. Hoje falam de contrabando.’’ em A Raia, Iván Castiñeiras Gallego, 2012
”Numa zona rural, a proximidade da fronteira permitiu que o amanhar dos campos fosse acompanhado pela prática do contrabando, actividade que trazia mais rendimento para a casa. De dia, era uma zona de agricultores, de noite, de contrabandistas. Na mesma aldeia, viviam Guardas Fiscais e Contrabandistas, as duas faces antagónicas do contrabando. Conviviam e ocupavam os mesmos espaços, quer nas aldeias, quer nos caminhos percorridos. Ambos conheciam esses caminhos. Uns vigiavam-nos, outros percorriam-nos, trazendo e levando mercadorias que alimentavam o comércio de ambos os países. Estes caminhos eram o sustento de ambos.” Delfina Baptista, ”Caminhos do Contrabando”, Centro de Estudos Ibéricos, 2014
‘‘As comunidades são verdadeiramente fortes. (…) As pessoas têm orgulho dos seus actos.’’ Iván Castiñeiras Gallego, 2015
Uma linha montanhosa de clima extremo, divide o sudeste da Galiza do noroeste de Portugal. Esta fronteira liga mais do que separa. Aqui, os camponeses isolados trabalham juntos ancestralmente, prosseguindo hábitos e princípios comunitários alicerçados numa troca entre os lados espanhol e português. Nos lugares onde a falta sempre existiu, a necessidade orienta o viver e a justiça enraíza-se na autonomia da lei do homem. Em cada voz se propaga o testemunho de uma cultura dependente no contacto entre os povos raianos, igualmente pobres e cooperantes. De uma vida de campo e de contrabando, ficam os objectos na ferrugem do desuso, indícios guardados de técnicas e de práticas antigas e comuns aos vários camponeses raianos, tão semelhantes entre si, e mais raianos do que portugueses ou espanhóis. Através deste A Raia (2012), recordamos o cinema de um outro galego, Lois Patiño, que em Noites Sem Distância (2015), ensaia, em tom poético, um retrato desses campos nocturnos atravessados por contrabandistas e guardas de fronteira.
- JET LAG: Retrato do não-lugar
‘‘Gosto de pensar que Jet Lag é, de alguma forma, a crónica do filme que não pode nem quis ser. A sua rodagem nocturna, madrugadora, presumivelmente rotineira, acabou por se ajustar ao imponderável e ao acidental, induzindo um processo contínuo de decisões intuitivas, incertas, precipitadas pelo acaso, condicionadas pelo exterior, permanentemente sujeitas à anomalia. Neste reino da incerteza, a nossa única certeza era a de que o projecto que tínhamos planeado, não chegaria jamais a existir. Ao admitir esta impossibilidade, ao aceitar a nossa falta de controlo, ao entregar-nos ao nosso próprio destino, o nosso filme acabou por revelar a realidade do imprevisível, a evidência do aleatório,a vitória do espontâneo. Jet Lag expõe, nas suas diversas camadas, o esboço de um retrato, os fragmentos de um diário, o relato de uma espera. Mas, antes de mais, o filme desvela uma convivência, da implicação passiva à implicação activa; da ausência à coexistência; do tu ao nós. Quem filma e quem é filmado aproximando-se até à identificação, aliando-se, unindo-se.’’ Eloy Domínguez Serén sobre Jet Lag (2014)
Diego trabalha no turno da noite, numa estação de serviço isolada, próximo da fronteira galego-portuguesa. Testemunhamos a monotonia silenciosa de um trabalho insone que se repete sem novidade até que, uma noite, a visita inesperada de dois visitantes inquieta a rotina do lugar. A realidade é, afinal, imprevisível e o que até ali se desenhava debaixo da noite, entre calma e solidão, é agitado por um twist – há perigo à solta perto dali. Jet Lag (2014) é um filme que reflecte, primeiramente, acerca do que é fazer um filme. Um olhar agudo constrói uma realidade como uma teia de minúcias: a narrativa desenvolve-se entre as imagens e sons mais banais, incorporando todos os ritmos, gestos, objectos e barulhos. São as câmaras de vigilância a registar a situação excepcional, captando criminosos procurados que não devem estar muito longe da área. A partir deste momento, há duas equipas em acção a intervir no quotidiano de Diego: uma equipa de filmagens e uma equipa de investigação policial. Um não-lugar, esta estação de serviço que poderia ser qualquer outra é repentinamente habitada pelo drama local e a intensidade cresce no suspense da iminência de perigo.
