A entrevista que aqui se publica, realizada originalmente entre Outubro e Novembro de 2015, é da autoria do crítico Toni D’Angela, fundador da revista La Furia Umana e autor de vários livros sobre cinema, entre eles, um sobre o nosso santo padroeiro, Raoul Walsh. Este trabalho, traduzido para português pelo walshiano Luís Mendonça, é publicado no âmbito da nossa homenagem ao recentemente desaparecido Peter Hutton, grande cineasta avant-garde que mereceu uma primeira homenagem nossa aqui. Esta conversa é apenas uma parte de uma obra maior dedicada a Petter Hutton que sairá em Itália ainda este ano sob o título L’occhio e il mondo. Il cinema di Peter Hutton (edição La Camera Verde). O À pala de Walsh agradece a Toni D’Angela a oportunidade desta pré-publicação. É importante, mesmo quando a pretexto do seu triste desaparecimento, que as palavras – e as imagens – de Hutton cheguem ao público português. Aqui estão elas através do interlocutor certo, um amigo e íntimo conhecedor deste “marinheiro” nascido em Detroit.
Nos últimos anos, escrevi algumas coisas sobre o avant-garde americano, especialmente sobre Brakhage, Warhol e Hutton. Cosmos, rituais, paisagens.
A subjectiva em Brakhage, a percepção que entra em si mesma para ir para lá de si, uma subjectividade implantada, disseminada nas dobras do universo. A objectiva em Warhol, o ob-iectum, atirado, em frente à câmara, colocado à sua frente, mas para lá da substância: o objectivismo de Warhol é um anti-essencialismo. A subjectiva-objectiva em Hutton, o paradoxo do olhar sobre os factos (subjectiva, o “quê”), e, ao mesmo tempo, inscrita na relação com esses factos (subjectiva, o “como”).
Peter Hutton foi um amigo meu também. Nós apenas nos correspondíamos, mas eu posso dizer que éramos amigos. A sua última mensagem, enviada dias antes da sua morte, foi tão bela, positiva, inspiradora. Ele agradeceu-me pela nossa amizade, e eu senti-me comovido. Ele era tão generoso e bondoso.
O mar ensinou Hutton a ser e a esperar: a paciência de ver. Hutton queria ver com os seus próprios olhos – através da câmara, a sua Bolex. A mesma câmara, a janela do mundo que subjuga o próprio mundo torna-se na atracção. A visão, a sua visão, que concilia acção e contemplação, muitas vezes separada da cultura ocidental. Hutton viajou muito para Este do mundo, ele nasceu em Detroit, foi para a escola no Hawaii, depois São Francisco, Nova Iorque, Hudson River Valley. Ele era um marinheiro. A sua visão nunca é um sobrevoo, mas está sempre situada no espaço vivido, por vezes até obstruída por ele, enquanto que, noutras alturas, a imagem desfoca. Não um poder, mas uma viagem, uma ética do silêncio. Um olho que não é possessão mas que preserva o mundo. Ele ainda viaja – e vê.
Toni D’Angela (TD) – Sempre achei que os teus filmes são uma espécie de convite para se ver a voz do mundo, para se ouvir o horizonte do ser, e perguntei-me a mim mesmo como é que a tua experiência enquanto marinheiro tem sido importante (o marinheiro olha o mar, ouve o “som” da luz); tem influenciado o teu trabalho enquanto realizador.
Peter Hutton (PH) – O mar sempre foi uma profunda influência para mim, por várias razões. Primeiro, e sobretudo, há a atmosfera visual. Imagina seres um pintor e começares um quadro que está, desde logo, pintado a preto. Um dos meus trabalhados enquanto marinheiro era ficar de guarda, a olhar. Eu estava na ponta do navio, noite após noite, a olhar para a vasta escuridão do oceano, tentando discernir luzes no horizonte distante para tentar perceber se havia navios vindo na nossa direcção. Depois de ver apenas escuridão, a luz começa a emergir: as estrelas reflectindo na superfície das ondas, explosões de fosforescência sob o mar, a lua emergindo por trás das nuvens, e depois a noite transitando para a manhã e um espectro de cor emergindo tão subtilmente quanto um sussurro.
