Girish Shambu é um dos nomes mais notáveis do que poderíamos definir como cinefilia 2.0. O seu blogue pessoal é um armazém de artigos e referências bibliográficas imprescindíveis para quem quer aprofundar o conhecimento – e o amor – pelo cinema. Além de escrever para várias publicações, entre elas, a revista online Lola, que edita com a ajuda de Adrian Martin, Girish Shambu lançou recentemente um livro que se debruça sobre o impacto das novas tecnologias nas maneiras de partilhar a paixão pelo cinema. The New Cinephilia – que o walshiano Carlos Natálio analisou recentemente para a revista portuguesa Interact – foi editado pela Caboose Books e esteve na base desta conversa realizada por Skype no passado mês de Abril. Esta entrevista foi feita a pensar também na proximidade da LisbonTalk, organizada pelo À pala de Walsh, intitulada “Um novo cinema independente norte-americano”.
Luís Mendonça (LM) – O seu livro The New Cinephilia sustenta uma visão positiva sobre os efeitos da comunicação digital na cinefilia. Quais são para si os aspectos mais benéficos das mudanças que as novas tecnologias da informação operaram no mundo da cinefilia?
Penso que existem vários aspectos benéficos. Um deles prende-se com o facto de termos hoje um maior número de vozes a falar sobre cinema, sendo que durante várias décadas tínhamos poucos escritores que escreviam para um grande número de leitores. Hoje assistimos a uma reversão disso. Penso que hoje há uma larga variedade de vozes, masculinas e femininas, brancas e mulatas, pessoas de todos os cantos do mundo. Há uma diversidade demográfica das pessoas que escrevem sobre cinema. Este seria o elemento positivo mais decisivo. Posso referir outro. Os filmes estão a tornar-se mais acessíveis através de múltiplas plataformas: streaming e outras vias. Isto torna o cinema acessível a pessoas que vivem em qualquer parte do mundo. Isto é também muito bom.
LM – Por outro lado, podia desempenhar aqui um pouco o papel do “advogado do diabo” de si mesmo e dizer-nos quais são para si os principais perigos que a cinefilia enfrenta nesta era das comunidades virtuais?
Uma coisa que muita gente refere é que há demasiada escrita sobre cinema na Internet que é lixo ou que não vale a pena ler. Mas é importante lembrar que, no meio desse enorme oceano de escrita, existe imensa boa escrita, mesmo que a maioria não o seja. Portanto, penso que o que precisamos são mecanismos que filtrem a escrita menos valiosa. Logo, não sei se essa crítica é boa. Existem maneiras hoje de seleccionar o que é bom. Mas para responder à tua pergunta: penso que um dos efeitos negativos é que os modelos de negócio que são actualmente viáveis estão a tentar excluir a escrita de imprensa. Reparei agora que uma revista como a Film Comment está a aumentar o seu conteúdo online. O que é muito bom, mas pergunto-me: fazem isso em razão de restrições orçamentais? Há um risco em decisões guiadas apenas pelos custos, potencialmente danosas para a crítica de cinema de qualidade que existiu durante décadas. Este é um “contra” possível. Outro perigo, que acrescentaria nesta pele de advogado do diabo, tem que ver com o facto de eu estar nas redes sociais ter afectado a minha atenção, fragmentou-a e estreitou-a. Tenho dificuldade em me concentrar num ensaio longo. Sei que é uma coisa pessoal, com que tenho de lidar. Mas acho que precisamos de ajuda. Uma força de vontade que nos faça prestar atenção, de um modo sustentável, à forma longa da escrita sobre cinema.
Carlos Natálio (CN) – Nas primeiras páginas de um livro de 2011 intitulado The Shallows: how the Internet is changing the way we think, read and remember, o seu autor, Nicholas Carr, escreve que teve de cancelar a sua conta de Facebook, os updates do seu Iphone e ir para um lugar sem ligação à Internet com vista a conseguir concluir o seu livro. De certa maneira, o Girish escreve o oposto no seu livro The New Cinephilia: que precisava da constante estimulação e ruído da Internet para conseguir escrever. Como é que lida com estas constantes interrupções e como é que elas afectam ou não a sua linha de raciocínio?
É verdade. Há tanto conhecimento que usamos a Internet como outsourcing. A Internet tornou-se no nosso grande disco rígido. Não precisamos de nos lembrar de nada, basta-nos pesquisar na Internet. Logo, tornámo-nos dependentes da Internet de uma maneira profunda. Mesmo algo como a boa escrita… A boa escrita nasce sempre de fontes exteriores, ao invés de ser estritamente auto-envolvida. Sinto que tenho sempre de ir à Internet. É difícil de dizer, mas normalmente eu tenho períodos de tempo durante o dia em que não vou à Internet. Por exemplo, eu não tenho um Smartphone. Tenho um velho e estúpido telefone. Portanto, não posso usar a Internet quando ando por aí, quando vou a um restaurante ou café. A não ser que leve o computador comigo, eu sou forçado a ficar sem ligação à Internet. Estas são as coisas que eu procuro fazer para ficar longe da Internet por algumas horas em cada dia.