- VINTERSOLVERV : A luz breve do Ártico
Na secção WIP – Work in Progress, Eloy Domínguez Serén partilha neste Doc’s Kingdom um prometedor projecto ainda em curso: Vintersolverv (2016) está por concluir mas começa por responder à vontade do realizador espanhol de dar a ver o fascínio que o levou a decidir viver na Noruega. O pano-de-fundo é Fauske, a 70km do Círculo Polar Ártico, onde na penúltima semana do ano, ocasião em que ocorre o solstício de Inverno, a duração média da luz de dia é de 58 minutos. Este filme captura a brevidade desses momentos de luz e, na pele do próprio realizador-protagonista, constrói um retrato afectivo alicerçado numa relação entre opostos: calor e frio, dia e noite, interior e exterior, norte e sul. Deambulador através do cinema, Eloy Domínguez Serén escolhe uma localização diametralmente diferente para cada filme, descrevendo-se em permanente estado de encantamento pelo mundo: ‘‘tudo me interpela, tudo me intriga, tudo me estimula, tudo me entusiasma, tudo me fascina.’’ (2015)
- OÙ-EST LA JUNGLE?: A selva insalubre que o homem planta
Onde é a selva? Deolindo e Stevenson perdem-se no interior da selva amazónica e, ao longo do seu percurso, serão testemunhas de uma paisagem que progressivamente se modifica. A selva perde a sua qualidade selvagem: a expansão da nova cidade devora o espaço florestal mas, em simultâneo, larga edifícios desabitados entre ruínas que se perdem de vista e que constroem uma outra selva – uma verdadeira selva de betão. Este território em permanente transformação mescla o passado e o presente e planta questões: o que é verdadeiramente selvagem? O que separa um espaço de outro?
- MINED SOIL – O solo como corpo histórico e político
”O passado é relevante apenas enquanto instrumento para agir sobre o presente.” Filipa César em Mined Soil
“Este trabalho chama a nossa atenção para questões macroeconómicas contemporâneas no seguimento das crises europeias, em que países como a Grécia e Portugal têm sido obrigados a procurar riqueza de novas maneiras que podem ter consequências sociais e ambientais profundas”, Curtas Vila do Conde
‘‘O solo é um corpo político porque também é um resultado de decisões políticas.’’, explica Filipa César, introduzindo-nos a Mined Soil, projeto documental que faz a ligação entre o processo de independência da Guiné-Bissau e as pesquisas de Amílcar Cabral, agrónomo guineense, em Portugal. Decalcando a estratificação que compõe estruturalmente o próprio solo, Mined Soil (2010) apresenta-nos uma viagem no tempo que revela a forma como as narrativas são construídas, definindo a História como uma síntese de narrativas que se adicionam. Investigar é entrar nesse processo arqueológico e, revolvendo os estratos do passado, Mined Soil (2010) estreita, à luz do presente, uma relação nunca antes problematizada: a de Amílcar Cabral, rebelde independentista, guerrilheiro, nome central das lutas de libertação da Guiné, e a de Amílcar Cabral, engenheiro agrónomo, que estudou e pesquisou em Portugal. Filipa César lembra-nos de que a definição de solo preferida de Cabral é a de um corpo natural, independente e histórico. A investigação de Cabral em etrras alentejanas procurava saber as causas que provocam erosão no solo, sendo a erosão um curso natural que pode ser provocado ou modificado pelo homem. A negligência do território alentejano investigado, conclui Cabral, é também resultado do imperalismo colonial português, que dirigiu a atenção governamental para a exploração de outros lugares. Trabalhando oficialmente enquanto agrónomo, Cabral viajava entre Lisboa, Angola, Cabo-Verde e, subversivamente, agia simultaneamente enquanto activista político, sendo um dos fundadores do PAIGC- Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. De formação marxista, Cabral liga a estratificação do solo ao materialismo histórico e à constituição da estratificação social, onde o projecto emancipatório da luta de classes deve partir da consciência partilhada pelo interior da própria classe. Este princípio aplicar-se-ia aos movimentos independentistas: qualquer luta parte do interior e o domínio da paisagem guineense pelos habitantes do próprio país significava o mapeamento de uma estratégia de combate impossível de ser antecipada pelas forças portuguesas aí presentes. Na Guiné, a luta contra a ocupação portuguesa começou, literalmente, no centro do território, num ”movimento centrifugador” até às extremidades. Consciente de que a cultura também é uma substância concreta, é como uma acção de contenção da erosão que o agrónomo-activista Cabral, em liderança, teve pressa em reconstruir a língua – como nota Filipa César – revelando a materialidade de que é feito um processo de luta social.
