Costumo dizer entre amigos que as minhas verdadeiras férias começam com o MOTELX (que, talvez fruto da idade mais crescida, se escreve agora com “X” maiúsculo). É o espaço ideal para libertar toda a má energia que (ainda) persiste do ano de trabalho. A dimensão terapêutica do (bom e, imagine-se, até menos bom) cinema de terror está ainda por apurar. Sabemos, contudo, que gritar faz bem à alma e um bom susto pode exterminar por completo o flagelo dos soluços. Não exageremos: não sou de gritar e raramente dou saltos na cadeira, mas há uma electricidade no ar neste festival que faz bem à saúde. A boa notícia é que esta terapia do horror promete ser uma das mais completas de sempre nesta que é a décima edição do MOTELX, a ter lugar como sempre no Cinema São Jorge, entre os dias 6 e 11 de Setembro. A celebração faz-se notar na criação de uma secção competitiva que inclui longas-metragens de produção europeia e numa boa dose de fantasia e sadismo reservada para as outras “boas velhas” secções. Antecipemos, então, os pontos altos – e os baixos – desta terapia do horror.
Como dizem os americanos, “first things first”. Não precisamos de “inventar” nada aqui: o grande filme a aterrar neste MOTELX é o muito antecipado por estes bandas Don’t Breathe (Nem Respires, 2016). Não é só o trailer que nos chama a atenção. Verdadeiramente o que cativa desde logo aqui é a perspectiva de se ver a segunda longa-metragem de um cineasta que se estreou com um dos mais portentosos filmes de terror dos últimos anos: o remake do clássico de Sam Raimi (que é produtor deste novo filme) Evil Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1981), um olhar diabólico sobre a toxicodependência, que transforma Trainspotting (1996) numa fábula para crianças. Aqui está Fede Alvarez de regresso, já exaltado pela crítica norte-americana como um dos pontos altos do ano cinematográfico. O muito sugestivo trailer deixa entrever uma espécie de inversão de See No Evil (A Ameaça, 1971), magnífico filme do enorme Richard Fleischer, protagonizado por uma personagem cega interpretada por Mia Farrow. Aqui não é a vítima que é cega, mas o vilão. Sugere também o trailer que nesta variante do género home invasion não é o invasor que é o mau da fita, mas, pelo contrário, o invadido. Muitas expectativas para este filme.
Em segundo lugar, destaco o mini-ciclo, com a chancela do colectivo White Noise, dedicado ao excêntrico cineasta polaco Walerian Borowzyk. La bête (O Monstro, 1975) e Docteur Jekyll et les femmes (1981) são os dois filmes a ser apresentados nesta homenagem que será acompanhada de uma masterclass dada por Daniel Bird, Professor inglês especialista em cinema polaco e checo que concebeu a premiada caixa de DVDs da Arrow Films Camera Obscura: The Walerian Borowzyk Collection. É uma oportunidade raríssima para se descobrir ou redescobrir um universo singular, onde se combina, à guisa de um Luis Buñuel extremado, o terror com o erótico e o obsceno. Pela parte que me toca, e já que nunca esqueci o encontro de terceiro grau que tive com La bête quando este filme passou na televisão portuguesa, devo dizer que estou particularmente entusiasmado com a ideia de o ir agora rever na grande tela. Há poucos filmes tão inclassificáveis como este.
Saúda-se também a estreia absoluta do mais recente filme de António Macedo, O Segredo das Pedras Vivas (2016). Esta obra esteve “na gaveta” durante muitos anos, tendo sido exibida em formato mini-série em 1992. Agora finalizada, é altura de a vermos numa casa que sempre acarinhou o cinema esotérico – perto de inclassificável no panorama do cinema moderno português – de António de Macedo. Outra descoberta serão dois filmes fantásticos de Noémia Delgado, cineasta portuguesa conhecida sobretudo pela sua obra de estreia Máscaras (1976), registo etnográfico sobre os caretos de Trás-os-Montes. A Princesinha das Rosas (1981) e Tiaga (1981) são as duas fábulas mágicas, ambas realizadas em 1981, que são objecto de recuperação por parte da equipa de programadores do festival. Estas “escavações” são essenciais para que o MOTELX se afirme como um festival do cinema e da cinefilia e não apenas um evento “cult”.
Outro importante destaque tem de ser dado à vinda do italiano Ruggero Deodato a Portugal para apresentar dois dos seus filmes, ambos lançados em 1980: La casa sperduta nel parco (A Armadilha, 1980) e esse “clássico dos clássicos” do cinema de culto de horror Cannibal Holocaust (Holocausto Canibal, 1980). Este último filme é precursor do género do found footage, pai de filmes como Blair Witch Project (O Projecto Blair Witch Project, 1999) e Cloverfield (Nome de Código: Cloverfield, 2008), título homenageado recentemente por Eli Roth no seu The Green Inferno (Inferno Canibal, 2013). Será interessante ver como a “mitificada” violência extrema desse filme sobrevive ao teste do tempo. Mais uma reposição relevante: a de Tras el cristal (1986), o filme-choque de Agustí Villaronga, cineasta catalão que é um precioso construtor de atmosferas e sensualismo sonoro e visual, tal como puderam comprovar os espectadores portugueses em filmes como El Mar (O Mar, 2000) e Pa negre (Pão Negro, 2010) – sobre este último, escrevi algumas linhas aqui.
