Longe parecem ir os tempos em que um filme do Larry Clark criava uma pequena turbulência no cinema. Era a época em que as suas narrativas “hiper realistas” das “problemáticas da juventude” e das suas representações originavam epítetos como “corajoso”, “sociologicamente relevante”, “retrato essencial da cultura quotidiana dos meninos e meninas”, mas, também, acusações como “oportunismo”, “depravação sexual disfarçada de análise sociologicamente relevante de um retrato essencial da cultura quotidiana dos meninos e meninas”, ou, nalguns casos mais extremos, “pedofilia”. Ao tempo que isso já lá vai. Hoje, cada vez com mais dificuldade em arranjar financiamento e com estreias limitadíssimas e ridiculamente desfasadas temporalmente do ano de produção, Larry parece ter caído no esquecimento dos grandes críticos sociológicos. Ao ver The Smell of Us (O Cheiro de Nós, 2014), quase que temos inveja desses senhores e senhoras.
Não que não tenhamos partido para esta sua obra cheios de um moderado optimismo, lembrando-nos da muito agradável surpresa que foi o Marfa Girl (2012), o seu anterior filme, que tinha sido despedaçado pelas cerca de dezassete pessoas que o tinham visionado. Não foram precisos muitos minutos de The Smell of Us para saber que estávamos na presença de algo bem diferente de Marfa Girl, mormente e nomeada, a diferença que vai entre uma pessoa relativamente (mas mesmo muito relativamente) sã e desprovida de intoxicações alcoólicas e outra que deverá ter estado uns meses em profundo desequilíbrio à custa de um generoso consumo de barris de vinhaça.
Aliás, a julgar pela profunda bandalheira visual do filme, pode-se levantar a hipótese de toda a equipa ter processado uma apreciável quantidade de álcool pelas veias. O operador de câmara a rastejar com a dita pelo chão, a colocá-la junto aos corpos da pitalhada (ou, em versão bem pensante, a “colar aos corpos”), incapaz de um enquadramento com o mínimo de decência, o editor a carregar em botões ao acaso na tentativa de arranjar o mínimo de fio condutor, e o bom do Larry, vigorosamente cambaleante, a disparar vigorosas instruções:” dispam-se, meus amores!”. É é, é a “juventude a auto-destruir-se”.
Isto já foi chão que deu uvas sumarentas, e qualquer pessoa com uma câmara, umas grades de Sagres e Super Bocks, uns charros, e umas primas e primos jeitosos pode fazer um The Smell of Us num fim de semana, em casa ou nas ruas da terra.
Se nos esquecermos de toda esta perfeição visual digna da personagem do Woody Allen no Hollywood Ending (2003) (sim, os Cahiers du Cinéma, a gozarem com o pagode, colocaram The Smell of Us como um dos melhores de 2015), ficamos, então, com a juventude clarkiana, transposta aqui para as ruas de Paris. A este, nada de novo. As mesmas hormonas a explodir, os mesmos skates, as mesmas roupas, as mesmas drogas, a mesma “crueldade a filmar os corpos” (leia-se, planos sucessivos e ligeiramente desfocados da zona que medeia a genitália do umbigo, sobretudo nos rapazes), as mesmas festas. Isto já foi chão que deu uvas sumarentas, e qualquer pessoa com uma câmara, umas grades de Sagres e Super Bocks, uns charros, e umas primas e primos jeitosos pode fazer um The Smell of Us num fim de semana, em casa ou nas ruas da terra.
Voltando à desgraça: pode haver maior alheamento e “estou-me nas tintas” do que filmar (sem critério algum e sem a mínima intenção de criar qualquer impacto emocional) um conjunto de rapazes e raparigas nas ruas com a porra de uma câmara em modo found footage? Talvez o único mérito de The Smell of Us seja usá-lo, juntamente com qualquer filme do Zack Snyder, como método de tortura para qualquer inimigo da humanidade, obrigando-o a revelar onde estão as ogivas “capazes de destruir qualquer cidade dos Estados Unidos”.
Larry Clark bêbado, barbudo, velho, a mijar-se pelas calças e a câmara bem “colada ao corpo”: o momento que melhor representa The Smell of Us.