- BRANCO SAI, PRETO FICA: A segregação racial ainda existe
‘‘O artifício da ficção científica é a solução encontrada pelo director para investigar uma violação que é ‘natural’ no Brasil desde a nossa colonização – o genocídio da população negra.’’ Thiago B. Mendonça, Le Monde Diplomatique, 04/2015
Recordamos ter lido uma vez que os cientistas previam que, no futuro, a população mundial, por via da miscigenação, se iria parecer com os brasileiros, elidindo as fronteiras entre as raças. Esta mestiçagem que está tão na génese do povo brasileiro, torna ainda mais ridícula a factualidade da descriminação racial que Adirley Queirós aqui denuncia, assumindo uma causa que o cinema brasileiro sempre veiculou: ‘‘A relação racial e territorial é muito presente no cinema brasileiro’’, explica o realizador, aludindo à gravidade de um tema que é tão importante denunciar que se inscreve, desde logo, no próprio título. Tendo crescido na Ceilândia (a maior favela do distrito federal brasileiro), faz sucessivo uso do cinema para endereçar a questão da segregação na periferia de Brasília: na sequência de A Cidade é uma Só? (2011), através deste Preto Sai Branco Fica (2015), engendra um thriller de ficção científica para dar a voz à gravidade dos atentados do passado à juventude negra no Brasil. A narrativa é protagonizada por um detective que veio do futuro para investigar os tiroteios abertos pela polícia sobre um baile de black music, recolhendo provas para processar o Estado. O título Branco Sai Preto Fica (2015) surge numa das ordens expressas pelos polícias que invadiram o baile, e serve como chave para estudar uma atitude racista ainda tão em vigor na sociedade brasileira contemporânea. Este futuro com sabor a passado, prossegue entre o revivalismo dos discos de vinil e da rádio-pirata e entre a nostalgia compartilhada de dois homens marcados pela mesma história de injustiça. Um paraplégico e o outro com a perna amputada, recordam juntos os amigos idos e as noites de juventude, em momentos que são tanto sobre a partilha em voz própria das memórias, quanto sobre o silêncio que encerra essa sensação de impotência para agir sobre a realidade. Esta é ‘‘uma ficção como uma vingança’’, assume Adirley Queirós, sobre um filme que tem uma direcção política precisa. Voz tão interessante através do cinema como fora dele, Adirley Queirós, presente nesta edição do Doc’s Kingdom 2015, é um dos nomes mais vivos do cinema brasileiro contemporâneo.
‘‘O cinema só é possível como forma de luta política.’’ Adirley Queirós
- FIGURAS GRAVADAS NA FACA COM A SEIVA DAS BANANEIRAS: Inventar a memória
‘‘Fazer filmes é não acreditar em fronteiras.’’ Pedro Fernandes Duarte
‘‘A minha família mudou-se da ilha da Madeira para Moçambique nos anos 60. A memória dessa viagem e a memória do que foi viver em Moçambique eram coisas que me chegavam sempre muito censuradas. Tinha muita vontade de fazer um filme sobre essa censura da memória.’’ adianta Joana Pimenta sobre Figuras gravadas na faca com a seiva das bananeiras (2009). Este filme estuda a potência ficcional que precede qualquer vontade de lembrar, apresentando a memória como uma construção, também resultante de um processo individual de efabulação. Como no cinema, a recordação adquire formas próprias, pessoais, que tendem a distanciar-se de qualquer possibilidade de realidade objectiva.
- THE ANABASIS OF MAY AND FUSAKO SHIGENOBU, MASAO ADACHI AND 27 YEARS WITHOUT IMAGES: Fazer um filme é uma forma de guerrilha
The Anabasis of May and Fusako Shigenobu, Masao Adachi and 27 Years Without Images, Eric Baudelaire, 2011
‘‘Quem são May e Fusako Shigenobu? Fusako – líder de uma facção da extrema esquerda, o Exército Vermelho Japonês, esteve envolvido em numerosas operações terroristas – e tem estado escondido em Beirute há quase 30 anos. May, a sua filha, nascida no Líbano, descobriu o Japão apenas aos 27, depois da prisão da sua mãe em 2000. E Masao Adachi? Um argumentista e realizador radical interventivo, comprometido com a luta armada e com a causa palestiniana, que também foi para viver para o Líbano underground por várias décadas, antes de ser mandado de volta para o seu país de origem. Nos seus anos enquanto realizador, foi um dos instigadores da Teoria da Paisagem – fukeiron: através da filmagem de paisagens, Adachi procurava revelar as estruturas de opressão que revelavam e perpetuavam o sistema político. Anabasis? O nome atribuído, desde Xenofon, ao dias de vaguear, circular, em retorno a casa.’’ Jean-Pierre Rehm (no catálogo do FID Marseille)
”In your own words, what was fukei-ron, or Landscape Theory, which you developed along with Mamoru Sasaki and Masao Matsuda at the end of the 1960s? ; It’s a very simple matter. All the landscapes which one faces in one’s daily life, even those such as the beautiful sites shown on a postcard, are essentially related to the figure of a ruling power. This was the starting point for our discussions on the Theory of Landscape.” Jasper Sharp, em entrevista a Masao Adachi em Midnighteye
‘‘Quando falamos de memória, falamos também de falsas memórias e de ‘vazios’ da memória, onde se inserem as ficções que contamos a nós próprios.’’ Eric Baudelaire