Voltando ao presente – porque o cinema não pára -, é bom ver no alinhamento deste festival um documentário dedicado à obra de Brian De Palma. De Palma (2015) é realizado por Jack Paltrow e Noah Baumbach – este último conhecido dos portugueses por causa de filmes como The Squid and the Whale (A Lula e a Baleia, 2005) ou Greenberg (2010) – e promete lançar um novo olhar sobre a brilhante filmografia do autor de Carrie (1976), o clássico dos anos 70 que será projectado, como aquecimento para o festival, hoje, dia 1 de Setembro, às 22h30, no Beco da Rua da Moeda no Cais do Sodré (entrada livre). Na secção “Serviço de Quarto”, a oferta é muita e variada. Por exemplo, poderemos celebrar o regresso de Kiyoshi Kurosawa ao terror, depois da molenguice melodramática que foi Kishibe no tabi (Rumo à Outra Margem, 2015). Kuripi: Itsuwari no Rinjin (Creepy, 2016), história de um ex-detective e as práticas estranhas do seu vizinho, parece ter os condimentos que fazem, por exemplo, de Cure (1997) um dos mais magistrais tratados sobre terror psicológico que o cinema nos deu. Da Ásia, vem também Goksung (The Wailing, 2016), o mais recente filme do sul-coreano Na Hong-jin, que foi mostrado há pouco tempo no Festival de Cannes fora da competição. Este filme sobre uma epidemia e a luta de um pai pela sobrevivência da sua filha promete ser um dos thrillers do ano. De Cannes também chega o último de Olivier Assayas, com Kristen Stewart – depois da bem sucedida parceria em Clouds of Sils Maria (As Nuvens de Sils Maria, 2014). Pelo que se lê das críticas em Cannes, Personal Shopper (2016) é um filme para dividir – não são assim quase todos os filmes do francês?
Mike Flanagan assinou dois filmes este ano. É bom que Hush (2016) não tenha sido o escolhido para esta edição do MOTELX. Se este é um insosso filme de home invasion, Before I Wake (2016) – que ainda não vi – promete ao menos fazer Mike Flanagan regressar à casa onde foi feliz: a do terror psicanalítico de pulsão paranormal. Não sou, longe disso, um entusiasta do seu muito apreciado Oculus (Oculus: O Espelho do Demónio, 2013), uma tentativa falhada de chamar Jean Cocteau ao universo do horror contemporâneo. Todavia, concedo o benefício da dúvida a esta sua mais recente “assombração”. Um filme que estaria aqui a recomendar caso não o tivesse já visto é o terceiro – e último? – tomo da série The Purge de James DeMonaco. O segundo filme da série – e, de longe, o melhor dos três – dava as bases ideais para este mais recente The Purge: Election Year (2016). Queria encontrar aqui um dos filmes políticos do ano. Mas a mensagem política é só um adorno infantil, pretexto para um filme de acção desinspirado, muito aquém do capítulo anterior, que era um cruzamento inusitado – e muito politizado – entre Escape From New York (Nova Iorque 1997, 1981), A Clockwork Orange (Laranja Mecânica, 1971) e La règle du jeu (A Regra do Jogo, 1939).
Importa ainda deixar uma nota de entusiasmo para uma sessão que é bem capaz de valer mais que o filme. Passo a explicar: nem sempre os filmes do MOTELX correspondem às nossas expectativas, mas muitas vezes mesmo os maus filmes encontram o contexto ideal para se agigantarem e elidirem a sua mediocridade. Não sei se será esse o caso de Sadako v Kayako (2016), luta de titãs entre a vilã de Ringu (Ring – A Maldição, 1998) e a vilã de Ju-on (Ju-on: a maldição, 2002), mas digamos que este é o grande “título festivaleiro” do catálogo deste MOTELX, mesmo que o filme tenha tudo para não valer um chavo.
Por fim, vou armar-me em chato para falar de três títulos que esperava encontrar nesta edição do MOTELX, mas que, infelizmente, não fazem parte da terapia. Desde logo, respeitando a jurisprudência, o último de um habitué do festival, Adam Wingard, realizador de You’re Next (Tu és o Próximo, 2011) e The Guest (2014). Inicialmente esta sua obra, um found footage ainda por estrear, foi divulgada em trailer com o título falso The Woods. Num golpe de marketing, esse título caiu a favor de Blair Witch (2016), assumindo-se, assim, como o terceiro filme da saga celebremente iniciada por Daniel Myrick e Eduard Sánchez em 1999. Também esperava ver, na secção Doc Terror, onde passará o já citado De Palma, ou como “extra” da passagem do igualmente referido O Segredo das Pedras Vivas, o documentário Nos Interstícios da Realidade – o cinema de António de Macedo, de João Monteiro, director do festival. Este documentário, há muito antecipado, reúne imagens dos filmes de António de Macedo e testemunhos de várias personalidades do cinema português. Percebo os cuidados em não se ser juiz em causa própria, mas não deixa de se perder aqui uma boa oportunidade – o contexto mais justo, na realidade – para se libertar este documentário.
Posto isto, a grande falta no MOTELX 2016 é, mais uma vez na história do festival, um filme de Ti West. Desta feita, um western – que já foi apelidado de “tarantinesco”, leia-se, com boas doses de humor e violência – protagonizado por Ethan Hawke e John Travolta. In a Valley of Violence (2016) poderá vir a tornar-se um dos filmes do ano – o trailer diz-me isto, sendo que bastava o nome Ti West para eu fazer essa aposta. Teria sido bom descobri-lo na sala Manoel de Oliveira, pela mão do MOTELX. Mesmo trabalhando num género pouco – ou mal – representado dentro do universo do terror, o western, ou nem sequer sendo do terror propriamente, era um título que deveria caber bem no programa deste ano.
Todas as informações sobre a programação podem ser consultadas na página oficial do festival aqui.