Num belíssimo artigo sobre a pintora Maria Helena Vieira da Silva, de nome Vieira da Silva: a verdade das rotas, Margarida Acciaiuoli afirma que olhar a obra da artista é necessariamente olhar a rota da pintora e da mulher. Mas, mais importante, acrescenta que “o acabamento, a finitude formal e temporal dos seus quadros não é senão provisória (…) porque aí não se encerram caminhos… (…) tanto na arte como na vida, a sede de infinito é a única verdade de todas as rotas”. Obras que não encerram caminhos poderá ser talvez o lema dos Filmes Fetiche que compõe esta nova série que o À pala de Walsh agora inicia (a primeira está aqui) e que preencherá os domingos dos próximos meses. Esta série reflectirá o interesse que o À pala de Walsh vem dedicando à prática dos vídeo-ensaios, incluindo vídeos dos nossos colaboradores, mas também de alguns convidados assim como outros tantos do curso livre O Ensaio Audiovisual e a Crítica de Cinema como Prática Criativa, co-ministrado pelo nosso walshiano Luís Mendonça.
A estética do inacabado não é propriamente moderna (nem pós-moderna), muito pelo contrário, funda-se com o renascimento e vem-se reconvertendo em múltiplas formas artísticas ao longo dos séculos (ainda que paradoxalmente os também os renascentistas abominavam o inacabado e terminavam muitas estátuas incompletas ou lacunares, à cabeça o escultor Cellini). Agustina Bessa-Luís (amiga próxima da pintora) é uma praticante deste estilo non finito e sobre o tema proferiu em 1983 uma conferência intitulada ‘Menina e Moça’ e a Teoria do Inacabado onde afirmou, explorando a homónima novela de Bernardim Ribeiro, que:
“A novela de Bernardim, tal como a obra da Sixtina, não pode ser lida como história moral – é uma tragédia cósmica. Acidentes, diálogos, presenças mudas, tempo e paisagem, tudo está sujeito a uma rotação sem desenlace e que é o discurso do inacabado. (…) Só o que é incompleto aprofunda a noção de nos encontrarmos cativos dentro do próprio acto criador.”
Atente-se que se refiro a pintura de Vieira da Silva e a literatura de Agustina não o faço bem por acaso; sobre a primeira afirmou José Augusto França que as suas obras o remetiam para o “truque cinematográfico” da parede de tijolos destruída cuja imagem projectada exibe a sua reconstrução em movimento contrário, e sobre a segunda Manuel Antunes referiu os processos como a “a repetição e a visão directa e imediata, o método cinematográfico do flashback, e a prospectiva implícita”. Ou seja, muito do que é a obra destas duas mulheres é de influência cinematográfica e portanto não será impensável que muito dos olhares sobre o cinema possam ser também influenciados por elas.
Quero no entanto chamar ainda a atenção para a perspectiva romântica sobre a ruína como foi sublinhada por outros artistas, em particular aqueles do romantismo, como destaca Dominique Païni num artigo intitulado para uma moderna estética das ruínas:
“O gosto e o encantamento poéticos pelas ruínas são, por excelência, predisposições românticas. Entre os poetas podemos considerar Baudelaire o primeiro crítico e teórico da arte a admitir, a ‘confessar’, o seu interesse — segundo ele próprio disse por ocasião do Salão de 1859 — pela exposição do mutilado. De Winckelmann — o belo ideal na perfeição do fragmento — até Rilke comentador de Rodin, o incompleto, o fragmento, o mutilado não deixaram de ter uma presença crescente nos museus, no imaginário dos artistas e na teoria da arte.”
Se de facto o non finito e as ruínas que referi até agora são-no de facto, isto é, estilo formalista e obras em decadência, quero propor, como mote para esta série de Filmes Fetiche a ideia do espectador de cinema como aquele que se encontra com o filme em modo non finito e para o qual a experiência do cinema é sempre uma ruína amorosa, um amontoado de imagens perdidas, emoções devassadas e memórias esquecidas. O conceito de cena imaginada como vêm descrevendo e ensaiando Adrian Martin e Cristina Álvaréz López é um que me interessa reconhecer como propósito subliminar (e inconsciente, diria mesmo) que perpassa a prática do vídeo-ensaio e, como tal, dos Filmes Fetiche que esta série apresenta.
Mas não só a dupla de vídeo-ensaístas considerou este conceito, Catherine Grant escreveu algo semelhante num artigo recente para a revista Aniki, onde refere o desejo de “bring my version of that ‘hidden film’ into audiovisual existence”. Nesse mesmo artigo refere os processos reconstrutivos e criativos do espectador descritos por Paul Sutton como aquele que recria o filme de que se recorda.
Aliás, Grant, juntamente com Christian Keathley, no artigo The Use of an Illusion: Childhood Cinephilia, Object Relations, and Videographic Film Studies promove um olhar sobre o gesto vídeo-ensaístico como uma manifestação do fenómeno transicional descrito por Winniccot na relação conflituosa e em constante complementaridade entre a realidade concreta e a realidade fantástica de uma criança enquanto brinca — o fenómeno descreve os momentos de relação intermédia entre o real recebido e o real construído pelo próprio —, prolongando a descrição do fenómeno além da cinefilia para a manipulação efectiva/afectiva do objecto fílmico. Assim, o vídeo-ensaísta será um espectador motivado pela relação incestuosa entre a concretude do material fílmico que corta, remonta, manipula e cola (como a criança que arranha, maltrata e arranca os olhos do seu boneco) e que ao mesmo tempo se deixa seduzir pelos encantos mágicos daquilo que o filme lhe oferece (é o boneco que acompanha as sestas, que toma chá e biscoitos no jardim, que ouve os mais profundos segredos infantis), formando uma ponte entre a análise teórica e a biográfica, entre o geral do filme e o particular do espectador.
O poder “mágico” da associação livre, inconsciente, psicanalítica, onírica é assumidamente um dos motores do trabalho de qualquer vídeo-ensaísta, em conjunto com a relação emocional com os filmes, que os faz privilegiar certos momentos ou cenas em detrimento doutras que acabam rapidamente esquecidas. Assim, a cena tanto pode ser imaginária, como vindo de um filme feito de memórias e cruzamentos associativos, como pode igualmente resultar da relação do espectador com o filme e formar-se no intervalo entre os dois.
Estou em crer que a potência criativa das cenas imaginadas no acto vídeo-ensaístico passa exactamente por ser um espaço ideal para cruzar personagens, universos, géneros, estilos, correntes e que mais, e num acto heteróclito criar momentos simultaneamente narrativos (mais ou menos líricos) e analíticos, simultaneamente conscientes da história das imagens que remisturam e embebidos na noção individual do espectador na sua relação directa com os fragmentos. Um território meta-cinematográifico entre a teoria e a cinefilía, entre o consciente e o inconsciente.