Depois de 27 anos a existir fora da esfera pública, a postura de May (Mei) Shigenobu é estruturada, centrada, dirigida, decerto reveladora de quem conhece como ninguém o falar e o calar. May narra as histórias de ontem como quem decide como quer hoje guardar estas mesmas histórias no cinema, denunciando uma consciência clara da potência do filme enquanto documento, enquanto produtor de uma memória histórica. É precisamente sobre a ligação estreita entre os filmes de intervenção japoneses e a acção política que aqui nos debruçamos. May é filha de Fusako Shigenobu, fundadora do Exército Vermelho Japonês na década de 70 e é o centro de um processo de rememoração que, progressivamente, traça um remapeamento. Enquanto descendente ‘‘à solta’’ de um passado marginal de luta, sente sobre si a missão de enquadrar as causas da violência extrema associada à acção do Exército Vermelho, assumindo-se longe de qualquer arrependimento: ‘‘Vivemos numa era diferente.’’ – diz May – ‘‘Naquele tempo, as pessoas estavam a lutar, a pensar, a ser activas em todo o lado contra a Guerra do Vietname e contra outras opressões pelo mundo fora, sem que houvesse meios de ganhar a atenção dos média. Esquecemo-nos de todo esse contexto e, simplesmente, decidimos escolher uma pessoa daí e citá-la, com as lentes da sensibilidade de hoje, dos valores de hoje e da forma de pensar de hoje.’’ No entanto ‘‘sente-se um lamento pelo tempo e pela vida perdidos que as vozes off de May e Adachi revelam sem nunca expressar directamente’’, observa Jorge Mourinha (na sua peça ‘‘Entre a memória e o arrependimento da militância revolucionária’’, Público, 2011). É também num lancinante sentimento de perda que vimos a saber que, num bombardeamento, 27 anos de imagens filmadas por Masao Adachi foram destruídas. Por coincidência, também há precisamente 27 anos de ausência de imagens de May, que viveu no underground desde o seu nascimento, escondida em exílio até aos 27 anos. Esta é uma realidade complexa e obscura que Eric Baudelaire endereça através do Super 8mm, mimetizando a matéria dos filmes fukeiron e procurando as paisagens japonesas e libanesas anteriormente filmadas. Estas imagens contemporâneas reúnem-se com arquivos, clips televisivos e excertos fílmicos que servem de fundo aos testemunhos de May e de Masao Adachi. No interior deste processo de reconstituição de uma memória tão pessoal quanto colectiva, enuncia-se um caso único da história do activismo político, onde a necessidade de intervenção, que se exprimiu primeiramente através da forma cinematográfica, se desenvolveu até à formação de guerrilhas, fruto da necessidade dos realizadores de se aproximarem de um activismo prático. Nagisa Oshima foi tentado a alistar-se e Koji Wakamatsu (que, em 2007, viria a realizar o épico United Red Army) viveu permanentemente sob vigia por suspeita de ligações ao Exército Vermelho Japonês Mas Masao Adachi decidiu, efectivamente, substituir a câmara-de-filmar pelas armas e alistar-se no Exército Vermelho Japonês. Este lance retrospectivo põe em questão os limites da intervenção sobre a realidade: onde começa a intervenção política directa? Para que serve o cinema e quando é que este deixa de ser suficiente?
”Quando saí da prisão, queria vingar-me das autoridades mas pensei que, se usasse violência, acabaria na prisão. Por isso decidi usar outra arma: os filmes. Se usares a violência nos teus filmes, estás apenas no mundo da imaginação, por isso não podes ser acusado de nada criminoso.” Koji Wakamatsu
LETTERS TO MAX: Cartas para um país por ser
(Escrevemos aqui sobre Letters to Max (2012) e também se escreveu aqui a propósito da presença do filme nos festivais Porto/Post/Doc 2014 (onde arrecadou o primeiro prémio) e no Doc Lisboa 2014)
‘‘Paris, June 29th 2012 / Dear Max / Are you there? / Eric – Abkhazia is something of a paradox: a country that exists, in the physical sense of the word (a territory with borders, a government, a flag, a language), yet it has no legal existence because for almost twenty years it was not recognized by any other nation state. And so Abkhazia exists without existing, caught in a liminal space, a space in between realities. Which is why my first letter to Max was something of a message in a bottle thrown at sea.’’ Eric Baudelaire
‘‘O realizador envia cartas para uma morada num país que não existe de facto sem ter a certeza se elas chegam. Max vai-lhe respondendo em gravações de voz. O filme faz-se dessas trocas falhadas de perguntas e respostas que só num gesto posterior de montagem reganham o ritmo de um diálogo.’’ Ricardo Vieira Lisboa sobre Letters to Max
Se já notámos como a estrutura epistolar do filme de Baudelaire é preponderante para reflectir a estreita relação entre uma carta e um filme enquanto ‘‘máquinas do tempo’’, suportes memoriais irremediavelmente datados e evocativos de um passado, sublinhamos a existência destas mesmas cartas enquanto corpos políticos, que se encaminham com um propósito interventivo, enfrentando os limites da realidade geopolítica. Não se sabe se algum dia chegarão estas cartas dirigidas a Abecásia, território que é, antes de mais, um país por ser. Max, ‘‘diplomata de um país que não é reconhecido como tal’’, não é apenas um político mas é símbolo da vitalidade da própria política – e da necessidade estrutural da sua existência. Defende, nas mais práticas instâncias, o sonho colectivo da maioria separatista – que exige, face à administração russa que vigora desde 2008, a autonomia de um território que conta já com fronteiras definidas, um governo, uma bandeira e uma língua próprios.
