He might fast as much as he could, and he did so; but nothing could save him now, people passed him by. Just try to explain to anyone the art of fasting! Anyone who has no feeling for it cannot be made to understand it.[1]
Franz Kafka, Ein Hungerkünstler
Nos primeiros planos de Danjiki geinin (The Artist of Fasting, 2016) evoca-se o acidente nuclear de Fukushima de 2011 e, através da imagem granular e extremamente volátil do stock footage, os nossos olhos voltam a ser encurralados pelo tsunami que arrastou a civilização humana como se esta não passasse de uma folha caída ao sabor do vento. Os gritos de desespero ouvidos ao fundo, no entanto, não falam japonês, mas sim árabe. Terei ouvido mal? Será que, desde o enclausuramento imposto pelos tribunais japoneses desde 2003, Masao Adachi, o realizador, alucina ainda com o seu passado militante e terrorista nessa Palestina de paisagens desertas, com uma mão cheia de revoluções mundiais? Será que ainda escuta as vozes desses fantasmas, do seu próprio fantasma enquanto crente e agente de uma Revolução a começar no Terceiro Mundo para se expandir como um vírus? Em 2011, aquando da retrospectiva integral da sua filmografia na Cinemateca Francesa, Adachi, por via de uma transmissão vídeo do outro lado do planeta, declarava ao público francês: “Dizem que passei de cineasta a guerrilheiro, para voltar a ser cineasta. Claro que sim, se considerarmos a questão de fora. Mas, do meu ponto de vista, faço sempre a mesma coisa.”[2]
Há outra dimensão relativa ao tsunami. Uma força inexplicável e pavorosa que mistura elementos antagónicos: mar e terra. O horror dessa catástrofe natural é também a implosão de uma certa pretensão de segurança, assentada no pseudo-conhecimento que a terra começa quando acaba o mar. Não consigo entender o significado do tsunami da cena introdutória sem esta dimensão metaforicamente terrorista de atentar contra a segurança pública, misturando anarquicamente os contrastes: pensamento e acção[3] num cinema que dinamita a consciência. Resta-nos saber se, de facto, fazer cinema pode ser mais do que filmar e dar a ver algo a alguém, com todas as distorções clássicas que vão do emissor ao receptor e que, justamente, são o fundamento da sua separação. Resta-nos saber se poderá, alguma vez, haver uma equivalência perfeita e congruente entre guerrilheiro e cineasta, já que a praxis do cinema activista parece esgotar-se no trânsito da expressão do pensamento e não da acção revolucionária (ou se quisermos, na transmissão da acção enquanto pensamento ou imagem). Esta contradição da arte revolucionária foi constantemente abraçada pelas películas de Adachi, bastante mais próximas do registo alegórico do que panfletário ou propagandístico[4]. Foi ele, afinal, que também se auto-caracterizou como um trotskista-surrealista ou, trocando por miúdos, um escafandrista das profundezas, cujo repouso lhe é, porém, interdito já que o questionamento interior, tal como a revolução aos olhos do autor de A Revolução Permanente, é inesgotável e não se pode fazer somente numa frente.
Talvez, agora, consigamos entender um pouco melhor a razão por detrás da transposição do famoso conto de Franz Kafka, Ein Hungerkünstler (traduzido por Um Artista da Fome) para um Japão estéril de arcadas deslavadas, onde todo o tipo de personagens bizarros e disformes, à beira da neurose ou da psicose, se passeiam para contemplar alguém que espontaneamente inicia um jejum sem razão e fim à vista. Kafka é um dos símbolos máximos de uma estética centrípeta, votada a fechar-se sobre si mesma na criação de cenários alegóricos onde a relação entre indivíduo e grupo é sempre perpassada pela incomunicabilidade e angústia. Tornou-se um lugar comum associar à estética kafkiana, por um lado, a passividade extrema do indivíduo (consubstanciada em protagonistas que observam o caminho da sua própria ruína) e, por outro, a monstruosidade distópica, exploradora ou absurda do colectivo (que pode tomar a forma da família, das leis de um Estado labiríntico ou simplesmente de um magote desordenado). Adachi em Danjiki geinin segue o trilho absurdo das páginas de Kafka: nenhuma era, sobretudo a contemporânea, consegue lidar pacificamente com a forma de um martírio – sobretudo se ele aparentar gratuitidade. Porque, tanto num caso como no outro, só temos acesso à descrição dos acontecimentos externos e nunca ao conteúdo real da acção. A prevalência da forma sobre o conteúdo, ou se quisermos, a autonomização da forma sobre o conteúdo, representa o segredo da estética desesperante e disfuncional do absurdo.
