Outros três dias de festival se seguiram, e outros três filmes se viram: entre o pudico suado, a reportagem social e o futuro nostálgico.
Spa Night (2016) de Andrew Ahn
Se escrevia no outro dia que Théo et Hugo dans le même bateau (2016) de Jacques Martineau e Olivier Ducastel abria com uma sequência de quinze minutos que constituía um festival de mãos, sexos, nádegas, pêlos e lubrificante, Spa Night demora hora e meia para chegar a uma rapidinha desenxabida. Andrew Ahn, nesta sua primeira longa metragem, encontra no corpo de Joe Seo (extraordinário e subtil actor que venceu o prémio de melhor actor no festival de Sundance) a materialização dos seus medos e desejos numa trama evidentemente auto-biográfica: a saber, jovem coreano-americano gay criado por pais emigrados para os EUA e conservadores das tradições de origem, luta contra os seus próprios preconceitos sobre a homossexualidade tentando simultaneamente refrear e satisfazer os seus apetites. Se a história não parece nova — mais um coming of age gay —, o que a transforma num objecto com um mínimo de interesse é a sua componente exótica das saunas coreanas, os restaurantes asiáticos, as congregações religiosas da comunidade emigrada e o acerto emocional com que o realizador filma aquela família (dis)funcionante.
Fora isso, Spa Night é um filme que reflecte na realização o seu protagonista, sendo incapaz de contrariá-lo nos seus medos e preconceitos, aliás, parece mesmo favorecê-los na forma como filma tudo o que é sexual pudicamente: numa história que se passa grandemente em saunas que funcionam como espaço de engate gay, em que o protagonista trabalha e participa, a câmara tem o condão de nunca mostrar nada que possa incomodar, nem mesmo um beijo entre dois homens ou um carinho — como se Ahn estivesse preocupado em ver o filme passar nas tarde de cinema de domingo na televisão. É um filme delicado, é certo, elegante, também, fotografado com enorme precisão, correcto, e atento aos pequenos pormenores do quotidiano, verdade, mas como ele há tantos mais que todos os anos percorrem o circuito dos festivais. Um filme seguro no que de mais pejorativo há na palavra, não há nele um lance de ousadia em momento algum e, como tal, um filme profundamente esquecível que parece desejoso de cumprir a check list do cinema indie norte-americano de prestígio. Uma obra de estreia enrugada (e nesse aspecto faz lembrar a desilusão que foi para mim o último filme de João Salaviza).
Waiting For B. (2015) de Paulo Cesar Todelo e Abigail Spindel
O título do documentário de Paulo Cesar Toledo e Abigail Spindel remete imediatamente para a peça de Samuel Beckett, é certo. Em Wainting for B. também se espera, não por Godot, mas por B. (Beyoncé para os não-fãs). Um conjunto de admiradores aguardam durante dois meses à porta do recinto que irá acolher o concerto da cantora e performer norte-americana: montam tendas, arrevesam-se nas dormidas, dançam as coreografias, cantam os playbacks e convivem uns com os outros. É um caso de uma câmara certa no sítio certo, já que a situação tem um poder cinematográfico evidente. O problema está na opção dos realizadores insistirem uma e outra vez em filmar as lateralidades desta situação excepcional (visitam as casas dos protagonistas, os seus trabalhos, os seus locais de divertimento, entram por vezes no formato das talking heads) e a força potencial que um espaço e um conjunto de pessoas limitado esvai-se num anonimato de reportagem estendida (com retoques pop).
No entanto há dois aspectos curiosos e que, talvez pelo distanciamento dos realizadores, sobressaem. Aspectos não cinematográficos mas de natureza sociológica. O primeiro consiste na forma como estas pessoas que aguardam dois meses na fila para conseguirem os melhores lugares só o fazem porque não têm 700 dólares para comprar o bilhete que lhes daria acesso directo. Assim um filme de espera por um concerto de uma estrela Pop converte-se num testemunho de uma classe baixa e trabalhadora que procura um momento de libertação. A juntar ao desfavorecimento económico, os fãs são na sua maioria “bichas” e mais que isso “escravas”. A pobreza, a orientação sexual e a cor da pele convertem-se portanto em temas chave do filme e a fila junto ao estádio de futebol transforma-se em passarela para uma faixa da população menos representada onde o número e a banda sonora fazem daquele poucos metros quadrados um espaço de força e liberdade (precário é certo, mas efectivo durante aquelas semanas). Neste sentido o facto de B. nunca chegar a surgir frente à câmara (o segundo aspecto curioso) funciona como que um Godot-às-avessas, já que pode ser lido como a possibilidade de prolongar ad infinitum a situação rara que juntara aquelas pessoas. A desculpa vira justificação e o raro torna-se costumeiro. Desta forma o filme de Toledo e Spindel faz-se de um certo romantismo que encontra na esperança Pop uma saída simbólica para a juventude queer brasileira.
A Seita (2015) de André Antônio
O ano passo já havia encontrado na programação do festival uma série de títulos que inventavam futuros (pós-apocalípticos) queer, e por coincidência — ou não — um desses títulos, Sueñan los Androides (2014) de Ion de Sosa, construía esse futuro por entre os bairros abandonados de Benidorme após a crise do imobiliário em Espanha. A Seita de André Antônio também olha para as zonas industriais e os bairros ruinosos de Recife com essa visão transida pela ficção científica e imagina uma cidade quase abandonada no ano 2040 quando todas as pessoas de bem (e as pessoas com bens) se mudaram para as colónias espaciais deixando os pobres e os veados (e os veados pobres) a sufocar na Terra. Mas se se podia pensar que A Seita se converteria facilmente numa paródia política (e politiqueiro) ironizando e escarnecendo do presente do Brasil, o certo é que o realizador está mais interessado com um certo lado decorativo à Wes Anderson deliciando-se a preencher um apartamento de cortinados, livros de bonitas capas, bibelots, almofadas coloridas, peças de design e homens nus bebendo chá de forma elegante. Aliás, é no choque entre esse apartamento kitsh (hipster até) e o exterior semi-putrefacto que o filme por vezes se perde, já que o desajuste entre o cuidado da câmara e o pormenor da decoração de um não encontra equivalente nessas sequências (o que dificilmente poderia acontecer).
Mas talvez o momento mais inteligente do filme (e que levanta a ponta dessa possível leitura política do filme) é quando um dos engates do nosso protagonista o questiona sobre o seu fascínio entre o fetiche e a snobeira colonialista por aquele mundo decadente: adorar um local de onde todos os que lá vivem querem sair e só não o fazem por não terem alternativa. Nesse momento a casa de bonecas racha-se e o filme também (juntamente com o personagem): surge finalmente a seita que dá título ao filme e André Antônio transforma o restantes minutos do filme em espasmos pictóricos mais ou menos avulsos, mas que vêm deitar por baixo o universo nostálgico dos anos 1980 e 1990 que havia repleto os diálogos com referências às Sailor Moon e aos Power Ranger (cor-de-rosa). Essa disrupção narrativa e formal acaba por ser o maior (e talvez único) acto de afirmação autoral do filme — que, há que admití-lo, já se anunciava nas terrorista panorâmicas em constante ziguezague que se esqueciam dos personagens e deleitavam-se na mimesis de Hong Sang-soo.