A presença de Eric Baudelaire no Doc’s Kingdom 2015 concedeu-nos o privilégio de assistir ao filme no contexto de uma masterclass , onde o realizador detalhou o âmbito mais alargado de um objecto fílmico que, concebido em 2012, em 2015 se reconfigurou enquanto instalação itenerante que encenava embaixadas fictícias para a Abecásia, onde o próprio Max e as cartas se encontravam presentes, incluindo outros dois filmes – e que, com o objectivo de alertar directamente para a sua causa, se materializou na Sharjah Biennal 2015, Bétonsalon, Paris e na Bergen Kunsthall.
- TERRA DE NINGUÉM: A profissão de não existir
‘‘Salomé preocupa-se com um mal maior, como se aquele mal menor fosse só um pequeno vestígio. Para ela, Paulo é uma peça de uma organização burocrática muito mais complexa. De facto, ele é-o, mas não deixa de ser a peça final que engendra, dá vida e alimenta uma máquina de matar. (…) Seu pensamento ao longo de mais de trinta anos permanece dentro da mesma lógica – existem pessoas que não têm solução, logo precisam de ser solucionadas. Ele mesmo se encara como alguém que não muda mais. Deveríamos então tomá-lo como alguém sem solução por parar no pensamento?’’ Fabian Cantieri, ‘‘A generosidade, o silêncio, o embate’’, Cinética, 4/3/2015
“Nós enfeitávamos os cintos e os jipes com as orelhas e os narizes dos pretos, para mostrar nas sanzalas quem mandava e qual seria o reembolso se se revoltassem. (…) Nunca fizemos prisioneiros, só mortos”. Paulo Figueiredo, em Terra de Ninguém, Salomé Lamas, 2012.
Paulo Figueiredo é o homem de 66 anos que nos olha nos olhos. Se a um primeiro relance, nos surge de aparência frágil, não há como não reconhecer a dureza com que fita a câmara. Este português fez vida como mercenário – e é calma e impassivelmente, que connosco partilha o relato detalhado de uma vida secreta e de contornos inacreditáveis. Primeiro, foi mercenário de um comando de elite em Moçambique, por alturas da Guerra colonial, e depois em Angola. Após o 25 de Abril trabalhou como segurança em Portugal e, mais tarde, como assassino da CIA e dos GAL (grupo armado do governo espanhol de Felipe González, formado para combater a ETA). Sobre o contínuo de barbaridades que se sucede no seu discurso, como se encontrando para si alguma auto-legitimação, Paulo acaba a traçar um retrato desumano de todas as suas vítimas: ‘‘Nunca eliminei pessoas em condições. Pessoas que se possam chamar pessoas.’’ O relato deste mercenário enquadra-se entre a memória privada e a memória histórica, nas franjas dos discursos dominantes sobre a guerra colonial. Este filme tem, por isso, uma importância precursora, biografando em discurso directo uma destas reais máquina-de-matar produzidas pela guerra. Ainda que trabalhando para o Estado, Paulo viveu sempre em terras de ninguém, fora das leis do(s) Estado(s). Na discussão colectiva, uma grande questão se dirigiu a Salomé Lamas: ‘‘- Será ético dar visibilidade a pessoas que têm pontos de vista tão monstruosos, dando-lhes espaço para evoluírem como personagens afectivas?’’. Seguiu-se pronta a resposta de uma cineasta que acredita no cinema enquanto instrumento revelador da História:‘‘- Alguém tem de o fazer, com o jogo limpo!’’.