CN – No seu livro, quando usa o conceito de “mediação” em Gilles Deleuze, fala sobre a ideia de fluxo, de surfar esta espécie de movimento. Para se surfar este movimento é preciso alguma disciplina e auto-controlo, ao invés de simplesmente “deixar-se ir”.
Isso é muito verdade. Penso que, primeiramente, precisamos de alguma intuição para irmos na direcção certa quando surfamos na Internet. Há tantos becos sem saída, espaços inúteis em que podemos ir parar através de hiperligações. Precisamos de intuição e – tens muita razão – também precisamos de saber quando parar, quando devemos efectivamente ficar numa determinada página; ler e pensar e não apenas “marcar” (bookmark) e ir, acabando com milhares de marcadores para páginas que acabamos por não ler. É uma alternância entre surfar e parar e surfar outra vez e parar outra vez.
CN – Nicholas Carr refere que nos tornámos em caçadores de informação que juntam para mais tarde devorar.
O que pode nunca acontecer! (risos)
LM – Ao mesmo tempo, existe também esta – chamar-lhe-ei assim à falta de melhores termos – nova economia da atenção, que está ligada ao facto de a arquitectura da Internet estar menos preocupada em estimular e democratizar o acesso ao conhecimento do que em lucrar com um aumento de “clicks” por página. Deve ser este um problema para as comunidades cinéfilas?
Penso que muitos cinéfilos na Internet não estão ligados a questões de dinheiro. Muitos não são profissionais nessa área, eles têm habitualmente outros trabalhos. É uma pena, porque significa que não podemos viver da nossa paixão. O lado bom prende-se com o facto da economia desempenhar um papel menor nas comunidades cinéfilas, ao contrário do que se possa passar, por exemplo, no jornalismo, onde vemos todo este “click bait”. É, portanto, um problema menor nas comunidades cinéfilas.
CN – Acha que enfrentamos o risco de começar a falar mais e mais sobre pedaços de filmes que, na realidade, nós nunca vimos na íntegra?
Esta é uma questão complexa. Eu sou um pouco antiquado. Recuso-me a entrar numa conversa em torno de um filme que eu não vi na íntegra. É algo que aponto no Facebook: “não deves dizer isso se, na realidade, não viste o filme”. Há uma maneira de culpar as pessoas, desencorajando-as a falarem sobre filmes que não viram. Tornou-se muito fácil ler quatro ou cinco artigos sobre um filme e ter uma opinião sobre um filme, mesmo sem o ter visto. Penso que isso é uma coisa terrível. Ao mesmo tempo, também sempre fui atraído por esta ideia de Andy Warhol, segundo a qual os filmes podem, por vezes, ser vistos em partes. Havia festas na Factory, onde ele tinha filmes a serem projectados nas paredes. As pessoas viam 10 minutos e depois seguiam. Percebo isso, mas eu sou antiquado. Preciso de ver um filme de início ao fim. E não parar de cinco em cinco minutos. Preocupa-me esta cultura do comentário, de querer comentar tão facilmente uma coisa por ter lido algo sobre ela.
CN – Cada vez mais, cenas, gestos e diálogos de filmes circulam online, separados, usados como formas de expressão e comunicação entre as pessoas. Por exemplo, hoje em dia não se usa apenas “emoticons”, podemos enviar uma cena inteira de Chaplin para expressar alguma coisa. Acredita que este pode ser um sinal de um novo paradigma de comunicação entre as pessoas que terá o cinema como principal foco?
Eu acredito que nós estamos constantemente a acrescentar coisas ao conjunto de ferramentas da comunicação online. Tivemos emoticons e agora temos emoji, gifs e cenas de filmes. Não estou certo que isto prejudique a nossa capacidade para comunicar online, mas é uma forma muito limitada de comunicação. Não sei antever o futuro disto. Talvez seja uma moda que irá morrer um dia. Para mim, é divertido, é uma forma de apropriação do cinema muito inventiva, à maneira da cultura pop.
CN – Falando de outro fenómeno recente, os ensaios audiovisuais. Acha que deve haver uma diferente valorização desses ensaios no tocante ao seu valor estético e crítico ou o objecto devia ser apreciado como um todo?
Penso – e se calhar este é o modernista ou pós-modernista em mim a falar – que é bom pegar em obras de arte, apreciá-las em pedaços e depois montá-las outra vez e apreciar o todo. Penso que podemos fazer as duas coisas. Diria que os ensaios audiovisuais existem numa espécie de espectro entre, por um lado, os muito pedagógicos, analíticos e críticos; por outro lado, os que são qualquer coisa como Histoire(s) du cinéma (1988-1998) de Godard, que é uma obra muito esteticamente carregada, com um impulso quase avant-garde. Gosto que exista este espectro e acho que os ensaios audiovisuais podem funcionar em qualquer lado dentro dele, desde que nos ensinem algo sobre cinema.
LM – Sei que escreveu sobre ensaios audiovisuais, mas alguma vez fez um?
Não fiz, não. Tenho procurado aprender a usar as ferramentas, mas não fiz nenhum até agora. Só os tenho visto, mas em cada ano que passa eu quero fazer, porque tenho muitos amigos que fazem. Gostaria de me juntar a eles.
CN – Os ensaios audiovisuais têm sido seleccionados para festivais de cinema e colocados ao lado de curtas-metragens. Estaremos a caminhar no sentido de uma perfeita indistinção entre o gesto artístico e o gesto académico e crítico?
Não penso que fazer uma distinção dura entre os dois gestos seja sempre necessário. Se olharem para a história da arte, para a arte do princípio do século XX, e depois para a arte mais conceptual de um período tardio do século XX, os paradigmas são tão diferentes e, contudo, agrupamos tudo e é arte. Está bem considerarmos os dois filmes, a partir do momento em que obtemos algum tipo de valor. Alguns dos ensaios mais aventureiros devem ser incluídos em festivais do cinema, ao lado de outros media de imagem em movimento.
LM – Juntamente com a defesa de um novo conceito de “cinefilia expandida” e “escrita expandida”, o Girish refere no seu livro a importância da mobilidade dos nossos gostos. Que papel desempenha o gosto no pensamento crítico e na escrita sobre filmes?
O gosto é uma coisa fascinante. É importante, porque nos mostra o horizonte dos nossos limites pessoais. Somos limitados pelo nosso gosto. Penso no gosto como um constrangimento. Ao mesmo tempo, não quero ficar privado de gosto, porque isso significaria gostar de tudo. E isso é horrível! Não queremos ir para aí. Mas pergunto-me sempre: “existe alguma coisa em mim que limita o prazer por certo realizador ou filme?”. Por vezes, quero ver-me livre desse bloqueio em relação a um certo realizador. Por exemplo, no ano passado eu não gostava dos filmes de David Fincher. Mas este ano começo a saber apreciar os seus filmes, subitamente. Não sei ao certo o que aconteceu. De súbito, os seus filmes começaram a fazer sentido para mim. Detectei um subtexto cómico em toda a sua obra. Ele é um realizador particularmente cómico. Vemos este gesto cómico na sua mise en scène e montagem. Quando percebi isso, comecei a apreciar os seus filmes. Penso que devemos ser sempre um pouco cépticos em relação aos nossos gostos. Por isso é que ler textos sobre cinema é útil. Assim consigo ver determinado realizador através dos olhos de outra pessoa. Mas sei que há cineastas de que nunca gostarei. Provavelmente nunca gostarei de filmes dos irmãos Coen. Vi todos os seus filmes e não gosto. E acho que nunca gostarei. O gosto é importante, mas é importante para testar. E esse teste pode ocorrer na interacção com outros cinéfilos.
CN – Acha que podemos defender uma cinefilia pessoal móvel e ainda assim concordar com o velho dito da “politique des auteurs” segundo o qual o pior filme de um autor é melhor que o melhor filme de um não-autor?
Ah! Sabem, quando me tornei cinéfilo, eu era muito “autoral”, mas depois apercebi-me que o “autorismo” é apenas uma forma de olhar e apreciar cinema e não pode englobar tudo o que é maravilhoso no cinema. O cinema é maior que o “autorismo”. Vejo muitos filmes, filmes de género, por exemplo, cinema de adolescentes, sobre o qual o meu amigo Adrian Martin já escreveu e adora. Muitas vezes eu nem sei quem é o realizador. Não é, de modo algum, um prazer “autoral”. É um prazer relacionado com a invenção da cultura pop (roupas, gestos, música pop). A mobilidade do gosto deve, então, incluir um movimento para lá do “autorismo”. Devemos amar e suspeitar do “autorismo” ao mesmo tempo.
LM – Estava a pensar na forma como gere o seu blogue. Cada um dos seus artigos são como que uma porta para um vasto universo, não só para os seus pensamentos sobre o cinema, mas também para pensamentos de outros autores. De que maneira é importante para si usar este espaço como uma forma de reunir e promover o que está a ser feito em termos de investigação e crítica pela Internet afora?
Sempre me vi como tendo capacidades muito limitadas. Ver filmes e ler sobre filmes é o que me dá ideias. As minhas ideias só ocorrem quando eu encontro outra coisa qualquer. Essas outras pessoas e esses outros filmes são tesouros muito importantes para mim. Mas encontro vários críticos que escrevem sobre cinema na primeira pessoa e que não reconhecem que aprenderam alguma coisa lendo outra pessoa. É como se dissessem: “esta é a minha opinião”. Mas não indicam o conhecimento que obtiveram em leituras e interacções. A cultura cinéfila devia olhar mais para fora, ao invés de apenas olhar para dentro, expressando apenas pensamentos e impressões íntimas; precisa de ser mais transpessoal e transindividualista. Sempre pensei assim e queria transpor isto, de algum modo, para o meu blogue. Fico tão contente de divulgar alguém quanto de escrever eu próprio uma crítica a alguma coisa.
CN – É interessante dizer isto porque, de uma certa maneira, opõe-se a um certo impulso hedonista da Internet: “bem, eu tenho um espaço e posso dizer o que quiser”. O que diz é o oposto: vê a Internet como uma comunidade que dá e recebe.
Tens razão. A Internet tem esse forte impulso.
LM – O seu post mais recente versa sobre o novíssimo cinema independente norte-americano, mais especificamente, o cinema independente de muito baixo orçamento. Estava a olhar uma lista de filmes que viu e fiquei surpreendido com a quantidade de filmes que estou a perder no que diz respeito a esta produção mais underground. Podemos entender este género de “escavações” como uma tarefa fundamental do crítico de cinema, sobretudo o que escreve online?
Penso que sim. Mesmo nos Estados Unidos, mesmo entre as pessoas que assistem a cinema independente, estes realizadores não serão conhecidos. Mas, sob vários pontos de vista, eles estão a fazer coisas mais interessantes que aquele que é tradicionalmente chamado cinema independente nos Estados Unidos. Muitos destes filmes estão, hoje, disponíveis no Vimeo – os realizadores fizeram upload dos seus filmes. Foi muito fácil para mim escrever aos realizadores e pedir os seus filmes. Eles davam-me a password, não tendo, portanto, de gastar dinheiro enviando um screener [DVD criado para efeitos de divulgação à imprensa]. De facto, os críticos online estão em melhor posição para entrar em filmes que estão mais ligados à cultura online.
LM – Como é que vê o futuro deste, denominado por Geoff King [entrevistado aqui pelo À pala de Walsh], “Indie 2.0”; destas produções de baixo orçamento que saem directamente em plataformas online?
Só no ano passado, quando mergulhei neste cinema, que chamei de “micro budget indie cinema”, me apercebi da variedade de filmes que estavam a ser feitos assim. Penso que isto liberta os realizadores para fazerem filmes interessantes sobre uma grande quantidade de temas. E os filmes têm bom aspecto, apesar de terem sido feitos com muito pouco dinheiro. A tecnologia, de câmara e som, melhorou até ao ponto em que é possível fazer-se um filme com aspecto profissional por muito pouco dinheiro. Muitos destes filmes saem de casa e lançam-se para a comunidade; para a Natureza ou para as ruas. Eles capturam o mundo de modo interessante. Há um grande futuro aqui. Mas ainda precisamos de pessoas com uma visão, uma visão sobre o que o bom cinema pode ser. Uma encarnação inicial deste cinema foi o movimento mumblecore, há uns dez anos. Acho que, hoje, o cinema independente fez um longo caminho desde aí. Mumblecore era mais pobre em valores de produção, as câmaras não eram muito boas, as pessoas eram mais narcisistas. Muito mudou desde então. A ambição e o campo de visão expandiram-se. Vamos ver uma grande variedade de filmes a saírem deste movimento.
LM – Não estarão também estes filmes preocupados em fazer o retrato de uma geração e dos seus conflitos?
Sim. Há marcas geracionais nestes filmes. Penso que o mumblecore também era sobre uma certa geração, mas acho que eram filmes menos adultos, mais auto-absorvidos. Não sei ao certo quanto têm a dizer sobre o mundo. Muitos desses realizadores também cresceram. Não gosto dos primeiros filmes de Joe Swanberg, que fazem parte do movimento mumblecore, mas gosto dos mais recentes. Ele casou-se, tornou-se pai, teve de ficar em casa a cuidar do bebé. Ele rodou perto de seis filmes num ano antes do bebé nascer, para poder ficar em casa a cuidar dele enquanto montava essas obras no computador. Esta gente está a batalhar agora numa economia que não é muito solidária com os mais jovens. Conhecemos a situação precária de muita gente jovem hoje. Vemos isso retratado nestes filmes. Poucos são sobre pessoas ricas, normalmente são sobre pessoas de classe média-baixa, que lutam pela sua sobrevivência. Estudantes, pessoas comuns e as suas lutas. Penso que é um cinema mais adulto, comparado com o que já foi.