Os meus últimos três dias de MOTELX.

Rever um filme-trauma como é Cannibal Holocaust na majestosa sala do Tivoli foi uma experiência, independentemente das qualidades que apareceram aos meus olhos renovadas – até ampliadas – com esta revisão numa cópia nova magnífica. É que o filme joga precisamente com esta ideia, típica no homem branco, de que existem espaços civilizados imunes à barbárie dos primitivos. A requintada sala do Tivoli foi, assim, invadida pelo discurso sulfuroso do filme, que nos torna antropólogos da nossa própria falta de civilidade – “o que as pessoas querem é sensação e violência”, este é o mote dos exploradores brancos que espalham o terror numa comunidade de indígenas da Amazónia que incluem carne humana na sua dieta alimentar. A ironia terrível do filme é que são os ditos antropólogos brancos quem mais canibaliza as vidas alheias, transformando em espectáculo dantesco as suas incursões paracientíficas no “outro” exótico. O filme de Ruggero Deodato é implacável na sua mensagem. Começamos no cerne da civilização, entre as montanhas de ferro e aço da cidade de Nova Iorque, e vamos descendo lentamente até ao coração do “inferno verde” da Amazónia. Saímos desta sessão de bárbara violência transtornados não com o gore indigesto mas, acima de tudo, com o desabafo final do antropólogo que resgatou o filme desse grupo de terroristas brancos: “quem são, afinal, os bárbaros aqui?” O efeito da interrogação transforma a cidade de Nova Iorque – na realidade, todas as cidades! – num “inferno de metal”. É dele que dificilmente saímos ilesos. A nobre sala do Tivoli só ajudou a vincar o sentimento de pertença a esta mui hipócrita parte da humanidade. Não surpreende, portanto, que Deodato quisesse que lhe tirassem uma fotografia ali mesmo, no palco, com a sala cheia a servir de pano de fundo. “Já projectei este filme em vários sítios, mas nunca num como este!”, disse embevecido.

Depositava altas expectativas neste filme. Desencontrei-me com o cinema de Kiyoshi Kurosawa a partir de Tokyo Sonata (Sonata de Tóquio, 2008). Sebunsu kôdo (Seventh Code, 2013) e Kishibe no tabi (Rumo à Outra Margem, 2015) evidenciavam um cinema pouco convicto, amorfo, verdadeiramente sem rumo. Kurîpî: Itsuwari no rinjin prometia um regresso às suas melhores origens – as do terror psicológico, aquele que se instala na cabeça da personagens para contaminar o lugar, devindo pura atmosfera. A sua premissa thrillesca prometia encaminhar Kurosawa para aqui. O problema começa, contudo, com a falta de ligação entre o que o filme promete e aquilo que acaba por concretizar. Esta história de um ex-detective forçado a retomar a sua actividade por força dos comportamentos estranhos de um vizinho é um extenso rol de indícios que não levam a lado algum. A figura da elipse não é uma novidade no cinema de Kurosawa, mas a falta de “ligações” nos seus melhores filmes costumavam ser compensadas por um pensamento formal que está ausente aqui, neste filme esteticamente indistinto, de cores clínicas e câmara perto de apática. Havia um princípio de qualquer coisa mais interessante na história da relação entre o ex-detective e a sua mulher; no modo como um protege o outro no discurso, mas como acabam ambos por produzir o efeito contrário, isto é, de muito indesejável aproximação ao estranho vizinho. Mas não: Kurosawa vira as costas ao íntimo das personagens para se concentrar num xadrez thrillesco que se revelará – para grande frustração do espectador – perto de nulo.

Este filme de Walerian Borowczyk é a milésima adaptação do clássico de Robert Louis Stevenson ao grande ecrã. A história de “Dr. Jekyll and Mr. Hyde” deu origem a várias obras notáveis, mas dificilmente alguma que suplante o clássico de 1931 com realização por Rouben Mamoulian e interpretação por Fredric March. Estamos aqui, de facto, noutro campeonato. Borowczyk tem uma visão muito particular do texto, procurando sobretudo investir na dimensão furiosamente – diria até anarquicamente – sexual da personagem de Hyde. Ele é, por assim dizer, a “bête” aqui, atacando tudo e todos durante um jantar da alta-sociedade inglesa presidido pelo insigne cientista Dr. Jekyll (interpretado por Udo Kier). As tropelias de Hyde justapõem-se às teorias ousadas de Jekyll. Este, com a razão, choca as consciências da época. O outro, com o seu bastão erecto, não pede licença antes de penetrar a carne de mulheres e homens. A razão atacada, implodida, violada. É interessante que o processo metamórfico aconteça numa banheira. Jekyll lava-se do seu ego e super-ego para parir o monstro. O mundo deste é infinitamente mais excitante. E vencerá, claro, num filme de Borowczyk, esse cineasta animado pela carne e pelo sexo. De tal maneira é assim que o polaco acrescenta ao enredo uma espécie de “Mrs. Jekyll e Mrs. Hyde”. O fim aponta para uma noite de prazer como nunca houve na história do mundo. O filme é algo acelerado, em geral não particularmente bem filmado (existe aquela expressão corriqueira: “não é grande coisa”), mas tem o charme dos mais ousados. Mais densa foi a curta que passou antes: uma animação de 1965 intitulada Les jeux des anges (1965). Filme evocativo da experiência dos campos de concentração que nos mostra uma espécie de processamento ininterrupto (industrial) de corpos. É só mais uma peça neste mini-ciclo dedicado a Walerian Borowczk, com a chancela White Noise, que tornou premente aos meus olhos a necessidade de se fazer uma retrospectiva alargarda da sua obra em Portugal.