- EL DORADO XXI: ainda a febre do ouro
‘‘É um jogo mental – a hipótese de gerar uma pequena fortuna motiva os mineiros; e acreditar em “algo maior” serve de grande inspiração, uma vez que o magro salário mensal não justificaria por si só uma vida de perigos. Passaram-se quatro anos desde que o governo Peruano finge não ver o crescimento de condições desumanas nesta comunidade remota, onde a maioria dos agentes da autoridade se recusa a patrulhar a área.’’ Salomé Lamas sobre El Dorado XXI
Para a secção WIP – Work in Progress, Salomé Lamas traz El Dorado XXI (2016) que, apesar de ainda estar a ser terminado, desde já se adianta como um dos títulos mais surpreendentes dos próximos anos. Na pele interventiva do Émile Zola de Germinal, a jovem realizadora habita e filma nos Andes peruanos, junto da comunidade mineira de La Rinconada y Cerro Lunar, a maior mina do mundo, localizada a 5500 metros de altitude. Aqui, homens, mulheres e crianças curvam-se à procura de ouro no monte Ananea, arrastando sacos de entulho e de cascalho, vagueando exaustos em dias de Sísifo e repetindo a mesma tarefa ingrata dia após dia, igualmente. Descrição da mais dantesca auto-destruição, este é um filme como uma faca. Num olhar de proximidade, à medida de quem é filmado, este doloroso retrato fala-nos concretamente acerca da derradeira constituição material que orienta a existência humana e dá a ver os infernos a que, por miséria, os homens se submetem.
- LE BOUDIN: a voz do remorso
‘‘Pedir a alguém para recordar é cruel.’’ Salomé Lamas
Bonito e andrógino, é o jovem actor alemão Elias Geißler o veículo da voz de Nuno Fialho, português que tinha 16 quando foi forçado a alistar-se na Legião Francesa. Este testemunho que ouvimos com distorção é documento de uma rememoração difícil, captada por Salomé Lamas em 2011. Aqui, interpela-nos essa inesperada fricção entre os dados visuais e sonoros, entre a delicadeza jovem da figura de um e a dilaceração na voz experiente do outro. Ouvimos que Nuno tinha 16 quando deixou Portugal para ir para a Legião Francesa, integrando o 82º pelotão aéreo na divisão da guerrilha urbana e percebemos o trauma psicológico que a experiência lhe deixou. Le Boudin (2011) (o título refere-se à marcha da Legião Francesa) é um filme sobre alguém que não escolheu a história que conta, mas que conhece tão bem. É tão importante como verdadeiramente político o gesto desenhado por este filme, concentrado em dar visibilidade ao que estava por ver. Descrevem-se, com emotiva dificuldade, as missões europeias em África e os processos de dizimação implicados no estabelecer de certos projectos no território. Ouvimos sobre a necessidade de ‘limpeza’ de aldeias para aí construir um parque natural, hoje cenário da National Geographic, e aqui se desvela o carácter paradoxal que enquadra tantas missões classificadas, conduzidas por entidades governamentais e privadas de uma Europa toda-poderosa que age ainda segundo princípios colonizadores. Esta ligação que, através do seu relato, estabelecemos com Nuno, é o retrato de uma fragilidade e de um arrependimento, numa acção de testemunho da consciência de revelar a realidade que o segredo-de-Estado encobre. É assim, anonimamente, que conhecemos os responsáveis por este processo de ‘‘higienização’’, entretanto convenientemente engolido pela História, assim tomando verdadeira consciência de como a História é também o controlo dos factos. Salomé Lamas sabe-o: através do cinema, é necessário fazer-se contra-História.
- WUNDKANAL / NOTRE NAZI: Exorcismo directo
‘‘Eu observava Thomas e o Herr embrenhados no seu passado. Depois, pouco depois, já não distinguia o passado do presente.’’ Robert Kramer em NOTRE NAZI, 1984
‘‘Torna-se cada vez mais claro que o entusiasmo do realizador não é somente o de sedimentar a verdade mas o de exorcizar o seu amor culpado pelo seu próprio pai, que morreu numa impune e almofadada morte em Capri.’’ Harlan Kennedy, Film Comment
‘‘O filme de Thomas Harlan mergulha-me numa doença extrema: um ‘verdadeiro nazi’ aceita interpretar o seu próprio papel – com um cachet de actor – num filme que não só o denuncia como se propõe a fazê-lo ‘‘quebrar’’, quer dizer, fazê-lo confessar que se arrepende de ser culpado por milhares de mortes.(…) Toda a máquina posta em marcha por Thomas Harlan: interrogatórios, lancinantes vozes-off, luzes ofuscantes, etc, apresenta-se como uma máquina de tortura. Submetido a esta tortura, o nazi, o verdadeiro mau, não deixa de passar, por sua vez, por vítima.’’ Jean-Louis Comolli, ‘Mon ennemi préféré?’, 1995
Conhecemos a manipulação que precede a este filme de Thomas Harlan pelo testemunho ocular que, em Notre Nazi (1984), Robert Kramer nos concedeu de uma rodagem que, de câmara em punho, observa criticamente. Ainda que reconheçamos um sentido duro e implacável na necessidade pessoal de Harlan de diabolizar este velho nazi, que interpreta uma levemente ficcionada versão de si próprio, a verdade é que nos debatemos interiormente por lembrar quem é este homem e por que razão ali está. Não há dúvidas: o cinema é gerador de empatia.