É esta a dimensão mais profunda das alegorias claustrofóbicas de Kafka e , por empréstimo, de Adachi. Elas são abstractas ao ponto de exigirem, por parte do leitor/ espectador, uma exegese (dar um conteúdo à forma), mas uma exegese que, durante o seu processo parece ter prescindido de uma única decifração. Podemos fazer a pergunta: que é, afinal, o artista da fome? Um mártir numa era que os esqueceu (e, parafraseando Hölderlin, para que servem os poetas em tempos de indigência?); o negativo que se dirige à negatividade do mundo para construir uma nova positividade; uma visão retorcida e desolada do artista enquanto performer ou enquanto alguém que subterraneamente necessita de espectacularizar a privação, prolongando o sofrimento para possibilitar e prosseguir com a criação? Masao Adachi, praticante de um cinema de raiz ambígua mas ainda longe do poder de síntese de Kafka, instrumentaliza o conto para, por cima disto tudo, parodiar uma era mediatizada (inundada por smart-phones e aparatos jornalísticos) que se excita com o insólito, tornando-o viral não na esperança de alguma vez o compreender, mas de se distanciar cada vez mais. O caos horrível e burlesco desse Japão decadente e voyeur, que apagou todas as utopias da História mas ainda conserva uma nostalgia inexplicável pela nobreza de carácter e pela abnegação ascética digna de guerreiros ou monges, parece representar a visão negra de um revolucionário, tão atado às suas limitações de intervenção, que se tornou, inexoravelmente, num amargo contador de estórias.[5]
Yûheisha – terorisuto (Prisoner/Terrorist, 2007) e Danjiki geinin, as duas longas-metragens que celebram o regresso de Adachi à realização após 30 longos anos de hiato revolucionário, compõem uma espécie de díptico acerca da figura do prisioneiro. Algumas das sequências do primeiro filme chegam mesmo a ser recicladas no segundo, reforçando a ideia de uma comunhão de sentido. A ideia essencial subjacente à metáfora do prisioneiro – o terrorista detido, livremente inspirado em Kôzô Okamoto,[6] de Yûheisha – terorisuto ou o santo enjaulado de Danjiki geinin – não é tanto a da vitimização inócua do indivíduo em relação ao colectivo, mas a que se consubstancia num alastramento estético da prisão enquanto, justamente, tudo o que há no mundo. Não nos enganemos: neste cinema desencantado e seco, mesmo qualquer resquício do que se encontra fora das grades, ou seja, a liberdade, qualquer liberdade, é também ela uma prisão[7]. Esta “estratégia do imaginário”[8] que mais não faz do que reduzir a suposta heterogeneidade do real às quatro paredes de uma alegoria desesperante é a suprema prova de uma estética activista irada que tropeça nos seus próprios ensinamentos, se vira contra ela mesma, parecendo reduzir a acção decisiva de revolta, qualquer acção possível ou imaginada, ao vazio. O isolamento (imposto de fora e de dentro, respectivamente) dos dois protagonistas recria-se, assim, nas mordaças do confronto com os fantasmas interiores, originados pela asfixia do espaço em redor. Neste ponto, Adachi não podia estar mais apartado de Kafka: o carácter centrípeto e enigmático do autor dá lugar à auto-crítica do cineasta, dissimulada por entre a impressão e o mistério alegórico, mas com contornos ainda fortemente leninistas.