Às vezes há coisas mais importantes que os filmes. A sessão de O Segredo das Pedras Vivas de António de Macedo, incluída na secção Quarto Perdido, foi paradigmática disso mesmo. A sala Manoel de Oliveira encheu para aplaudir este cineasta maldito, que se eclipsou quase completamente desde o início dos anos 90. O MOTELX tornou o momento ainda mais bonito graças às palavras de João Monteiro, seu director, e da distinção dada a Macedo – esta foi a primeira vez na história do festival que foi atribuído um prémio de carreira. O filme ao pé disto tornou-se secundário. Trata-se de uma remontagem, com cerca de duas horas, da mini-série que passou na RTP por alturas do Natal de 1992. A história explora a mitologia pagã que rodeia os famosos pedregulhos pré-históricos (menires e antas) que estão espalhados pelo país fora, mas que lamentavelmente carecem de uma política pública eficaz de protecção patrimonial. António de Macedo frisou na apresentação: infelizmente, pouco ou nada mudou desde 1992. Esta dimensão, diria, pedagógica e denunciatória do filme mantém-se bem fresca. O objecto tem vários apontamentos curiosos – a paisagem, os actores e os diálogos documentam um certo país, o real e o do cinema, que hoje já vemos à distância. Todavia, esta obra aguenta mal a sua duração. Sente-se, mesmo após a remontagem tecnicamente esforçada, que O Segredo das Pedras Vivas é um objecto televisivo algo datado, que cumpre com o seu propósito pedagógico-natalício e pouco mais. De qualquer maneira, a homenagem a Macedo foi justa, porque foi bela.

Há uma coisa que não pode ser assacada a Olivier Assayas a propósito deste Personal Shopper: por muita especulação mais ou menos paranormal que envolva esta história de uma médium que é “personal shopper” de uma socialite em Paris, a câmara deseja – sabe desejar – a sua actriz. O grande mistério no filme está em Kristen Stewart, na sua desassossegada procura por respostas – ela chama essa procura de “espera”. Assayas saiu de Clouds of Sils Maria (As Nuvens de Sils Maria, 2014) apaixonado não pela diva Juliette Binoche, mas pela assistente Kristen Stewart. A descoberta lenta de uma poderosa feminilidade nesta actriz parece ser o principal assunto – o grande “assunto proibido” – de Personal Shopper. Ou, dito de outro modo: acaba por ser o único assunto que interessa. Isto porque, infelizmente, há muita distracção à volta desta relação intensa da câmara com a sua actriz, nomeadamente derivações de um cinema do paranormal de baixo perfil, que se quer digno da estampa “autoral” do francês Assayas, que, ao contrário do que acontece em outros filmes seus, mais punk, tem medo de “sair da casca”. Fica, portanto, na retina uma mulher insegura que faz da sua beleza natural um pequeno acontecimento dentro de um filme sequestrado por uma certa “pose do vazio”, muita cara ao mais enfadonho cinema de autor contemporâneo.

Já o disse na minha antevisão, mas repito: tem sido fundamental à maturação do MOTELX o seu esforço de recuperação da grande memória do cinema – ou da memória do grande cinema. Não só do cinema português, mas, diria, especialmente do cinema português. Foi esse o caso com a homenagem a Macedo, mas, também na secção Quarto Perdido, a exibição de duas médias-metragens que, como sublinharam na apresentação João Monteiro e o convidado António Loja Neves (jornalista, actor e amigo próximo de Noémia Delgado), provavelmente não voltarão a ser exibidos. Trata-se de dois, de um total de sete, filmes com menos de uma hora que Noémia Delgado concebeu para uma mini-série da RTP2 chamada “Contos Fantásticos”. Todos eles adaptados de textos de escritores portugueses e, pelo menos os dois exibidos, contando com a colaboração do marido da realizadora, Alexandre O’Neill. Na sala 3 teve lugar uma homenagem à realizadora, desaparecida há pouco tempo, mas aqui, um pouco ao contrário do que se passou com António de Macedo, devo dizer que os filmes propriamente ditos foram tão importantes quanto as belas palavras que foram proferidas durante a apresentação.
Tiaga (1981) é um conto rural sobre uma anciã (Isabel Castro) que, sozinha no mundo, sonha com o regresso dos seus verdes anos, porque só eles, volvidos, tornarão útil a sua existência. Visitada por um feiticeiro – que lembra o santo da segunda história de Amore (O Amor, 1948) de Roberto Rossellini -, a senhora não perde a oportunidade para formular esse seu desejo. Eis uma comovente alegoria, musicada por nada menos que Zeca Afonso, sobre o inelutável trabalho do tempo e da morte (vanitas). A Princesinha das Rosas (1981) fez-me pensar nas ficções encantatórias, eivadas de uma espécie de “magia telúrica”, de João César Monteiro (os seus filmes de Trás-os-Montes) e de Éric Rohmer [sobretudo Perceval le Gallois (Perceval, 1978) e Les amours d’Astrée et de Céladon (Os Amores de Astrea e Celdon, 2007)]. História de pescadores, sereias e reis que nos enleia os sentidos. Lanço o apelo à RTPMemória para que tire dos arquivos empoeirados estes maravilhosos contos e os dê a contar aos espectadores de hoje. Parece-me que estamos todos precisados desta magia presa à terra.