É um tema que me tem suscitado uma curiosidade crescente nos últimos tempos: perceber como é que cada pessoa organiza e “sequencia” os seus visionamentos. O homem é um animal regido por hábitos, desde aqueles ligados às suas necessidades mais básicas – dormir, lavar, comer – até aos que nos asseguram a satisfação dos pequenos prazeres do dia-a-dia – cada um tem os seus, pode ser beber um café a meio da tarde ou fumar um cigarro depois das refeições. No mundo hiper-informado em que vivemos, dificilmente algum gesto escapa a um conjunto de considerações que nos faça pesar cada acção. Apetece dizer que até nos gestos mais insignificantes há uma política qualquer que os regimenta. Por exemplo, há uma politização do comer, do como e o que comer. Mas o que dizer do “ver filmes”? Para quem o cinema é um alimento imprescindível, diria até, quase uma questão de sobrevivência, surge a million dollar question: como é que somos levados a ver os filmes que compõem a nossa dieta cinéfila? Pode-se pensar essa dieta como uma espécie de meta-montagem, que põe em relação, na nossa vida, o filme que vimos agora com o filme que vimos antes e vamos ver depois?
Começo pelo meu caso, que não tem sido nada estranho a estas crónicas. O facto de me vincular a este exercício de escavar a programação de cinema da nossa televisão obriga-me a disciplinar mais a minha agenda cinéfila. Mas a consequência aqui confunde-se com a causa. A verdade é que a Civic TV nasce de um hábito que sempre existiu em mim de fixar pólos que dão alguma ordem à sucessão de filmes que preciso de ir vendo. Vejo 2 a 3 filmes por dia. Se um dia passa e não vi um filme começo a sentir a carência própria de um viajante sequioso à deriva no deserto. Ao contrário de alguns amigos meus, que organizam os seus visionamentos como se trabalhassem numa muito criteriosa Cinemateca, eu procuro equilibrar sempre a necessidade de criar esses tais “pólos” com o desejo de sabotar qualquer ordem previsível.
O deleite maior na minha dieta está precisamente nessas “guinadas” que, de repente, me põem a comer gelado no meio de uma dieta livre de lacticínios. Como quando, já neste mês de Agosto, fui desenjoar de um ciclo caseiro de DVDs com filmes do grego Theo Angeloupolos, símbolo da exigência e finesse do mais enfatuado cinema de autor internacional, vendo na televisão essa comédia epicamente deprimida chamada Funny People (Gente Gira, 2009) de Judd Apatow. A televisão, tal como está organizada hoje, permite uma navegação próxima da Internet, através de uma rede de hiperligações. Vejo, por exemplo, Johnny Handsome (Um Rosto sem Passado, 1989) a passar no CMTV às tantas da manhã. Não há personagem aqui, apenas um corpo a ler o futuro de um actor, uma história de desfiguração, contada no rosto de Mickey Rourke, que culminará em The Wrestler (O Wrestler, 2008). Através da box, vou procurar por mais filmes de Walter Hill, alguém que tenho como um dos mais brilhantes cineastas da sua geração. Vejo, pela primeira vez, Supernova (2000), sci-fi sexy que acabou renunciado pelo próprio Hill e redundou num flop de bilheteira. O filme é mau, mas não tão mau como estava à espera. E revejo Wild Bill (1995), bom western crepuscular protagonizado por Jeff Bridges. Depois vou à Internet e apercebo-me que Hill tem um novo filme acabado, (Re) Assignment (2016), que deverá estrear ainda este ano. Começo assim a trabalhar na vontade – ia escrever na necessidade – de o ver, depois, em sala.
O meu relacionamento com os filmes – não com o cinema, entenda-se, que, esse, é como uma linha recta, ou seja, estável e regularmente intenso – desenha sucessivas senoides com uma correlação pouco óbvia entre si. Não é um regime de amor, mas de paixões assolapadas que perdem a chama passado pouco tempo. Nem toda a gente é assim. É uma deambulação que, apesar de tudo, tem o imprevisto apenas como horizonte utópico. Não me iludo: estamos sempre presos a uma qualquer precedência. Pode ser ela um artigo de jornal, a opinião de um amigo, sons e imagens de um trailer, até a sonoridade engraçada do nome de um realizador, qualquer coisa “encadeia” – isto é, monta – os nossos hábitos e faz de nós conscientes decisores, gestores e construtores do nosso eu cinéfilo. Há decisões, modos de gestão e construção melhores que outros? Não creio, mas essa não é a questão central para mim. Parece-me mais interessante que cada um de nós tome consciência dos mecanismos interiores que nos levam a programar as nossas sessões. Esta “tomada de consciência” será também uma forma de muito socraticamente nos conhecermos a nós mesmos, dentro da lógica “o homem é os filmes que vê”. Fica, então, este meu apelo para que o leitor ganhe conta de si e anatomize, como estou a tentar fazer aqui, os seus hábitos cinéfilos um pouco como Luc Moullet analisou a origem dos ingredientes da sua refeição em Genèse d’un repas (1979) ou, antes, da sua própria relação amorosa em Anatomie d’un rapport (1976).
Ayer aparece como apreciador de um cinema gregário de barba rija: homens em bandos, forçados à coabitação, seja por missão ou ofício, que lutam com e contra o seu instinto violento.
Por exemplo, gosto deste nome: David Ayer. Não sei se consigo explicar o “princípio” da coisa, sem cair numa superficialidade de menino da primeira classe. Mas… como dizer de outra maneira? É que gostava de poder dizer – e de arranjar um pretexto para escrever – “David Ayer”, um realizador do cinema contemporâneo que tem “passado” como nome de família. O cineasta do presente é um cineasta cujo nome remete para trás (“perseguido pelo passado”?), cruzando paisagens linguísticas (o inglês e o castelhano). Gostava de dizer ou escrever “David Ayer” nalgum sítio, mas claro que há mais aqui que apenas a sonoridade e o que o nome possa simbolizar. Olhando para a sua filmografia, iniciada em 2005 e que conta já com 6 títulos, percebo que, qual bom auteur, este realizador refaz o mesmo filme consecutivamente, mostrando um apetite especial por histórias sobre criminalidade violenta de rua, envolvendo polícias, traficantes de droga e armas, tensões raciais na América contemporânea, etc.
Aparece, assim, Ayer como proponente de um cinema musculado, feito mais por convicção (guts) do que por uma necessidade de inventar o que quer que seja. Vejo as imagens dos filmes, leio as premissas. Ainda não vi nenhum filme, mas já estou com este Ayer debaixo de olho. Ou será que é ele que me olha de cima, como uma águia, pronto a atacar? Leio críticas positivas a Fury (Fúria, 2014). Deixei fugir esse filme, quando passou nos cinemas e nos canais TVCine. My bad. Mas o nome ainda não me larga. Aproveito, então, para ver a segunda produção de maior monta: aquele que foi o maior sucesso de bilheteiras da passada silly season, o desconchavado Suicide Squad (O Esquadrão Suicida, 2016). Estou pronto para começar esta relação com o pé esquerdo. Sei que Ayer é um homem que gosta de ter controlo sobre o que faz – escreve, realiza e até produz. Mas leio que em Suicide Squad Ayer perdeu o director’s cut e que se queixa do resultado final. Não interessa. Apesar de tudo, vai ser por aqui que vou ao seu encontro. Talvez o “falhanço” anunciado seja aquele que, no fim do dia, mais o possa expor nas entrelinhas. E agora que vi Fury no on-demand e End of Watch (Fim de Turno, 2012) no canal Hollywood, percebo que não estava longe da razão, mesmo quando especulava apenas, primeiro, com a sonoridade do seu nome – e o que ele promete no substrato -, depois, nos cartazes e premissas dos seus filmes e, por fim, nas suas imagens, em clips, trailers e, completas e acabadas, no cinema. Ayer aparece como apreciador de um cinema gregário de barba rija: homens em bandos, forçados à coabitação, seja por missão ou ofício, que lutam com e contra o seu instinto violento. O título do filme protagonizado e produzido por Brad Pitt parece encerrar a força do seu cinema: fúria.
Há uma fúria no mal que combate o bem, mas também no bem que combate o mal. Os polícias formam uma patrulha, os maus formam um gangue. Mas não é esta apenas uma diferença de semântica, isto é, de superfície: patrulhas ou gangues? Um traficante de LA envolve-se num consentido mano-a-mano com um polícia mexicano e perde. Depois conta aos seus camaradas de armas como é a lei das ruas e o código de ética gangsta. Podia estar a falar directamente para o Joker encarnado por Jared Leto em Suicide Squad, cujo life style parece buscar inspiração a um videoclipe de Getto Boys ou N.W.A.. Ele que podia ser cliente gold do mesmo fornecedor de armas ligado ao cartel de droga que opera nas ruas de LA também em End of Watch, filme entre a ficção mais clássica e o registo documental, que se procura situar algures entre The New Centurions (Os Centuriões dos Século XX, 1972) de Richard Fleischer e Law and Order (1969) de Frederick Wiseman. A “metralhadora de Liberace” – como é baptizada pelo polícia interpretado por Michael Peña – salta para o filme da DC Entertainment; directamente para as mãos do coringa cocainado, de fato branco, corpo tatuado, ouro, muito ouro, preso ao pescoço, embutido em anéis, relógio e dentes. Joker é white gangsta.
Especulo muito nestas linhas, até porque anda não vi os outros filmes de Ayer. Mas a especulação é interminável neste caminho que se faz aos galopes, de um conjunto de visionamentos para outro. Antes de ter visto Fury, assisti, pela primeira vez, ao clássico de guerra Fixed Bayonets! (Baionetas Caladas, 1951), numa edição Blu-ray da Masters of Cinema. Será que Fuller também me empurrou para ver esse filme de guerra lançado no ano passado? Porque se trata aqui da mesma pulsão gregária e da mesma violência furiosa, de acções, gestos e sentimentos. E de repente larguei Fuller, larguei Ayer e estou a ver um filme de Zulawski. Porquê? Desta vez não é por causa do nome, mas por um sentimento de obrigação. Só havia visto dois filmes do polaco. E no Facebook fui surpreendido por uma série de gifs estarrecedores de Na srebrnym globie (On the Silver Globe, 1988) (por exemplo, este, este e este). Mas também vejo agora este filme e não outro talvez porque Daniel Bird vem cá, ao MOTELX [a crónica foi escrita antes do festival], e este é um grande especialista no cinema do realizador polaco. A dieta também é movida por essa coisa algo diminuidora chamada “o social”. Quantos filmes não vimos para evitar o ligeiro embaraço de termos de dizer à mesa do café: “ah, pois, esse não vi”?