Mais do que um produto do seu tempo, este é um filme virado para o futuro, preocupado com a ideia de como definir um momento singular de forma contra-corrente. Mas é também uma tentativa repetida até ao infinito de escapar a um passado limitador, num gesto que o filme partilha com o seu protagonista, interpretado por Jack Nicholson. É neste paradoxo que encontramos a personagem principal, algures entre uma herança da qual procura libertar-se e um presente-identidade que não lhe agrada, que procura reconstruir, mas que se revela fugidia. Five Easy Pieces (Destinos Opostos, 1970) de Bob Rafelson aparece no fim de uma era – a década de 60 e o movimento hippie a desmoronar-se: os protestos violentos na Convenção Democrática em Chicago em 1968, os festivais de Woodstock e Altamont, os crimes de Charles Manson e o seu julgamento que iria dominar o ano de 1970, e ainda em plena guerra do Vietname, os bombardeamentos no Camboja e a morte de quatro estudantes americanos pela polícia durante protestos anti-guerra numa universidade. Surge também pouco depois de Easy Rider (1969) de Dennis Hopper, no início de uma nova etapa no cinema americano.
Ainda antes de Five Easy Pieces, Bob Rafelson tinha realizado Head (1968), uma comédia surrealista e psicadélica com a banda The Monkees como protagonistas, e tinha fundado uma produtora, Raybert Productions, que mais tarde mudaria de nome para BBS Films, e que seria fundamental na redefinição do panorama do novo cinema americano. Bob Rafelson tinha-se aliado a Peter Fonda para a co-produção de Easy Rider, onde Jack Nicholson participava ao lado de Fonda e Hopper. Bob Rafelson e Jack Nicholson tinham escrito em conjunto o argumento para Head, e Nicholson tinha também escrito o argumento para The Trip (1967), filme de Roger Corman com Peter Fonda. Carole Eastman, a argumentista de Five Easy Pieces, tinha escrito o argumento de The Shooting (1966), realizado por Monte Hellman e com a participação de Jack Nicholson. Para conhecer o legado da produtora BBS, que seria responsável pelo lançamento de obras como The Last Picture Show (A Última Sessão, 1971) de Peter Bogdanovich e Days of Heaven (Dias do Paraíso, 1978) de Terrence Malick, e este emaranhado de ligações e colaborações, há um excelente ensaio de J. Hoberman para a Criterion que pode ser lido neste link. Desse artigo há uma frase de Dennis Hopper a reter: “What we need are good old American—and that’s not to be confused with European—Art Films.” Tornava-se então essencial criar essa ideia de american art films. É neste contexto de mapeamento de uma nova identidade, de procura de independência e emancipação do passado que surge Five Easy Pieces, explorando o conflito interno na América, geracional mas também de classes, reflectido na personagem principal do filme, Robert Dupea.
Uma interpretação sublime de Jack Nicholson que ora recorre à teatralidade física e gestos de pequenas explosões emocionais, ora revela uma profunda subtileza na ocultação da sua agitação interior.
Robert é apresentado a trabalhar num campo de petróleo, imerso em maquinaria debaixo de um sol abrasador, no fim de mais um dia extenuante. A canção escolhida para abrir o filme enquanto vemos imagens de Robert a regressar a casa – a balada country “Stand By Your Man” – é uma das pistas pouco subtis a que o filme recorre para estabelecer a natureza da relação atribulada entre Robert e a sua namorada Rayette (uma estonteante Karen Black), uma empregada num diner local. Robert parece descontente com a vida, e sem paciência para Rayette, envergonhado com a sua presença junto dos seus amigos, e Robert acaba as noites a namoriscar com outras raparigas e a beber com os amigos, enquanto Rayette espera no carro. Toda esta insatisfação consigo mesmo, esta frustração com o mundo à sua volta, é exponenciada pela interpretação de Jack Nicholson, animal ferido aqui ainda a meio caminho entre um actor em afirmação e uma personalidade maior que a vida. É talvez o papel definidor de uma carreira [pelo menos, antes de The Shining (1980)] e uma interpretação sublime, que ora recorre à teatralidade física e gestos de pequenas explosões emocionais, ora revela uma profunda subtileza na ocultação da sua agitação interior. É no fundo um actor a fazer a sua melhor imitação de alguém a encarnar a imitação de um homem comum como um escape, como se estivesse a viver uma aventura, num paralelo entre actor e personagem – como será revelado mais tarde, Robert é afinal muito mais complexo.
A primeira pista para essa vida dupla ou anterior de Robert aparece através de uma sequência que Rafelson desenreda de forma desorientadora e frenética. No caminho para mais um dia de trabalho, ainda de ressaca depois de uma noite de copos, Robert vê-se parado no trânsito, entediado no carro com o seu colega. Quando discerne um piano nas traseiras de uma carrinha aberta, Robert salta intempestivamente para a carrinha e começa a tocar o piano perfeitamente, debaixo de uma sinfonia de buzinadelas, para desconcerto do seu colega e do espectador. Quando a carrinha arranca, Robert em vez de saltar, deixa-se ir, perdido na música. Pouco depois despede-se do trabalho e visita a irmã em Los Angeles, onde descobre a notícia da doença do pai, e decide regressar a casa. O passado que Robert procura renegar começa assim a ficar claro: Robert é, antes de ser um ordinário trabalhador a tentar juntar dinheiro para sustentar o dia a dia, um talentoso pianista que provém de uma família abastada de músicos, que vive numa mansão numa ilha, literalmente isolada do resto do mundo.
Este regresso forçado de Robert a casa, que acaba assim com o seu exílio auto-imposto, é utilizado por Rafelson para marcar o embate entre estes dois mundos opostos. Os simbolismos são evidentes: de um lado, uma família intelectual e de classe alta, erudita e elitista, que vive de forma privilegiada num mundo próprio, alheada da sociedade e das suas convulsões, num ambiente frio e chuvoso onde as músicas são obras clássicas de Chopin e Mozart; do outro, uma classe baixa, impulsiva e de linguagem crude, que vive para o momento e do seu trabalho manual debaixo do sol, em trailers desarrumados e com canções country sobre desarranjos amorosos. Se na sua família as emoções são reprimidas e as aspirações são de elevação artística, durante o seu afastamento Robert vivia um hedonismo niilista, sem grandes pretensões para o futuro, uma vez abandonado o passado. No entanto, nem esse estilo de vida parecia suficiente para Robert, que se encontra mais uma vez numa encruzilhada quando volta a casa, como que perdido num limbo entre estas duas américas.
Se alguém acaba sempre a mudar de sítio, agastado com cada novo cenário, se calhar o problema não reside no sítio mas na pessoa. Rafelson explora essa convulsão interior sempre capaz de emergir a qualquer momento: o filme é pontuado por pequenas erupções iradas de Robert. É como se este vivesse num estado permanente de calma antes das tempestades, materializações efémeras da sua frustração, da sua angústia contra os que estão à sua volta: quer seja contra Rayette, o seu colega de trabalho, a sua família ou até uma empregada num restaurante, numa cena memorável. Ao focar-se no desajustamento de Robert perante o mundo, este é um filme sobre um loser em fuga da sociedade, porque não encontra o seu lugar. Ao desviar o olhar para uma personagem em viagem para lado nenhum, o importante parece ser dar voz a um sentimento de indefinição – mesmo que o rumo traçado seja incerto, é preciso aproveitar o caminho.
Five Easy Pieces de Bob Rafelson é exibido dia 13 de Setembro pelas 21h30 pelo Lucky Star – Cineclube de Braga, na sede da associação velha-a-branca.