Este filme encena um processo interrogatório até à confissão em que se reconhece enquanto assassino sumário. Nos seus 80 anos, Alfred Filbert / Herr F. descreve os seus tempos de comandante das SS e a sua responsabilidade no fuzilamento de milhares na Rússia, e não só: onze mil judeus morreram às mãos de Herr F.. É a história deste ‘‘assassino burocrático’’ que Harlan reencena, como um castigo imediatamente inflingido, num projecto que direcciona a uníssona vontade de justiça de vários descendentes de nazis ou de vítimas do nazismo. Mas, neste filme, ninguém é inocente.
Robert Kramer realiza este filme junto de um companheiro, Thomas Harlan, convergente em termos ideológicos mas com um percurso bastante peculiar e acidentado. Progressivamente, Kramer dá a ver a sua visão crítica sobre o tribunal que ali se montou e responde expressivamente ao processo de exorcismo que testemunha com este cross-fade entre o bem e o mal, sobrepondo Harlan e Herr F. para dar a ver como não há fronteiras delineáveis: bem e mal estão presentes em simultâneo, num filme atravessado pela permanente confluência de sentimentos (a própria postura de Thomas Harlan, justiceiro transfigurado em bully, é exemplo disso mesmo). Wundkanal (1984) concretiza um projecto colectivo de diabolização deste antigo comandante nazi que a câmara descreve com um ar monstruoso e mórbido e a quem provoca um tom de confissão arrependida. Em simultâneo, Thomas Harlan parece viver numa permanente evocação reflexiva do seu próprio passado, pelo qual se responsabilizará até à morte. Filho de Veit Harlan, realizador comprometido com o III Reich, é ligado a actividades nazis desde cedo, tendo sido comandante da marinha nazi aos 22 anos, antes de ir estudar para Paris e de aí assumir o seu esquerdismo.
“É uma história infame, e não posso imaginar que nem mesmo os filhos dos filhos dos meus filhos possam algum dia ser completamente dissociados dela.” Thomas Harlan
Apesar de se encontrar ostensivamente no espectro ideológico oposto ao seu pai, também se tornará realizador, pondo o seu cinema ao serviço da “causa revolucionária”. Em Notre Nazi (1984), fala do seu passado, acusando a “injustiça da falta de justiça” contra o próprio pai. Se o fascista chega a chorar a morte do irmão, e isso nos comove, Thomas Harlan rejeita e diaboliza o pai e restante família que o defende, levando as suas convicções até um limite impermeável – limite que, como indicou o crítico de cinema Harlan Kennedy, é motivo de tormenta constante no interior de um realizador que, mais tarde, ficaria aliviado por, apesar do seu compromisso auto-assumido de repúdio e de difamação, o seu pai o ter chamado para o seu leito de morte:
‘‘Para o seu primeiro filme após Torre Bela, Wundkanal (ou Ferida de Bala, de 1984), convenceu um antigo comando das SS, Alfred Filbert, a protagonizar uma ficção singular: Filbert encarnava um criminoso de guerra nazi raptado por um grupo de extrema-esquerda e obrigado a confessar os seus crimes. Supostamente uma obra de ficção, Wundkanal converte-se numa confissão autêntica. À época, o crítico americano Harlan Kennedy escreveu na revista Film Comment: “O veterano das SS de cara de cadáver está sempre a puxar pela nossa relutante paciência. Enquanto a câmara o sonda, as lágrimas começam ao relembrar-se do irmão, que morreu num campo de concentração depois de falar contra o Führer. Por vezes, Alfred parece um idoso injustamente acossado… Depois, damo-nos conta do horror da nossa compaixão por um idoso que ajudou a matar onze mil judeus… E então perguntamo-nos se, mesmo com um homem como este, não deveríamos sentir compaixão… E lentamente o filme começa a remexer no sentido ético do espectador.; (…) No entanto, Thomas parecia encontrar conforto no facto de Veit Harlan o ter chamado para um último encontro. “Morreu nos meus braços, e estou-lhe incrivelmente agradecido por isso. Se eu tivesse um filho que me fizesse 10 por cento daquilo que fiz, nem lhe apertava a mão. É uma traição inacreditável, aquela que eu fiz. Senti que estava a fazer o que tinha de ser feito, e que, ao mesmo tempo, era uma coisa insuportável. Mas ele conseguiu compreender isso, e foi ele próprio quem preferiu morrer nos meus braços e não nos de outra pessoa. (…) Harlan parece ter desejado permanecer para sempre “o favorito” do pai. E, com a sua intransigência, talvez tenha feito mais para humanizar a imagem de Veit Harlan do que os outros filhos na sua lealdade canina.” Publico, 2011
Rever Wundkanal (1984) demora-nos sobre a história real de Thomas Harlan e de Veit Harlan, para falar de uma das relações familiares mais incríveis que a História do Cinema traz em si inscrita, daí decalcando o maior trauma europeu do século XX. Há infinitas implicações que estabelecem fronteiras no interior desta narrativa real, mas o ponto-de-contacto mais relevante para a direcção desta discussão talvez seja a relação entre o cinema e ideologia, ponto central da expansão do cinema no século XX: duas gerações de realizadores utilizam o cinema com a finalidade de uma missão política que, usando o filme, põe em discurso os espectros ideológicos mais opostos. Neste entre-combate, mostra-se a potência da linguagem cinematográfica como veículo moral.
