O que é um filme original, o que é uma versão autêntica? Esta questão é uma que o supervisor do último restauro de Metropolis (1927), Martin Koerber, tem como ponto de partida quando afirma no texto que acompanha a edição em DVD da Masters of Cinema, em que afirma “many have, at some point, seen something on the screen called Metropolis. But what could they have seen? Certainly not the film written in 1924 by Thea von Harbou and directed by Fritz Lang in 1924/1926, because that ceased to exist in April 1927”. No próximo dia 17 de Setembro um Metropolis será exibido no âmbito das sessões do CineCidade – Lisboa na Rua no Museu de Lisboa – Palácio Pimenta às 21h30 com entrada livre, a versão de Kroeber, a mais longa reconstrução até ao momento. Porque me parece que já tanto se escreveu sobre o texto do filme, pensei que talvez fosse menos repetitivo falar da história desses textos, isto é, das várias versões que Metropolis foi tomando e que consequências tem essa constante mutação para o espectador contemporâneo que quer (re)ver o filme de Fritz Lang.

Metropolis (1927) de Fritz Lang — The Complete Metropolis (2010)
Exactamente a propósito de Metropolis convém explorar a fragilidade de conceitos como original e autêntico, já que o filme de Frtiz Lang parece disposto a quebrar, ponto por ponto, as possíveis definições para esses termos. Em 1924 Thea von Harbou escreve o argumento que viria a dar origem a Metropolis, a rodagem do filme inicia-se nesse ano e prolonga-se [no maior empreendimento da Universum Film AG (UFA)], com vista a conquistar o mercado do cinema norte-americano — aliás, a produção do filme foi assegurada por uma acordo entre a Paramount Pictures e a Metro Golden Mayer (MGM), Parufamet, em que a UFA recebia um empréstimo de quatro milhões de dólares norte-americanos para a produção —, com números de actores e figurantes que quebraram todos os recordes da época.
A 13 de Novembro de 1926 uma versão com 4189 metros de película foi apresentada à censura alemã e segundo as suas indicações o filme foi primeiramente exibido ao público, em Berlim, a 10 de Janeiro de 1927, numa versão mais curta que a apresentada à censura a rondar as duas horas e meia de duração (dependendo da velocidade do projector a duração do filme varia). No âmbito do referido acordo, e à imagem do que era a prática comum do cinema mudo, foram feitas versões diferentes para diferentes nacionalidades (o que significa que existiram logo na rodagem diferentes negativos de câmara — filmava-se com câmaras paralelas já que era mais simples e económico obter dois negativos deste modo —, um para a distribuição europeia e outro para a norte-americana, pelo menos), incluindo a versão de distribuição para os EUA com 3170 metros (cerca de 95 minutos, portanto com quase uma hora a menos que a versão da estreia) montada por Channing Pollock. Outras versões foram distribuídas: em Portugal o filme chegou em 1928 com cerca de 80 minutos, e ao que recentemente se descobriu, a cópia de distribuição para a Argentina, Nova Zelândia e Australia terá sido a versão de estreia (ou algo com duração aproximada).
Por influência da versão de Pollock e por receio de não recuperar o investimento, a UFA decidiu encurtar a versão de distribuição para 3241 metros (cerca de 100 minutos), que chegaria às salas alemãs no Verão de 1927. Nem a versão de censura, nem a a versão de estreia terão sido preservadas (pelo menos até à descoberta da cópia do Museo del Cine de Buenos Aires, mas já lá irei). Posto isto, a partir dos anos 1930 começam a surgir os primeiros esforços de conservação, em particular pelo Museum of Modern Art de Nova Iorque (MoMA) que em 1936 adquiriu uma cópia à UFA que já só continha 2550 metros e conservou uma cópia de distribuição norte-americana com 2530 metros. Outros arquivos obtiveram outras cópias, o Staatlich Filmarchiv comprou ao arquivo Nazi em 1945, o Reichsfilmarchiv, uma cópia com 2626 metros da versão alemã e outras cópias surgiram em arquivos como o de Canberra e Moscovo (todas distintas entre si), e o Bundersarchiv Filmarchiv conservou o negativo de câmara da Paramount.
No anos 1970 inicia-se o primeiro esforço de restauro do filme Metropolis, pelo Munchen Filmmuseum, encabeçado por Enno Patalas, tentando reconstituir a versão da estreia de Berlim. O restaurador recorreu a muitas das cópias arquivadas que referi e compôs a sua versão recorrendo aos intertítulos arquivados pela Berlin Film Censorship, fotografias de cena doadas por Lang à Cinemateca Francesa, o argumento de Thea von Harbou e a partitura original de Gottfried Huppert onde se incluem indicações de arranjos ao maestro e pianista, síncronas com o filme. A versão de Enno Patalas é estreada em 1982 e tem 3170 metros (cerca de meia hora a menos que a versão de estreia).

