Pequenas cápsulas que resumem a minha lista de visionamentos nos primeiros três dias do MOTELX.

O que me fascina mais em Don’t Breathe é a forma como torna inevitável que se fale da câmara como sendo um dos protagonistas. Não que o filme se esqueça das personagens – a imersão só acontece porque o drama é convincente e está bem construído. Mas é a câmara que desenha toda a arquitectura dramática do filme do ponto de vista da acção (e poucas são as palavras trocadas aqui, o texto é, portanto, dela, da câmara). Da mesma maneira que o grupo de três jovens, e muito incautos, assaltantes tem um plano para invadir a casa de um aparentemente indefeso homem que, para além de ser um idoso solitário, é cego, o realizador, muito menos incauto, teve de preparar a mesma invasão sob o ponto de vista do que a câmara pode e não pode mostrar. O jogo gato-rato (ou, mais precisamente, o jogo da “cabra cega”) acontece tanto dentro da casa no filme como na casa que é o filme – a câmara mapeia e constrói, divisão a divisão, peça a peça, esta narrativa de parcos elementos dramáticos naquilo que é um trabalho de geometrização do espaço como não via há muito. Fede Alvarez já revelara talento para elevar ao cubo o horror das maldições e possessões demoníacas com o surpreendente remake de Evil Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1981), aqui assina um filme que o comprova como um cineasta de corpo feito, saído da melhor escola fincheriana – a homenagem ao realizador de Panic Room (Sala de Pânico, 2002), se não é evidente ao longo de noventa minutos, torna-se ainda mais clara nos créditos finais com as palavras que parecem estar embutidas nos lugares por onde desta invasão dupla passou. O MOTELX 2016 começa da melhor maneira.

Primeira coisa: se não é um apreciador do cinema de De Palma, recomendo que pare de seguir este site. Segunda coisa: se é um apreciador do cinema de De Palma, continue a seguir este site e, já agora, veja De Palma, documentário realizado por Noah Baumbach e Jake Paltrow. Porque inventa um dispositivo original na abordagem ao cinema de De Palma? Não. Porque reúne uma vasta lista de maravilhosos convidados para se pronunciarem sobre a sua obra? Não. Também não. O que De Palma oferece é a receita mais simples que nos dá o melhor ângulo possível para a revisitação da obra de um dos maiores reinventores da história do cinema: o do próprio De Palma. Ele a falar sobre o seu cinema. Filme a filme. Das suas primeiras experiências em 16mm até Passion (Paixão, 2012). Em cada filme, uma história, um detalhe e, de filme para filme, o espectador vai-se apercebendo da dimensão obsessiva da sua obra – os split screens, as steadicams, os longos takes, os motivos parahitchcockianos, etc. Mas a principal mensagem aqui é, quanto a mim, a seguinte: “arranjar forma de tornar uma coisa visualmente excitante”. O pensamento de De Palma é poderosamente visual. Nada subjuga a sua muito particular maneira de ver as coisas. Quantas vezes pudemos assistir a um realizador, a um grande mestre da imagem, abrir o jogo relativamente ao seu cinema – auto-analisando-o com certo nível de detalhe – durante uma hora e quarenta minutos? Muito poucas vezes, na realidade. Com este De Palma, Noah Baumbach e Jake Patrow estão a oferecer uma das prendas mais generosas do ano cinéfilo. Obrigatório.

Tem sido uma das mais nobres dádivas que estes dez anos de MOTELX nos deram: a possibilidade de podermos ir descobrindo em sala o desenrolar da obra de Na Hong-ji. Tudo começou com Chugyeogja (The Chaser, 2008), passou depois Hwanghae (The Yellow Sea, 2010) e, agora, vindo de Cannes, chega Goksung. Do primeiro para este terceiro filmes, nota-se uma assinalável coerência de ideias, desde logo, a mesma atracção pela lenta construção do espaço thrillesco. Os seus filmes são compridos, por vezes extenuantes, porque o que propõem é uma viagem longa, sem interrupções, que nos vai subtilmente colando à existência das suas personagens. É isso que é raro: os filmes de Na parecem existir num perpétuo “estado presente”, que permite, pela fixação espacial do drama, adensar a presença das personagens. E esse adensamento é como uma “injecção de pathos“, que é intensa também aqui, neste The Wailing. Uma praga demoníaca, que aflige uma pequena comunidade sul-coreana, vai tomando conta da existência de um polícia cobardolas, à medida que a doença começa a atacar quem ele mais ama no mundo: a sua filha. O filme começa em registo light, abertamente cómico, aproveitando-se da linguagem corporal, particularmente patusca, do polícia e da sua relação enternecedora com a filha, mas a viagem é longa e o que era ligeiro vai ganhando peso. O filme desenrola-se, lentamente, até atingir o negrume de um filme de terror que, à la William Friedkin, chama a si nada mais nada menos que o Diabo em pessoa. Este mergulho intenso no abismo é o que faz de The Wailing um dos thrillers mais desafiantes dos tempos recentes. Definitivamente, Na Hong-ji é nome para decorar.

Não surpreende que tenha sido pensada à parte, e autonomamente, a famosa sequência do sonho erótico, em que a bestialidade convive harmoniosamente com a “etiqueta” (ou falta dela) do cinema pornográfico. Todo este filme libertino – e libertário – de Walerian Borowczyk desenvolve-se centrifugadoramente a partir desta longa sequência. Sem ela, La bête seria uma espécie de Buñuel desinspirado, oferecendo pouco mais que uma visão jocosa de uma burguesia francesa decadente apoiada numa ideologia cristã corrompida pela hipocrisia e o deboche. Nada de muito excitante. Mas a infame violação da donzela oitocentista pela besta e o seu frondoso “pau” erecto eleva ao delírio o que permanecia morno, sem “imaginação”. Porque nem sequer a violação é uma simples violação, mas sim, verdadeiramente, uma ode à (im)potência do prazer. Se “a bela” nada pode contra a erecção descontrolada que comanda “o monstro” com cio, então só lhe resta usar o prazer como arma, matando o animal com todo o tipo de carícias (com os pés, a boca, as mãos…) e ainda retirando algum gozo do acto. Como é clássico, o caçado transforma-se em caçador. A bela descobre no sexo uma requintada forma de sadismo. É esta a imagem mais poderosa que me fica do que foi uma memorável revisão de La bête, seguida da redescoberta feliz da curta Renaissance (1964), que havia visto, pela primeira vez, no YouTube.

Como duas premissas vagamente idênticas dão resultados tão catastroficamente opostos: The Wailing falava-nos de uma praga que lançava o caos numa pequena comunidade, transformado todos os infectados em demónios com sede de sangue, pois este Phi ha Ayothaya, que aparece neste MOTELX com a fama de ser “o primeiro filme de zombies tailandês”, pega genericamente na mesma ideia, mas com resultados longe de satisfatórios. Talvez por inaugurar um género no seu país, este filme acaba por ser um somatório de lugares-comuns do típico filme de zombies, fracamente apoiado por relacionamentos de novela que procuram enxertar densidade às personagens – a tal existência que é tão intensamente presente nos filmes de Na está ausente aqui. Resta o anedótico da violência gráfica das cenas de acção, onde o que conta é a forma de desfazer em pedaços o próximo zombie. Se o espectador busca este género de entretenimento, pois então recomendo, ao invés, Død snø 2 (Os Mortos-Vivos Nazis 2, 2014). Que é como quem diz: faça o favor de fugir deste The Black Death a sete pés.