Quando fui pela primeira vez para o mar tive-me como um pintor. Depois de uma década lá fora e frequentando uma escola de arte, eu passei para a escultura e depois para a realização. A minha última viagem aconteceu em 1973 quando saí da Tailândia. Estava a usar uma película a preto-e-branco e a minha grande excitação advinha do facto de atravessar tempestades enquanto navegava o Oceano Índico. Muita da beleza que estava a experienciar era evocativa de J.MW. Turner. A minha visão tornou-se também tão refinada que muito do que via não era visível em filme. Os marinheiros têm historicamente confiado na sua visão para sobreviver: lendo padrões meteorológicos, a textura das correntes oceânicas e, claro, as estrelas. Existe uma história interessante sobre polinésios que eu li há algum tempo relacionada com viagens no Pacífico. Eles costumavam estudar a cor das nuvens no horizonte e se eles vissem uma tonalidade verde debaixo de uma nuvem eles sabiam que uma ilha estaria por ali, muito tempo antes de se tornar visível no horizonte.
TD – No passado recente (depois da Segunda Guerra Mundial), os processos capitalistas têm mudado face da viagem como conhecimento e descoberta, tendendo a reduzir diferenças, pondo as diferenças de países, lugares e culturas num mesmo nível e standard (por alguma razão se chama globalização), e hoje os novos media conduzem ao atrofiamento dos corpos, a viagem torna-se virtual. Sempre viajaste (mar, cidades, rios, Estados Unidos, Ásia, Europa, África) e no teu cinema a viagem é muito importante, podes falar um pouco sobre isso?
PH – Wanderlust. Não sei se foram as Flatlands do sul do Michigan onde eu nasci, ou o facto do meu pai ter partido para o mar muito cedo, ainda jovem, ou de ler histórias de Jack London, mas desde tenra idade que tenho um desejo muito forte para experimentar o mundo. Quando arranjei os meus papéis de marinheiro aos 18 anos em Detroit, comecei a viajar nos Great Lakes. Tinha visões de todos os grandes portos do mundo na minha cabeça e partia para sítios tais como Toledo, Ohio, Alpina, Michigan e Gary, Indiana. Tempo de redefinir a bússola. Poupei o meu vencimento durante dois meses e comprei um bilhete para Honolulu, Hawaii. A primeira vez que fui ao edifício do SUP (Seaman’s Union of the Pacific) e registei-me, o expedidor perguntou “Ó miúdo, queres ir a Calcutá?” O meu coração saltou. Dois dias depois, eu zarpei num navio a vapor: o SS Norbato Capay, que estava carregado de trigo para ser distribuído na Índia durante uma crise de fome. Esta experiência mudou a minha vida e nunca mais olhei para o mundo exactamente da mesma maneira.
TD – Eras um grande leitor de literatura de viagens (Stevenson, Melville, Conrad) e, se sim, constituiu outra influência para ti?
PH – Sempre adorei ler, mas nunca me vi como um intelectual. Lia muitos livros que o meu pai lia. Ele era um grande romântico. Ele lia sobretudo livros de aventuras heróicas: Kon Tiki de Thor Heyerdahl vem-me à cabeça. A minha primeira paixão foi a pintura. Li muitos livros conhecidos sobre a vida de artistas: Lust for Life sobre Van Gogh e The Agony and The Ecstasy sobre Michealangelo, como já referi, livros de Jack London e a biografia sobre London, Sailor on Horseback. Irving Stone era grande lá em casa. Mais tarde, conheci Conrad, e por alguma razão adiei Melville, que tenho lido nos últimos anos. O meu gosto literário está espalhado para todo o lado, mas eu ainda aprecio muito literatura de viagens. The Road to Oxiana de Robert Byon e Song Lines de Bruce Chatwin são dois favoritos. Estou neste momento a ler The Impulse to Preserve de Robert Gardner e apercebo-me que a sua escrita é tão perceptiva quanto os seus filmes. Ele tem sido muito importante para mim desde que o conheci em Harvard em meados dos anos 70 e vou-lhe estar sempre em dívida pela sua generosidade e paixão pelo cinema, e enquanto alguém que vive no mundo.
