Quando dei o mote para esta crónica, escrevi que um dos sentidos possíveis para I Wish I Had Someone Else’s Face era, saltando a cerca da literalidade, o de ter, possuir o rosto de outrem – não no sentido de ‘substituir’ o seu próprio rosto, mas no de ter uma pessoa, o rosto de outrem para si. O da pessoa amada, por exemplo. O amor não é também, na sobreposição de afectos e gestos, na fusão de olhares e peles, um fondu, um fundido encadeado como os que vemos nos filmes e em que passamos de uma existência solitária e única no mundo para uma existência conjunta e una? Ora, eu desejo o rosto (e não só) da Lee Remick para mim, passei o Wild River inteirinho a desejá-lo. E Desejo é o que não falta a correr naquele rosto, tanto mas tanto que o Almodóvar teria poupado tempo e paciência se, no La ley del deseo (1987), se tivesse limitado a fazer um longo plano fixo do rosto da Remick, pois que ele encarna, na perfeição, a letra o espírito de tal voluptuosa lei.
Se há coisa que a Lee Remick não fez foi keep her hands off do Montgomery Clift
Wild River é um desses filmes em que o que não é explicado – diferente, saliente-se, do inexplicável – é absolutamente central, por paradoxal que possa parecer à primeira vista, para a construção do filme e dos seus ambientes: o que é que aconteceu ao marido de Remick? Quem é, afinal, a personagem interpretada por Montgomery Clift e como é a sua vida em Washington? É casado, tem filhos, que passado (ou presente) esconde? Na ausência de respostas (e que bom que assim é), resta-nos ficar onde tudo nesta vida, para que valha verdadeiramente a pena, começa e acaba: no rosto de uma mulher, no rosto glorioso de Lee Remick. Todavia, por alguma razão, Clift não pensa exactamente como eu. Mas, pergunta-se o espectador, o que é que o faz resistir tanto – e tão indisfarçavelmente – a Remick, essa mulher que, ao contrário da mãe, confirma as famosas linhas de John Donne de que no man is an island (aqui em sentido quase literal)? O que o leva a deixá-la na imensa tristeza de saber da precariedade daquela paixão? O que faz, afinal, Clift resistir ao rosto de perdição de Remick, a esse rosto cujo rubor não é de embaraço mas do desejo incontrolável que o inunda?
Wild River é um dos filmes mais subtilmente eróticos da história do cinema – ou, simplificando, um dos mais eróticos filmes de sempre (a subtileza é, em si mesma, uma propriedade erótica). E a esmagadora fatia desse erotismo tem a sua origem e o seu fim no extraordinário rosto de Lee Remick, o qual, até em momentos de angústia e aflição, permanece sempre luxurioso. Sim: até quando sofre, até quando chora (como quando, por exemplo, pergunta a Clift, entre lágrimas mas em tom insinuante, se ele sabe o que Walter lhe fez na noite anterior quando ele se foi embora), Remick é, toda ela, sensualidade, um rosto com tanto de determinação como de submissão (eroticamente falando, claro), de firmeza quanto de rendição.
Esse efeito sensual permanente, em parte derivado da extraordinária beleza natural de Remick, é também fruto de um trabalho de representação intenso. Seriam precisos muitos – mas nunca fastidiosos… – visionamentos para contar, ao certo, o número de vezes em que Remick, em silêncio ou enquanto fala, sorrindo ou soluçando, está de olhos fechados ou semi-cerrados; em que trinca ligeiramente os lábios ou os mantém entreabertos; em que levanta o pescoço de forma insinuante; em que o suor da sua testa ruborizada nos faz imaginá-la a descansar após momentos tórridos numa cama (ou onde for…); em que os seus olhos, de um azul supostamente púdico, nos lêem a mente e os desejos… Mas como sou amigo dos meus amigos cinéfilos, poupo-vos a esses repetidos visionamentos e sugiro que se foquem apenas na cena em que Remick está sentada na cadeira de baloiço, na sala da sua antiga casa, e, de olhos fechados e cabeça ao alto, se lamenta a Clift das voltas da vida enquanto balança, ininterrupta mas languidamente, a cadeira. Se já se escreveu sobre sexo implícito no cinema por estas bandas, então aqui está o exemplo dos exemplos: isto não é outra coisa senão Remick, sentada em cima de um homem, a fazer amor. Perdoai-me a frontalidade, mas a culpa não é só da minha perversa cabecinha; também é (da) do Kazan, pelo ângulo e iluminação ardilosamente escolhidos (imagem abaixo).
Elia Kazan a zombar à grande do Código Hayes
Talvez a causa da resistência de Clift em ficar em Garthville com Remick ou de levá-la a ela e aos filhos com ele para Washington se possa encontrar, afinal, nos seus olhos, melhor dizendo, no seu olhar. Um olhar que, aqui como em muitos outros filmes da sua carreira (este, por exemplo), sempre impressionou pela vertigem, indício de uma tensão prestes a transbordar, de uma angústia na iminência de explodir. Olhar firme, sim, mas esgazeado, dos que nos deixa a duvidar da sanidade de quem assim olha. Falei em “transbordamento”, em “explosão”, tudo movimentos de dentro para fora, interior-exterior, tal e qual o sentido desse identitário movimento de “sair do armário” (historicamente associado à afirmação de uma orientação sexual específica, a homossexualidade): revelar o que está oculto, destapar o que está escondido, tornar visível o invisível.
