Últimos três dias de festival, e últimos três filmes da cobertura: entre a auto-indulgência pomposa, o relato sincero dos refugos da segunda vaga feminista e a indiscrição televisiva suportada pela mistificação do homicida.
Trilogie de nos vies défaites (2016) de Vincent Dieutre
Todos os anos a escola Le Fresnoy convida importantes realizadores mundiais para acompanharem os seus alunos e por norma esses realizadores usam os recursos da escola e realizam também um filme. Por exemplo, Redemption (2013) de Miguel Gomes foi o filme que resultou do semestre que o realizador lá leccionou. Trilogie de nos vies défaites (2016) de Vincent Dieutre é um filme que resultou do mesmo processo, mas ao contrário do que é costume a metragem é mais longa. Dieutre (que recebeu agora uma menção honrosa da secção Queer Art) já havia vencido a competição de documentários em 2012 com o magnífico Jaurès (2011) e depois disso veria os seus dois filmes seguintes passarem pelo IndieLisboa, Orlando Ferito (2013) e Viaggio nella dopo-storia (2015) (sendo que antes disso já o DocLisboa havia exibido vários dos seus filmes em Portugal). Tive a oportunidade de o entrevistar em 2014 (aqui), por isso a sua obra é uma que acompanho com interesse. É pois com enorme tristeza que admito que este é capaz de ser o seu pior filme, por nele se encontrar uma certa pompa auto-indulgente que nos outros surgia apenas a espaços e escondida por uma sinceridade tocante e por inovadores dispositivos cinematográficos.
A estrutura de Trilogie é naturalmente tríptica: um primeiro episódio (o melhor) em que o realizador acompanha um homem solitário pelos transportes públicos dos países baixos enquanto este, às portas da velhice, lamenta o seu abandono do mundo, a sua falta de sexo e de desejo; o segundo acompanha uma mulher que considera o suicídio (como é normal nos episódios tripartidos dos Simpsons o do meio é sempre o mais fraco); por fim, o terceiro retrata uma espécie de processo de casting de um jovem actor levado ao desespero pela apatia dos presentes. A melhor ideia de Dieutre é a obsessão pelos transportes públicos, os tais não-lugares de Marc Augé, momentos da rotina de cada um em que de forma mais evidente se sente a o tempo a passar e a vida a esgotar-se nele (e são com certeza belos os reflexos sobre as janelas dos autocarros, dos elétricos e das carruagens de metro). O problema passa pela voice over que não encontra um momento de silêncio e constantemente nos inunda de confissões que, ao início são tocantes, mas que pela acumulação, viram insuportáveis. Mais ainda quando se tingem de comentário social, crítico das redes sociais e encontrando nelas a justificação para o isolamento contemporâneo. Entre o pedante e o moral, venha o diabo e escolha.
Grandma (2015) de Paul Weitz
Há uns meses entrevistei (com o meu colega Luís Mendonça) o académico Geoff King, especializado em cinema independente norte-americano. Ao ver Grandma vieram-me à cabeça as suas palavras sobre a forma como o cinema indie utilizava os géneros (em particular a comédia): “O cinema de género é uma óptima ferramenta para marcares a tua diferença na forma como o invertes. O que não implica necessariamente uma inovação. Por exemplo, há uma série de exemplos de comédias românticas independentes muito convencionais em que a única diferença é a orientação sexual dos personagens, gays ou lésbicas“. Embora não seja este o caso da obra de Paul Weitz, que realizou duas das comédias fundamentais da transição do milénio — American Pie (1999) e About a Boy (2002), que marcaram pelo seu acerto emocional —, há algo de requentado e convencional em Grandma. Digo isto por parecer o filme uma versão feminina e lésbica de Nebraska (2013) de Alexander Payne onde Bruce Dern foi substituído por Lily Tomlin. Mas em boa verdade há que admitir que talvez a comparação não seja a mais justa, o filme é mais uma sequela desiludida de Go Fish (1994) — que passa no Queer Porto, no ciclo dedicado ao new queer cinema — cruzada com Bad Grandpa (2013) dos Jackass: isto é, o filme pretende responder à pergunta “o que terá acontecido àquelas jovens feministas da segunda vaga quando a velhice assentou mas a rebeldia continuou acessa?” e a (primeira) resposta que oferece é “viraram viúvas rabugentas”.
