Num artigo encontrado na internet sobre o livro D’Este Viver Aqui Neste Papel Descripto, que compila cartas que António Lobo Antunes enviou à primeira mulher durante a sua estadia em Angola durante a guerra colonial, e que serve de material de base à terceira longa-metragem ficcional de Ivo M. Ferreira, o escritor revela: “O que sinto perante aquelas cartas é muita ambivalência”(…) nunca pensei publicá-las e não sei se têm valor literário, porque onde jogo a vida é nos livros que agora escrevo. Mas quem sabe sirva para que as pessoas compreendam o horror da guerra e a destruição de uma geração.” Nestas palavras parece já ensaiar-se o dilema que o realizador se colocou (e com ele o espectador): se é certo que a intimidade não deve ser por norma objecto de violação, também é verdade que a guerra colonial essa, para ser finalmente compreendida e exorcizada, só o pode ser a golpes de violenta intimidade.
Em que ficamos, então? Ivo viu a sua esposa grávida, Margarida Vila-Nova (que no filme faz de mulher de Lobo Antunes, Maria José), a ler o livro e apaixonou-se ele próprio pelas palavras de amor infinito e destruição do escritor, puxando-as para o centro do seu projecto. Neste centro brilha então um “diamante” colonial, forjado em terras de Angola, cujo fulgor iluminaria não só o imaginário bélico do passado recente português, como os sentimentos universais de saudade, perda, decepção, desejo, por aquelas palavras evocadas. A questão que se coloca é que a escrita torrencial de Lobo Antunes, sendo sob a aparência um canivete-suiço que permitia estas múltiplas portas de entrada num projecto único, esconde afinal uma subterrânea, mas muito conhecida, guerra: a luta entre a literatura e o cinema, ou simplificando, da palavra contra a imagem.
Usualmente, para evitar essa “sangrenta batalha” há duas saídas recorrentes. Uma é a trégua da imagem, isto é, quando esta ilustra o movimento literário. No caso, Ivo M. Ferreira raramente opta por esta solução. E não o faz pois estas cartas não têm uma condução linear dramatúrgica que possa ser propriamente ilustrada. O que se faz em Cartas da Guerra é contextualizar situações chave que deram origem a estas cartas: a desesperada passagem do tempo que não passa quando se ama alguém distante, as patrulhas no mato, os momentos de observação e escrita de António (Miguel Nunes), os jogos de xadrez com o capitão (João Pedro Vaz), os feridos estilhaçados por granadas, os momentos de fraqueza e medo dos soldados, os abusos sexuais das autóctones, etc.
Tais cartas, tais palavras que Ivo solta, constituem o derradeiro proto-romance de Lobo Antunes, compostas afinal, elas próprias, por selváticas e indomáveis imagens, que apenas o silêncio deixa conter.
A segunda forma de evitar um confronto som e imagem é o “regime colaborativo”: o que podem afinal as imagens de Ivo trazer de acrescento, ou complemento, à prosa epistolar e paranóica de Lobo Antunes? O realizador intui e bem, que não só as emoções e episódios descritos podem ser por si interpretados visualmente, como a profundidade das palavras de Lobo Antunes, ao “embater” no fundo da alma de Ivo M. Ferreira, poderão espoletar neste um mecanismo poético de composição que estetiza, que extrai detalhes de composição (como o céu que relampeja em momentos de desespero, ou o evocador rosto da menina que António encontra no mato, como oposição aos rostos entrevados no branco e negro dos soldados na noite de Natal, etc.).
Mas o problema é grande. Pois esta tentativa de “fuga para a frente” às palavras de Lobo Antunes, fazem Cartas da Guerra entrar numa outra armadilha: a filiação com o cinema ele próprio. O preto e branco, por exemplo, não só deseja evocar um passado reconhecível aos portugueses como tenta dialogar com Tabu (2012) de Miguel Gomes ou mais atrás com Um Adeus Português (1985) de João Botelho. Se de ambas as comparações não há como o filme de Ivo M. Ferreira não sair um tanto maltratado, que dizer das planos abertos, dos contraluzes, das penumbras e das sombras que de repente, consciente ou inconscientemente, “Terrence Mallick-izam” o imaginário colonial português, trazendo-o para uma espécie de gravidade graciosa e desesperada?
Alguns textos que li “culpam”, na sua apreciação do filme, o excesso de palavras. Esta torrente impede o pensamento das imagens? A querela é centenária, sabemos. Ivo M. Ferreira, tal como se apaixonou por estas cartas, percebeu que deveriam ser elas o centro de Cartas da Guerra. Nelas as palavras são uma constante, uma voz off que é afinal uma verdadeira voz in. Entre todas as coisas inacreditáveis que nestas palavras ditas se escondem uma expressão de António surge simbólica: ele conta como, a dada altura, andava “forrado de silêncio”. Este forro de silêncio, estratégia de sobrevivência emocional para o autor, revela-nos também que o projecto de Ivo M. Ferreira não tem como não acabar condenado ao fracasso. É que tais cartas, tais palavras que Ivo solta, constituem o derradeiro proto-romance de Lobo Antunes, compostas afinal, elas próprias, por selváticas e indomáveis imagens, que apenas o silêncio deixa conter.
Chegamos então, finalmente, a esta ideia de que a literatura de Lobo Antunes não consente nenhuma trégua ao cinema. Ela produz uma luta canibalesca com as imagens de Ivo M. Ferreira, devorando não só as imagens deste como impondo a complexidade emocional das suas próprias imagens. É por isso que o espectador de Cartas da Guerra sente um esforço vão de um projecto bem intencionado. E, assim, quando não se estão a criar situações reconhecíveis ao género “conta-me como foi na guerra colonial” ou a esteticizar momentos que dificilmente se mantêm de pé, isolados, as “imagens epistolares” do escritor encontram um universo visual que, na ânsia de querer adensar a profundidade do que é dito, acaba por tentar arrastar as palavras para uma noção, afinal tão banal, de suposta singularidade poética e emocional. Felizmente, sabemos quem vence afinal esta “batalha colonizadora”.