Ao longo dos anos fui percebendo que Oliver Stone lida com uma incapacidade de contar uma história sem espinhas, interessando-se por histórias já por si confusas (as conspirações do Watergate e do assassinato de Kennedy ou o mercado bolsista) que deixam o espectador embasbacado no imbróglio crescente e, assim, embrenhando-o na atmosfera do filme. Snowden (2016) e o universo, mais ou menos inacessível ao cidadão comum, dos diferentes softwares de espionagem online, acrescido das impenetráveis excepções legais que os autorizam, é um espaço que clama pela mão tremida de Stone. A juntar a isto, ao longo de toda a obra do realizador percebe-se o gosto por retratar grandes figuras de poder, poder esse que se atinge pela política [Alexander (Alexandre, o Grande, 2004), Nixon (1995), W (2008) e Comandante (2003)], pelo dinheiro [Wall Street (1987) e a sequela, pelo poder das armas [Platoon (Platoon – Os Bravos do Pelotão, 1986), Natural Born Killers (Assassinos Natos, 1994), Savages (2012)] ou ainda pela honra [Born on the Fourth of July (Nascido a a de Julho, 1989) e World Trade Center (2006)] onde Snowden se tenta encaixar.
Citizenfour (2014) de Laura Poitras já havia tecido um universo cinematográfico em torno de Edward Snowden — que o perspicaz vídeo-ensaio de Tope Ogundare faz questão de habilidosamente desfiar — à base de thrillers de espionagem e do cinema liberal norte-americano dos anos 1970. Stone parece menos importado com esse universo e quer sim engendrar um biopic sentimentalista como aliás é seu costume. Assim, o filme de Stone parte do encontro em Hong-Kong que Poitras (Melissa Leo) filmou e em constantes flashbacks descreve quase toda a vida adulta de Snowden (Joseph Gordon-Levitt), desde os seus treinos militares, o seu recrutamento pelo estado, o momento em que conheceu a sua companheira, o seu trabalho em Londres, Tóquio e no Hawai, terminando exactamente antes de se tornar uma figura pública e de ter dado origem ao sururu displomático-mediático que o obrigou a ficar retido na Rússia, onde reside até hoje.
A tese que Snowden propaga e propagandeia ao longo das suas penosas duas horas e um quarto é que o homem é um herói, que abandonou uma vida maravilhosa onde recebia volumosas quantias como state contractor, em paz num sítio paradisíaco, por aquilo que achou ser a medida correcta, o ímpeto moral por oposição ao ímpeto capitalista (e que isso lhe tirou rendimentos e liberdades). Aliás, todo o arco do filme passa por estabelecer um Snowden conservador (votante do Partido Republicano e apoiante de Bush e da intervenção armada) que com a tomada de consciência no seu trabalho nas agência de segurança (as centrais de inteligência) se converte em democrata liberal e libertário. Esse arco de consciência política é no fundo o sonho molhado de Stone: conseguir que o seu cinema mainstream tenha um poder de agitprop que consciencialize os reaccionários à causa da esquerda americana.
É até confrangedor ver um realizador desperdiçar uma e outra vez as potencialidades de uma história sobre a internet e os múltiplos ecrãs e câmaras que nos rodeiam numa produção morrinhenta.
Com este fim o filme transforma-se num panfleto com toques românticos que visa provar a grandeza do delator (cuja mitificação se ficou, na opinião pública amerciana, como uma versão gurmet de Julian Assange e as suas perdas urinárias). Nem de propósito, o recentemente estreado Sully (Milagre no Rio Hudson, 2016) do republicano Clint Eastwood pretende exactamente o oposto: criticar metodologicamente a heroicidade do piloto num filme sobre o procedimento científico, sobre a possibilidade de se aceder ou não aos factos do passado, sobre as próprias limitação do conhecimento. Apesar de partilharem uma estrutura semelhante, com os flashbacks a partir de um momento de reconhecimento público, e ambos terminarem o filme com o homem que representam – já que ambos biografam figuras recentes da mitologia norte-americana -, Eastwood e Stone trabalham em sentidos diametralmente opostos. Aliás, quando no início de Snowden Stone filma um corredor cheio de espelhos pensei que por momentos o realizador se interessasse pelas múltiplas representações do homem, os vários snowdens, como no fundo fez Eastwood com as múltiplas versões do acto heróico de Sully (uma e outra vez, again and again, até à erosão final do humano).
Mas cedo se percebe que esse é apenas mais um dos efeitos moderninhos que o realizador explora ad nauseum numa espécie de estética CSI: Miami sem com isso revelar qualquer ideia de realização. É até confrangedor ver um realizador desperdiçar uma e outra vez as potencialidades de uma história sobre a internet e os múltiplos ecrãs e câmaras que nos rodeiam numa produção morrinhenta, televisiva e que só num momento ou outro consegue aproximar-se do poder agitador de, por exemplo, Michael Moore. Por muito menos Ferrara, Shyamalan e Michael Mann problematizaram recentemente este universo e pensaram as possibilidades dos contactos através da rede e a nossa relação com as imagens ecrânicas dos outros (quando no final surge um Snowden enquadrado por um ecrã de um robô, a Stone competia puxar pelo fio, mas ele logo trata de ir filmar o outro lado como se a ligação entre ecrã e câmara fosse óbvia e directa). Esse no fundo é o problema de Stone nos filmes das últimas décadas: interessa-lhe de menos o cinema e de mais o panfleto delicodoce.