O QueerLisboa já tem 20 anos e, como tal, com o dobrar da segunda década, torna-se evidente que o cinema que o festival programa já não é, nem faria sentido que continuasse a ser, o mesmo. A começar evidentemente pelo facto da alteração do nome que converteu o Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa no actual termo genérico Queer — conversão historicamente dificultosa mas que se propagou um pouco por todos os festivais do circuito LGBTQI. Isto porque nos dias hoje estreiam nas salas comerciais (e recebem a atenção crítica e de público) filmes que anteriormente dificilmente o conseguiriam: nos últimos meses pôde-se ver The Danish Girl (A Rapariga Dinamarquesa, 2015), Tangerine (2015), Carol (2015) ou Love is Strange (2014). Por isto, é natural que a programação do festival necessite de expandir horizontes estéticos e culturais, olhando com renovado interesse para um cinema marginal com ressonâncias queer. Não sei se 2016 é o ano dessa renovação, mas há sinais de progressiva mudança.
E, pelo segundo ano consecutivo, a passagem à competição da secção Queer Art traz os títulos mais arriscadas. A começar pela estreia mundial do novo filmede Vincent Dieutre, Trilogie de nos vies défaites (2016), que venceu a competição de documentários de longa metragem em 2012 com o magnífico Jaurès (2011) e que depois veria os seus dois filmes seguintes passarem pelo IndieLisboa, Orlando Ferito (2013) e Viaggio nella dopo-storia (2015), tendo-o entrevistado em 2014 para o À pala de Walsh aqui. Outro dos títulos fortes desta secção é, com certeza, Jason and Shirley (2015) de Stephen Winter, que encena os bastidores desse extraordinário marco do cinema (queria dizer documental, mas era reduzir em demasia o espectro), Portrait of Jason (1967) de Shirley Clarke. Não é de estranhar esta revisitação ficcional e crítica já que o filme de Shirley Clarke vem sendo posto à prova dos olhares reprovadores do politicamente correcto e questionando a ética daquele dia de rodagem e do retrato que Clarke fez de Jason. Do Brasil surge A Seita (2015) de André Antônio, oriunda do colectivo Surto & Deslumbramento de onde vem também a deliciosa curta metragem a concurso no festival, Virginity (2015) de Chico Lacerda. É a primeira longa metragem do colectivo e passou pelo Festival Mix Brasil; é um retrato de ficção científica de um Recife do ano 2040 onde já só restam ruínas, zonas de crusing e xícaras de chá. O meu último destaque para esta secção é Las Lindas (2016) de Melisa Liebenthal que depois de ter vencido, no início do ano, o prémio Bright Future no festival de Roterdão tem vindo a percorrer o circuito dos festivais. Um auto-retrato da realizadora ficcionado que questiona o papel e a imagem social de um jovem mulher nos dias de hoje.
Nas restantes competições faço alguns destaques: a começar, Spa Night (2016) de Andrew Ahn, vindo de Sundance onde venceu o prémio especial do júri na categoria de drama parece ser um desses indies soturnos de origens culturais exóticas que o cinema norte-amerciano tem produzido em barda (mais ainda assim merecedor de atenção); depois, Théo et Hugo dans le même bateau (2016) da dupla Jacques Martineau e Olivier Ducastel que retrata um engate gay na noite parisiense e que já venceu o prémio do público dos Teddy este ano na Berlinale, também vencedor nos Teddy, desta feita para melhor filme de longa metragem de ficção, Kater (2016) de Händl Klaus. No documentário, chamo a atenção para Tchindas (2015) de Pablo García Pérez de Lara e Marc Serena que acompanha as vidas e os shows de uma série de mulheres trans de Cabo Verde, ou, por outro lado, as filas de espera feitas passarela em Waiting For B. (2015) de Paulo Cesar Todelo e Abigail Spindel que retrata os dois meses de espera que alguns fãs aguentaram para terem os melhores lugares para o concerto de Beyoncé, e por fim, Det Han Gjorde (2015) de Jonas Poher Rasmussen que filma o remorso de um homem que há treze anos matou o seu companheiro num ataque de ciúme e que hoje (depois de enclausurado num hospital psiquiátrico) não consegue deixar de se punir. Nas curtas posso atestar com confiança que Moms On Fire (2016) de Joanna Rytel é um dos retratos mais provocadores sobre a maternidade (numa animação absolutamente asquerosa); também vindo do festival Curtas de Vila do Conde onde o Luís Mendonça o viu e sobre o qual escreveu, Pedro (2016), da dupla André Santos e Marco Leão, encontra na praia 19 da Caparica um território para o desejo de um jovem (Pedro) e da sua mãe; outro regular do festival é Daniel McIntyre, desta vez com uma experimentação à volta dos ícones estelares do cinema em Famous Diamonds (2016), e a última recomendação é a típica ficção canadiana, Le Gars d’la Shop (The Guy from Work, 2015) de Jean-François Leblanc, invernal e triste e muito tocante também.
Na secção Panorama mostram-se alguns dos filmes que, posto de modo distinto, poderiam até estrear nas salas comerciais não fosse a torrente de estreias e o desbaralho que por lá anda. Grandma (2015) de Paul Weitz, o realizador de American Pie (1999) e About a Boy (2002) filma aqui uma Lily Tomlin com problemas de controlo da raiva que ajuda a neta a conseguir dinheiro para pagar um aborto (uma comédia independente delicada e por vezes hilariante, como Weitz nos vem acostumando). Também dos states surge Goat (2015) de Andrew Neel vindo de Sundance e Berlim, escrito por David Gordon Green e produzido, entre outros, por James Franco (também um dos actores), sobre as praxes submetidas aos alunos das universidades norte-americanas quando querem entrar em determinadas fraternidades ritualizadas e que tanto origina um secção própria na pornografia gay, como filmes de terror e violência psicológica como este. Um terceiro filme na secção Panorama é O Ninho (2016) de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon [realizadores com uma curta metragem em competição, O Último Dia Antes de Zanzibar (2016)] na versão de cinema daquela que é uma série de televisão. Também fora da competição e também provenientes de pequeno ecrã, há o filme de abertura e encerramento, Absolutely Fabulous: The Movie (2016) de Mandie Fletcher e Looking: The Movie (2016) de Andrew Haigh, respectivamente. A Britcom de culto vira agora filme e Andrew Haigh, realizador de Weekend (2011) e de 45 years (2015), quando viu a série homónima cancelada conseguiu que a HBO autorizasse que o argumento da temporada seguinte fosse convertido no filme que agora se poderá ver (que fecha as pontas deixadas soltas).
Se há que louvar o trabalho que está por de trás de uma retrospectiva inédita sobre a obra de Derek Jarman (com especial enfoque no seu trabalho de curta metragem, onde se exibiram filme raramente visto em novas cópias restauradas) ou a carta branca dada a Susanne Sachsse onde surgem dois filme para (re)ver, Salomé (1972) de Carmelo Bene e The Raspberry Reich (2004) de Bruce LaBruce, é de lamentar que o festival venha encurtando paulatinamente a sua secção dedicada ao cinema pornográfico, as Hard Nights, agora resumidas ao trabalho (cada vez mais repetitivo) do realizador português António da Silva que já tive a oportunidade de entrevistar aqui no À pala de Walsh — e paradoxalmente, há uma masterclass gratuita sobre cinema explícito por Rodrigo Gerace num total de três horas que percorre vários exemplos ao longa história do cinema. Lamento também que alguns títulos do circuito dos festivais não pudesse encontrar espaço na programação do festival: falo de Little Men (2016) de Ira Sachs (talvez por não ser suficientemente queer, apesar de Sachs ser um dos realizadores mais interessantes da sua geração), Kiki (2016) de Sara Jordenö (que venceu o Teddy para melhor documentário, sobre o movimento de dança que já motivou uma das festas da Rabbit Hole), Les vies de Thérèse (2016) de Sébastien Lifshitz (seleccionado para a Quinzena dos Realizadores em Cannes e vencedor da Queer Palm) ou ainda Uncle Howard (2016) de Aaron Brookner [que esteve em competição em Sundance, sobre Howard Brookner, o realizador de Burroughs: The Movie (1983)].
Depois de tudo isto… venham os filmes que estou pronto.