Ora, Clift inclui-se nesse nebuloso grupo de galãs de Hollywood que, por receio da reacção da opinião pública e, consequentemente, de perderem o seu sustento e way of life, sempre se furtaram – muito compreensivelmente – a sair de tal armário. Ou então não foi por essa razão mas apenas porque ninguém tem nada que ver com isso, o que é mais compreensível ainda. Seja como for, Clift, como Clark Gable, Gary Cooper ou Rock Hudson, foi um dos actores homossexuais – alguns deles bissexuais, e o próprio Clift teve ambas as experiências, embora a heterossexualidade talvez fosse apenas uma opção “por defeito” numa época e num país homofóbicos e “socialmente normativizados” como eram os EUA dessas décadas – que, ironia das ironias, mais personagens machonas e “donjuanescas” interpretou (e sempre com enorme sucesso, diga-se).
Remick a mostrar como uns olhos fechados podem ser tão ou mais poderosos que uns oceânicos olhos azuis
É neste ponto que equacionar uma vérité entre o Clift-actor e o Clift-personagem de Wild River não seja de desprezar. Ao longo de todo o filme, e embora num primeiro momento se interesse e avance por Remick (mas nunca de forma especialmente intensa ou arrebatadora), Clift escudar-se-á sempre do amor e das intenções da rapariga, que com ele quer começar uma nova vida num “novo mundo” (literalmente, já que viveu quase toda a sua vida numa ilha). Há uma cena no carro, absolutamente decisiva, em que Clift tenta dizer algo – a chave do seu tormento, pressente-se – a Lee. É quando ela lhe pergunta o motivo para ele não ficar com ela e Clift lhe diz, muito a custo e enquanto se contorce no banco do condutor, que lhe quer contar algo. “No, it’s not… It’s just… I don’t know… I’ve been taking a good look at myself…”, diz-lhe, e percebemos o tumor que se prepara para retirar da garganta. Mas Remick está triste, impaciente, cansada, e, por isso, corta-lhe a palavra, não o deixa terminar, sem perceber que ali bem poderia estar a resposta para a sua angústia. E, mesmo assim… Sim, mesmo assim, Clift e Remick trocam alianças num dos casamentos mais soturnos de que me recordo de ver no cinema, um “serviço mínimo” que Clift cumpre de rosto fechado.
Outro aspecto interessante, ainda a este propósito, é o de uma aparente “virilidade diminuída” de Clift no filme: a forma plácida como leva nas trombas do dono da gasolineira no seu próprio quarto de hotel; a segunda carga de pancada que leva do mesmo gasolineiro na rixa em frente à casa de Remick (“em frente da sua dama”) e onde esta, ao contrário de Clift, é quem consegue bater no agressor (cena que culmina com o diálogo dos dois no chão, enlameados e derrotados, em que ela lhe diz: “I don’t care if you ever win a fight”); ou, simplesmente, o facto de ser Remick quem muitas vezes assume o papel “de força” tradicionalmente reservado aos homens, como quando conduz ela a jangada perante a tibieza de Clift.
Já tinha escrito as linhas anteriores quando me lembrei de pedir ao Luís Mendonça que me enviasse o link de um comentário que ele havia feito sobre o filme há tempos no Facebook. O Luís procurou, procurou, e enviou-mo, momento em que me apercebi de que a memória me havia atraiçoado; na verdade, não era um comentário do Luís, mas sim uma conversa entre o Elia Kazan e a Marguerite Duras, e em que, a certa altura, esta última se debruça, com paixão, sobre o Wild River. E não é que a Duras também bate na tecla da vérité referindo-se à resistência do Clift a Remick no filme como uma eventual consequência da sua vida e orientação sexuais? Duras também fala – figuradamente ou não – num certo estado de impotência de Clift, e a verdade é que, na vida real, Clift viria a sofrer dessa dificuldade a partir da noite em que se espetou aparatosamente ao volante (em 1956, quatro anos antes da estreia de Wild River). Aspecto igualmente enfatizado por Kazan quando acrescenta que, por altura das filmagens, Clift se encontrava num estado de grande fragilidade física e emocional (algo que haveria de perdurar até ao fim da sua vida). Não sei o porquê para um tal equívoco (pode ser problema da tradução), mas tanto Duras como Kazan afirmam que não há um beijo entre os dois, que eles nunca se beijam durante o filme. É mentira, beijam-se (e até uma cena de cama é insinuada), e mesmo com arroubo, especialmente na tortuosa cena do carro a que acima me referi, sem dúvida uma fuga para a frente (o beijo) de um Clift entre a espada e a parede…
(Idem)
Para justificar a sua recusa em abandonar a ilha, a grande matriarca havia dito, logo nas primeiras cenas, que é um erro tentar controlar, reprimir, conter a Natureza; que os homens não o devem fazer, que a wilderness (no caso, a das águas do rio) só a si pertence. Já se vê como esta é uma frase que assenta que nem uma luva tanto ao Clift-actor como ao Clift-personagem, alguém que não deixa a sua natureza correr livremente. Tal como as autoridades pretendem com as suas soluções de engenharia civil (a construção de barragens), também Clift tenta domesticar a (sua) natureza, por imposição de uma sociedade que colocava – e coloca ainda – a sua engenharia social ao serviço de preconceitos e estigmas. Se, como dissemos, Remick – ou o rosto de Remick – é a grande responsável pelo tremendo erotismo de Wild River, e se este último é igualmente um ensaio sobre a Liberdade, o Desejo e a Castração (e, claro, sobre o racismo, mas isso é tópico aqui não aflorado), então, das três grandes figuras do filmes, Clift e a mãe de Remick são, por motivos diferentes, ambas personagens que se auto-reprimem. A única verdadeiramente livre é a personagem de Lee Remick, ser que se move sob o signo de uma única Lei: a do Desejo (de sair da ilha, de iniciar uma nova vida, de casar com Clift), esse que o seu rosto violenta e incessantemente reflecte.