TD – Trabalhaste no Canyon Cinema, fundado por Bruce Baillie, e quando começaste a trabalhar enquando realizador, a cena do filme experiemntal era caracterizada (não unicamente mas maioritariamente) pelo “filme lírico” de Brakhage e Baillie e o “filme estrutural” de Snow, Sharits, Frampton e outros. Os primeiros focavam-se no que é chamado “o olho deseducado”, imagiário belíssimo, política da beleza. Os segundos na desconstrução do aparato, mostrando a maquinaria do cinema. Considerando que isto são apenas fórmulas (olho/mente), posso dizer que tu estavas (e ainda estás) mais interessado num cinema do olho ao invés de um cinema da mente? De qualquer modo, qual era a tua posição frente a estas tendências do cinema experimental quando começaste a fazer filmes?
PH – Eu nunca sei ao certo onde me situo no contexto do avant-garde. No final dos anos 60, era um projeccionista no Canyon Cinema, pelo que estava completamente imerso na cultura do cinema experimental e admirava muito realizadores: Mekas, Nelson, Conner, Menken, Brakhage, Baillie, Deren, Anger, Snow, etc. Muitas das minhas influências artísticas vêm dos meus professores de arte chinesa e japonesa no Hawaii.
Eu costumo dizer às pessoas que me situo na “reta-guarda” no meu desejo de fazer regressar o cinema à paisagem pré-narrativa, em que o fenómeno da imagem em movimento está sob foco. Não me vejo como um artista ao nível desses realizadores. Eles eram tão expressivos e verdadeiramente criativos com o medium. Penso que me inclino na direcção da antropologia. É também importante de perceber que eu era jovem, eu não pensava em “contexto”, mas simplesmente em ser fez a fazer filmes. Vivia o dia-a-dia tentando permanecer à tona.
TD – Podes descrever o tipo de relação que mantinhas com as tendências artísticas dos anos 60 e 70 (arte minimal, conceptual, eartworks)?
PH – Penso que as minhas influências “artísticas” vieram da minha exposição a uma variedade grande de pintura e escultura. Costumo pensar em Giorgio Morandi e da simplicidade da sua natureza-morta como um trabalho que engloba essas influências de uma maneira profunda, mas, contudo, subtil. Estudei escultura e realizei happenings nos anos 60 que me levaram a fazer registos desses acontecimentos em 8mm. Estudei um pouco Bruce Nauman, que me apresentou à arte conceptual. Ele era como um monge e dizia poucas palavras. Ele era inspirador pela forma como usava os materiais de uma maneira muito redutiva. Experienciei um happening de Alan Kaprow que abriu portas. Ele reuniu um grupo de estudantes no pátio da SF Art Institute para desenharem silhuetas com giz de todas as sombras, depois redesenharem as sombras várias vezes. Os resultados eram muito belos. Pensei sobre o movimento da luz de um modo diferente.
TD – Por vezes, nos seus filmes aparecem chaminés, pilões, campos abertos, comboios, e especialmente “naturezas-mortas” à la Ozu. Em New York Near Sleep for Saskia (1972), a certa altura, a luz repousa numa garrafa de leite, a luz vem e vai, enquanto um filme de Yasujiro Ozu termina. Mas, para dizer a verdade, os filmes de Ozu não têm nem princípio nem fim. Não quero estabelecer aqui qualquer conexão formal estrita entre os teus filmes e os filmes de Ozu, mas eu vejo nos teus filmes uma espécie de dialecto da permanência e da mudança que me remete para Ozu. Os teus “diários de bordo” através de mares, cidades, e rios, contando e mostrando o tempo a ser, eles são uma viagem na percepção, sempre experiências e não somente representações. O eco do mundo no qual a música ressoa para os teus olhos. Como é a tua relação com o chamado cinema representativo-narrativo (classicismo hollywoodiano, cinema europeu de autor, etc.)?