Metropolis (1927) de Fritz Lang — Restored Authorised Version (2001)
A partir da versão de Patalas, Giorgio Moroder concebe a sua versão (que sendo vexada por críticos, historiadores e arquivistas, obteve um enorme sucesso de público por todo o mundo, principalmente nos EUA, incluindo no mercado do VHS) com 82 minutos em que substituiu a banda sonora escrita para o filme por música pop dos anos 1980, sonorizou alguns momentos com efeitos, coloriu o filme segundo a tipologia do cinema mudo (azul para a noite, vermelho para os sonhos e sequências de fogo, etc.) assimilados nos anos 1950 e sem referente à tintagem que Metropolis terá tido na versão de estreia (e que se perdera); substitui os intertítulos por legendas, e cortou algumas (poucas) cenas. Ainda assim a sua versão inclui muito do material descoberto por Patalas e levou a uma audiência moderna um Metropolis muito diferente, não só estilisticamente como filologicamente.
Outros restauros foram produzidos ao longo dos anos, pelo MoMA, Gosfilmofond de Moscovo e os já referidos Staatliches Filmarchiv de Berlim e o Munich Filmmuseum. Todos estes contributos culminaram numa versão (dita mais completa) de 2001 (feita a partir da versão de Patalas) em 2k pela Friedrich-Wlhelm-Murnau-Stiftung (feita com o negativo de câmara da Paramount conservado pela Bundersarchiv-Filmarchiv e por várias cópias de nitrato de primeira geração de vários arquivos de todo o mundo, referidas acima). À imagem do que a versão de Patalas dos anos 1980, a versão de 2001 apresentava os intervalos correspondentes às porções perdidas com intertítulos explicativos ou simplesmente com intervalos a negro. Esta versão editada em DVD pela Fundação Murnau em conjunto com a Kino International, intitulada Restored Authorised Version, e incluiu limpeza e remoção digital de defeitos.
A 1 de Julho de 2008 é descoberto no Museo del Cine de Buenos Aires um negativo duplicado de 16mm, gravado com abertura de som e como tal cortando o que teria sido a imagem da cópia de nitrato na parte superior e esquerda. A cópia tinha baixa resolução e a duplicação havia repetido a deterioração da cópia de 35mm e a sua sujidade (tendo esta cópia de nitrato de 35mm sido destruída após a duplicação). Quando em 1992 a cópia de 35mm adquirida para a colecção de Manuel Peña Rodríguez (um crítico de cinema que guardou a cópia após a sua circulação comercial na Argentina entre 1928 e 1959, a sua última exibição documentada) que o Fondo National de la Arte herdou de Rodríguez , não houve a consciência que aquela versão de Metropolis tinha cerca de 150 minutos, havia apenas o rumor no arquivo do Museo del Cine (que entretanto agregou o espólio do fundo) de uma versão demasiado longa e muito estragada do filme. Foram Fernando Peña e Félix-Didier que, motivados por esse rumor, encontraram e identificaram a cópia e a apresentaram a conservadores e arquivistas que haviam trabalho nas últimas décadas em volta do filme.
Martin Koerber supervisou o restauro que se estreou em 12 de Fevereiro de 2010 no festival de cinema de Berlim. Esta versão inclui todo o material da versão de 2001 e preenche os espaços em negro com segmentos da digitalização retocada digitalmente da cópia argentina (com alguns acrescentos de um cópia da Nova Zelândia descoberta em 2005, quando a primeira estava demasiado danificada), num conjunto de planos e cenas completas que compõe 24 minutos adicionais. Ainda assim duas cenas curtas não puderam integrar a versão de Kroeber dado o estado de degradação da cópia argentina — a versão apresenta cartões explicativos dessas duas cenas. O filme foi editado em DVD e Blu-Ray em 2010 com o título The Complete Metropolis e em Novembro de 2011 a mesma empresa, a Kino Video, detentora dos direitos do filme, re-editou a versão Moroder em DVD e Blu-ray (após várias décadas em que o VHS havia sido descontinuado por questões relacionadas com os direitos da banda sonora).

Metropolis (1927) de Fritz Lang — Versão de Moroder (1984)
Posto isto é justo perguntar se existe uma cópia “original” de Metropolis. Se existe uma versão, ou uma reconstrução, mais “original” que qualquer outra. Se existe um Metropolis ou uma variedade deles: não só dificilmente se conserva um material que corresponda às características técnicas e práticas de um original como a própria palavra implica uma noção de hierarquia das cópias e das versões, que pode ser tida de um ponto de vista qualitativo no que respeita à definição da imagem, mas que induz que essa qualidade pictórica se sobreponha à história que acompanha cada versão e que a torna tão válida quanto qualquer outra.
Paolo Cherchi Usai, um historiador que se tem dedicado a construir uma teoria para o restauro cinematográfico, num artigo intitulado El filme que hubiera podido ser: o el análisis de las lagunas considerado como una ciencia exacta, conclui então que as noções de original e autêntico no que respeita ao cinema são umas que não se podem aplicar, já que esse original está fixado num tempo sempre passado e inacessível, e acrescenta:
“cada acrescento, subtracção, modificação do material original equivale ao nascimento de uma nova entidade, isto é, de uma nova integridade, e cada uma deve ser considerada para todos os efeitos como um novo exemplar original, diferente daquele que foi considerado ‘a primeira exibição pública’ mas ainda assim dotado — de um ponto de vista histórico e teórico — de uma identidade diversa dos precedentes, nem inferior nem superior ao outros de um ponto de vista valorativo.”
Assim, por exemplo, a versão de Moroder de Metropolis é tão válida (e valiosa) como a versão de Patalas, de Kroeber, do negativo de câmara da Bundersarchiv Filmarchiv, como da versão de 80 minutos estreada em Portugal em 1928. Usai defende, como Kroeber, que ninguém pode afirmar ter visto um filme x (ainda mais um cuja historiografia das suas versões seja tão variada e rica como a de Metropolis), mas apenas a versão do filme x do ano tal, e do mesmo modo, um restauro não se deverá apresentar como de um filme x, mas sim, o restauro da cópia tal, com a montagem de uma outra, a coloração doutra ainda, com excertos e interítulos de uma quarta (a ideologia por de trás da edição em DVD de The Complete Metropolis é uma que se funda na mercantilidade do autêntico e do original). Já Giogio Bertellini num importante artigo dedicado à substanciação das noções de restauro, Restoration, genealogy and palimpsests. On some historiographical questions, concorda com esta posição afirmando, no caso de Metropolis, que “the technical recovery of its original edition has to make clear that such ‘originality’ our ‘autheticity’ is not Metropolis’ super temporal essence. Rather, it is simply the semiotic verisimilitude of one of its German prints.” e acrescenta:
“When we ask which is the most original and authentic version of Metropolis, we ask a philological question and a cultural question. The former deals with issues of authorship, production circumstances, and textual evidence. The latter with transactions between film poetics and the cultural density of contingent historical receptions.”
Esta dialéctica entre filologia e contingências culturais e históricas é uma que dominou (e vem dominando) as formas como o restauro é encarado por restauradores, historiadores, académicos e público — ainda que a questão filológica venha sendo combatida paulatinamente. Há pois que olhar os objectos de restauro não através daquilo que eles tentam esconder-nos, mas através dessa evidência meta-cinemática que é a operação consciente das imagens fílmicas. Assim, um objecto como o restauro de The Complete Metropolis, que coloca lado a lado imagens de qualidade cristalina (2K) com outras retiradas da cópia amputada de 16mm, possui três tipos de cartões (os originais em alemão, os traduzidos do espanhol e outros explicativos no que respeita às duas cenas que não eram já recuperáveis, cada um com diferentes fontes tipográfica ) e o facto de tudo ser agora exibido com a precisão do digital torna evidente que The Complete Metropolis não é definitivamente Metropolis (1927). Aliás, é muito diferente do que este terá sido. No entanto é um objecto que existe como que um olhar presente para o que pode ter sido esse filme que deixou de existir para sempre em 1927 — e que revela o percurso físico dos materiais, as convulsões e os cortes, enfim, que mostra o tempo a agir. Um olhar digital (no sentido do dígito, do dedo, da intervenção e da manipulação infinita sobre as imagens) que é necessariamente o olhar dos nossos tempos — e que é portanto um olhar que não se pode confundir com o original. Ou como o pôs Luís Miguel Oliveira a propósito da reposição digital de Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958) nas salas portuguesas, “como nunca o vimos e também como Hitchcock nunca o fez”. O restauro é assim, por imposição ontológica, um filme novo. Um novo original.

Metropolis (1927) de Fritz Lang — Restored Authorized Version (2001), The Complete Metropolis (2010) e Versão de Moroder (1984)
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