Independentemente do ângulo que se encare, Danjiki geinin sofre de um desequilíbrio gravoso: se tudo o que vem da estética kafkiana é acutilante e refrescante, então todas as inclusões do universo político-contestatário de Adachi, – veja-se, por exemplo, o fetiche, algo datado, com os símbolos nacionais (a bandeira imperial, de um lado da cela, a bandeira militar do outro), os representantes do poder (polícias, militares armados com metralhadoras) e até mesmo certas influências nefastas do seu passado como realizador pink[9] (a cena de violação, a enfermeira sádica vestida de látex) -, resultam excessivas, artificiais e, por vezes, somente disparatadas. Todavia, a compostura e a ortodoxia nunca foram características deste cinema forasteiro, dirigido à humanidade como uma prece alarmante. Ainda assim, gostaria de apresentar uma nova possibilidade de leitura. Pode ser que Danjiki geinin se torne um objecto mais fascinante quanto mais projectarmos nele o seu autor, isto é, quanto menos o encararmos como um filme, mas como produto dos anseios de uma obra e carácter. Chamem-lhe psicanálise indevida de espectador, mas este estilo alegórico, em específico, decididamente presta-se a tais voos temerários.
Notas:
[1] Em Kafka, F. (1999). The Complete Short Stories. Grã Bretanha: Vintage, p. 276
[2] A transcrição pode ser lida em Adachi, M. (2012). Le Bus de la Révolution passera bientôt près de chez toi: Écrits sur le cinema, la guérilla et l’avant-garde (1963-2010). Paris: Rouge Profund, p. 218.
[3] Para a juventude revolucionária de 60 e 70, estes pares não eram substâncias metafísicas, separadas ad eternum pela incomunicabilidade corpo e mente, mas uma dialéctica. É este o pressuposto filosófico de todo o esquerdismo radical, isto é, a correcção do real pode dar-se quando 1) percebo, através do pensamento dialéctico, as estruturas de poder que configuram e conformam toda a realidade, 2) ajo de forma a subverter essa estrutura. Por isso, pode dizer-se que pensamento e acção tendem para o mesmo, porque a partir do primeiro encontra-se a necessidade do segundo e a partir do segundo cumpre-se o projecto do primeiro.
[4] Excepção seja feita a Sekigun-P.F.L.P: Sekai sensô sengen (Red Army/PFLP: Declaration of World War, 1971), o documentário, filmado a meias com Kôji Wakamatsu, responsável pelo longo abandono do cinema em prol da luta armada na Palestina por mais de 30 anos.
[5] Num artigo publicado em 1971, Adachi escrevia o seguinte acerca de Nagisa Ôshima, a propósito de Gishiki (The Ceremony, 1971): “Ele inquire novamente se as palavras do traficante de estórias, aquele que conta o pensamento, podem transmitir o verdadeiro peso da vida.” [em Adachi, M. (2012). Le Bus de la Révolution passera bientôt près de chez toi: Écrits sur le cinema, la guérilla et l’avant-garde (1963-2010). Paris: Rouge Profund, p. 84]. O esforço das alegorias, declinadas dos mitos formadores e das religiões edificantes, sempre foi o de reconduzir a depuração abstracta das narrativas à vida concreta e tangível. Tal implicaria um semi-reconhecimento e uma semi-estranheza entre umas e outras. A alegoria é e não é o real que transmite. Por contraste, a alegoria de Adachi funciona como uma descrição exasperante do caos do real. Desse modo, o movimento é precisamente inverso: no limite, a realidade é a alegoria, ou pelo menos, tem a pretensão de o ser.
[6] Terrorista japonês, conhecido por perpetrar o massacre do Aeroporto Lod em 1972, e que, após vários aprisionamentos em Israel, continua sendo procurado pelas autoridades japonesas que pedem a sua extradição.
[7] Muitas vezes, ouvimos esta frase proferida pelos dois monges itinerantes que observam, grávidos de esperança, o artista da fome em Danjiki geinin e, da mesma forma, em Yûheisha – terorisuto, o terrorista aprendia o verdadeiro significado dessa palavra quando, extenuado pela tortura policial, enlouquecia.
[8] Assim escrevia Max Tessier quando categorizava uma das marcas estilísticas decisivas da Nova Vaga Japonesa.
[9] