Primeiros três dias de festival, três filmes vistos: entre celebridades mortas, o conto de fadas seropositivo e a desarmante auto-ironia feminista.
Absolutely Fabulous: The Movie (2016) de Mandie Fletcher
Durante a sessão de abertura que apresentou a peça de André Murraças 50. Orlando, ouve e a adaptação cinematográfica da popular série da britcom Abslolutely Fabulous, uma curiosa coincidência cinéfilo surgiu: ambos os trabalhos encontraram uma necessidade de perverter as referências clássicas do cinema através de um exercício de reescrita histórica pela citação. Na peça de Murraças, 50 pessoas (caras conhecidas e outras menos vistas) sentaram-se no palco do São Jorge e levantaram-se uma a uma para contar uma história, um testemunho encenado, uma confissão ou uma interpretação das pessoas e dos factos que circundaram o atentado que matou 49 pessoas inocentes na discoteca Pulse em Orlando. A última destas pessoas era o próprio dramaturgo e encenador, que decidiu terminar o momento com The Dickson Experimental Sound Film (1895), aquele em que dois homens dançam um com o outro e que é a primeira representação da homossexualidade na história do cinema. A escolha, sendo um pouco óbvia, tem o poder de encontrar na fundação do cinema a manifestação feliz do que uma festa pode e deve ser, um espaço de liberdade onde cada um dança como manifestação da sua alegria (ou tristeza) mas que encontra no movimento um gesto social de partilha com o outro. O que se passava na discoteca Pulse era isto e o atentado de Olrlando foi um ataque contra a própria dança como acto de comunicação e de expressão individual (em particular, da expressão da sexualidade).
De forma diametralmente oposta, mas com um mesmo desejo de encontrar no cinema as respostas para as convulsões do mundo contemporâneo, Absolutely Fabulous: The Movie termina com uma espécie de reencenação do final de Some Like it Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959) de Billy Wilder. Onde o famoso diálogo retorquía ao Eu sou um homem! com um Ninguém é perfeito.., no filme de Mandie Fletcher à semelhante revelação Eu não sou um homem! surge a resposta, E eu não sou uma mulher. Esta meta-inversão de géneros e de citações que o final impõe reflecte no fundo a cada vez mais premente questão Trans e como afinal toda a construção binária da nossa sociedade está em progressiva decadência. Pena é que esse seja de facto um dos poucos momentos realmente justos de um filme que não consegue ser mais do que uma aproveitamento nostálgico da memória dos fans em versão frenética a tentar (sem grande sucesso) encontrar na geração dos Millenials um novo público. Zoolander n. 2 (2016) conseguiu isso com muito mais inteligência e provocação, porque é muito melhor matar Justin Bieber com uma saraivada interminável de metralhadora do que deixar cair acidentalmente a Kate Moss ao rio. Diz-me como matas as tuas celebridades, dir-te-ei que cinema fazes.
Théo et Hugo dans le même bateau (2016) de Jacques Martineau e Olivier Ducastel
Nos primeiros quinze minutos de Théo et Hugo dans le même bateau já assistimos, numa sequência passada num clube de sexo gay parisiense, a um festival explícito de corpos, sexos e saliva. Ainda não lhes conheço os nomes mas não há um canto dos seus corpos que já não tenha saboreado com os olhos. Esta sequência de abertura pretende deixar tudo a nu nos primeiros minutos, já sabes ao que vais e daqui para a frente estás por tua conta. Sim é verdade, a forma como a dupla de realizadores filma os corpos e os sexos sem moralismos nem pudores é no mínimo refrescante. No entanto não há aqui propriamente uma vontade de chocar — Martineau e Duscatel não querem ser enfants terribles do cinema art house como Bruce LaBruce —, muito pelo contrário. O sexo, as mãos que passam pelos corpos suados e peludos e os gemidos de quarto escuro são tão simples como comer um kebab, viajar de metro na madrugada ou andar de bicicleta. A lasciva parece ter sido deixada à porta pelos pelos realizadores e isso é estranho num filme que encontra tantas vezes imagens próximas da pornografia.
O que ficou em seu lugar é, pasme-se, um romantismo levado ao ponto de rebuçado. Uma espécie de conto de fadas com cheiro a lubrificante onde o sapatinho da Cinderela é uma relação desprotegida com um parceiro seropositivo para o vírus do HIV. É no mínimo improvável, mas Théo et Hugo é uma história de amor de levar às lágrimas (sorridentes), contada entre as urgências hospitalares à espera do cocktail do dia seguinte (a profiláxia pós-exposição) e a madrugada deserta de Paris. O tempo fílmico é o tempo narrativo e o relógio começa a contar às 4h27 e termina às 6h00, nesse intervalo a câmara dos realizadores parece enamorada com o mundo, tintando tudo de uma estética de reclame da Super-Bock (o aspecto mais fraco do filme), que tanto a leva a demorar-se nas histórias laterais (no idoso que frequenta as urgências, o senhora que trabalha de menage e apanha todos os dias o primeiro metro ou o emigrado sírio que fugiu à guerra) como nos vai-e-vens do casal protagonista que no espaço de uma hora e meia passa de totalmente estranho a uma relação que durará duas décadas. De uma forma enviesada, Théo et Hugo dans le même bateau é a versão queer hardcore de Copie conforme (Cópia Certificada, 2010). Consegue imaginar? Eu também não conseguia…
Las Lindas (2016) de Melisa Liebenthal
Tenho sempre este receio do cinema auto-biográfico feito por realizadores que ainda estão na casa dos vinte (ou dos trinta, já agora). O que poderá uma pessoa da minha idade ter para contar que valha a pena fazer uma longa metragem. Sinto sempre que os formalismos do diário filmado são mais interessantes que o cinema que os justifica, que a voz off, o material de arquivo (pessoal) e a auto-representação se ficam sempre por uma espécie de etnografia digital do selfie promovida a estatuto cultural do cinema avant-garde, mas muito longe deste. A resposta que Melisa Liesbenthal dá é Las Lindas, projecto de final de curso na Universidad del Cine de Buenos Aires, que se inicia como um processo de revisitação da infância através de documentos (fotografias, vídeos caseiros, etc…) e de entrevistas aos amigos desse tempo, que tem na realizadora a conclusão. Conclusão essa que se materializa numa série de perguntas mais ou menos deixadas sem resposta: porque não sorriu na fotografias? Porque me confundem com um rapaz? por eu ter o cabelo curto? por eu ter pelos nas pernas? Porque não sou eu fotogénica? porque não sou linda? O que faz de mim mulher?
A forma como a realizadora contorna os perigos do género (cinematográfico, já que os de género são encarados de frente) é através de uma desarmante candura, sinceridade e humor (auto-)irónico. É dessa forma que Liebenthal vai, ponto por ponto, colocar o dedo na ferida aberta da construção de género e perguntar-se porque razão me fizeram crer (a mim e às minhas lindas amigas) que o belo é ser assim, comportar-se assado, sorrir e acenar. Esta perspectiva desconstrutiva que procura nas imagens do passado a resposta para os traumas do presente é uma processo quase psicanalítico de uma geração inteira que descobre que o seu corpo e a sua identidade não se adequam às construções que as quiseram formatar. O filme consegue, dessa forma, superar o umbiguismo do cine-diário e olhar a construção do mundo. No entanto, os momentos mais fascinates do filme (ainda que curtíssimos) são aqueles em que a realizadora se debruça na estética do desktop e nela encontra a ferramenta perfeita para coreografar memórias, construções sociais e possíveis futuros — numa manifestação daquele que é o meio pelo qual todas as questões de género se tornaram finalmente acesas (e acessíveis).