Lily Tomlin é pois um personagem de uma força incrível e o desempenho da actriz é de facto surpreendente (na medida do possível, já que começam a ser recorrentes estes papéis e estes filmes assentes em velhos actores — Oscar bait é uma ideia que perpassa toda a duração do filme de Weitz). A juntar a isso há uma precisão na escrita dos diálogos — “I don’t have a anger problem. I have a asshole problem” —, o ritmo estonteante do filme (tudo se passa numa dúzia de horas) e aquilo que faz de Paul Weitz um realizador a não desprezar: a forma dedicada como ele filma os seus personagens, evitando quase sempre as caricaturas no limite dos gags cómicos e injectando de pathos aquilo que podia ser pouco mais do que um episódio ousado de Brothers and Sisters. É aliás essa calma e segurança na direcção de actores que garantem que no final da sessão as bocas se arqueiem, tristes. É é também por isso que o que poderia ser um traço grosso (a viúva rabugenta) faz-se recorte delicado (uma mulher atormentada pela inevitabilidade unívoca do tempo e por tudo aquilo que este vai deixando no seu encalço), naquele que é talvez o road movie mais curto da história do cinema.
Det Han Gjorde (2015) de Jonas Poher Rasmussen
Christian Kampmann e Jens Michael Schau terão estado muito apaixonados. Terá sido um amor de zigue-zagues que se prolongou por treze anos. Esse amor terminou quando o primeiro foi assassinado pelo segundo. O filme de Jonas Poher Rasmussen encontra um senhor de bigode plenamente branco que vive ainda sob o terrível acto violento com que matou o seu companheiro e amante. O filme encontra este homem depois de um internamento psiquiátrico que o aprisionou depois de se ter dado como culpado do crime quando agora, numa moderada agorafobia, tenta editar um novo livro (eram ambos escritores) e orienta a encenação de uma peça sobre a sua vida (e de Kampmann). O documentário de sessenta e dois minutos inicia-se com um dispositivo de profundo significado simbólico e extraordinária simplicidade: sobre o fundo negro da tela uma linha branca se traça horizontalmente, dividindo-o em metades iguais; surge uma voz e essa linha oscila, essa voz é de Schau que fala (ou tenta evitar falar) do homicídio. Com essa solução percebemos que a acalmia sera quebrada, o passado será posto em revolta, o realizador está ali para saber o que ele fez e será pela voz que se dará a disrupção (mas não necessariamente se curará o trauma).
O problema de Det Han Gjorde passa exactamente por não mais encontrar um ideia de cinema depois desses primeiros minutos pré-créditos. O realizador decide-se então por soluções tipicamente televisivas entre a docu-ficção da day time tv (com recriações de tudo — ainda que promovidas pela peça de teatro que funciona como desculpa) e a grande reportagem noticiosa (com infindáveis talking heads em que o realizador insiste, uma e outra vez, em questionar Schau sobre o que este está a sentir, o que sentiu ou como se sente — a que se seguem imagens de arquivo puramente ilustrativas quase sempre um desperdício por sobre elas não resultar qualquer avaliação crítica de Rasmussen). Esta desorientação formal do realizador e o seu deslumbramento pela história que retrata fazem-no desperdiçar uma oportunidade rara. Mesmo se o filme acaba por brincar, no final, com as confissões de Schau ao antecipá-las nos diálogos dos actores, ou quando o processo de investigação vira ele mesmo gesto dramatúrgico, é já tarde demais. A televisão já infectou tudo o resto, e as possíveis boas ideias parecem soluções de última hora que tentam encontrar o cinema na montagem, mas ele já foi… com a água do banho.