‘‘É preciso repetir e voltar a repetir sobre Notre Nazi que o cinema é um cocktail muito forte mesmo antes de um filme chegar ao écran. A escolha dos filmes em que se mergulha e das pessoas com quem se trabalha não existem sem consequências.(…) É um trabalho e todos os trabalhos são coisas arriscadas.’’ Robert Kramer, conversa com Bernard Eisenschitz, 1997
Notre nazi (1984) trata também sobre a forma como as modificações geográficas, políticas e sociais operam mudanças na constituição identitária do indivíduo. Se a nacionalidade encontra correspondência no interior das fronteiras de um Estado / Pátria, a extinção desta Deutschland Uber Alles – causa a que cada comando das SS consagrou a vida com juras eternas de obediência e fidelidade – demora a extinguir-se no interior da consciência individual, onde as fronteiras entre o bem e o mal estão em reformulação aguda à imagem da reconversão do presente. ‘‘Trabalhei como um cão’’, chega a afirmar Herr F., ainda descrente de que o permanente seguir-das-regras que conduziu a sua vida fora tão errado. De novo, entre fronteiras: entre certo e errado, entre a consciência e o que é exteriormente imposto, entre o passado e o presente, entre a lei moral e a lei jurídica.
- DOC’S KINGDOM 2015: A programação de cinema reage à realidade
O programa TODAS AS FRONTEIRAS / ALL THE FRONTIERS argumenta, desde logo, acerca da forma como a programação de cinema pode reagir à realidade, agindo sobre ela no sentido de procurar compreendê-la melhor. Num ano em que a crise migratória na Europa atinge níveis críticos e o território europeu abre as suas portas a fluxos de centenas de milhares de refugiados, instalam-se problemas de âmbito social, humanitário e comunitário que devem estar no centro da atenção de todos. Adiantando uma tão actual necessidade de discussão pública, o seminário Doc’s Kingdom fixou, com uma proposta de cinema, as bases para um debate incontornável.
- DOC’S KINGDOM 2016: O fim da natureza
“ O FIM DA NATUREZA como ponto de partida para o programa de filmes, debates e encontros. (…) A ecologia global encontra-se irreversivelmente afectada pela acção humana. Partir do fim implica olhar para o futuro a partir dos sintomas do presente. Mas o fim da natureza não se refere aqui necessariamente a uma projecção do apocalipse ou a um diagnóstico do antropoceno. O fim da natureza também pode ser entendido como a dissolução do mito da natureza separada da cultura – reconhecendo que todas as coisas fazem parte de uma entidade ecológica contínua. Colocando a possibilidade de uma ecologia das imagens num mundo saturado de imagens, o Doc’s Kingdom 2016 convida-nos para uma viagem em todas as direcções cardeais, com um grupo de cineastas cujo cinema propõe novos mapas para o uso e leitura das imagens no mundo de hoje.’’ Introdução ao programa do Doc’s Kingdom 2016: http://www.docskingdom.org/
Em 2016 – entre o sábado, 3 de Setembro, e a manhã de quinta-feira, 8 de Setembro – o Doc’s Kingdom volta a fazer dos Arcos de Valdevez o seu contexto, com um programa da autoria de Aily Nash e Nuno Lisboa. Desta vez, os convidativos verdes da paisagem montanhosa propõem uma imersão cinéfila em torno do FIM DA NATUREZA. Está garantida a presença dos realizadores Ana Vaz (Brasil), Dominic Gagnon (Canadá), J.P. Sniadecki (E.U.A.), Juliane Henrich (Alemanha), Kidlat Tahimik (Filipinas), Raúl Domingues (Portugal), entre outros (a anunciar). As inscrições estão abertas e são limitadas a 100 participantes.
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