PH – Quando vi pela primeira vez Tôkyô monogatari (Viagem a Tóquio, 1953) em Nova Iorque, no ano de 1974, algo importante se desencadeou em mim. Vi vários filmes japoneses nos anos 60 quando vivi no Hawaii, mas estes filmes eram sobretudo filmes de acção, como Akahige (O Barba Ruiva, 1965), Yojimbo (Yojimbo, o Invencível, 1961), etc. Ozu lembrou-me de quão importante era minimizar o cinema e quão importante a pintura chinesa era para mim enquanto uma referência artística primordial. O meu pai adorava Tati e apresentou os seus filmes no final dos anos 60 numa associação cinéfila que ele estabeleceu em Detroit. Fiquei muito contente de redescobrir os seus filmes nos anos 60 em São Francisco e convencer os meus amigos a vê-los. Senti-me um verdadeiro cineasta. Claro, os anos 60 foram muito importantes para a minha geração em termos de educação para a expansão narrativa do cinema. Ver Godard, Fellini, Antonioni, Satyajit Ray, etc.: esta foi a forma como aprendemos um mundo mais largo. O cinema russo era sempre projectado nos escritórios do Progressive Labor Party em São Francisco e foi igualmente importante mas de uma maneira mais formal. Só desde que comecei a ensinar comecei a desenvolver alguma perspectiva sobre os filmes de Hollywood, alguns dos quais eu muito admiro: Keaton, por exemplo, pelo seu uso brilhante do espaço físico. Os meus estudantes sabem sempre muito mais do que eu.
Lembro-me de quando dava aulas na SUNY Purchase no início dos anos 80 e costumava viajar regularmente com o historiador do cinema Tom Gunning. Ele falava sobre este ou aquele filme e ele bem que podia falar numa língua estrangeira. Mantinha-me calado e limitava-me a assistir ao passar da paisagem. O ofício narrativo do cinema é tão complexo que muitas vezes recuso dar-me a ver como realizador. Filmei alguns filmes narrativos para outra pessoas ao longo dos anos, pelo que tenho um grande respeito pelo processo, mas o que faço é muito minimal. Porque vim do background das artes de estúdio, quis fazer filmes numa base diária, como quem vai ao estúdio todos os dias ou, no meu caso, para a rua. Apercebi-me quão custoso era o processo, por isso fui imperativo comigo mesmo em tornar tudo simples. Digo sempre às pessoas “só preciso de mais rolo de filme”. Um dos meus filmes favoritos é In the Street (1946) de Helen Levitt, que era mais conhecida como fotógrafa. O filme é apenas isto: imagens de crianças a brincarem nas ruas de Manhattan nos princípios dos anos 50. A simplicidade do filme é espantosa. Normalmente mostro aos meus estudantes uma história condensada da fotografia no começo do semestre e refiro-me às fotografias como filmes muito curtos. Há qualquer coisa que me atrai em ter limitações. Há uma passagem bela do escritor James Agee, que trabalhou com Levitt nuns quantos filmes. É de Let Us Now Praise Famous Men, a sua colaboração com Walker Evans. “For the immediate world, everything is to be discerned, for him who can discern it and centrally and simply, without either dissection into science, or digestion into art, but with the whole of consciousness, seeking to perceive it as it stands: so that the aspect of a street in sunlight can roar in the heart of itself as a symphony, perhaps as no symphony can: and all of consciousness is shifted from the imagined, the revisive, to the effort to perceive simply the cruel radiance of what is.”
Toni D’Angela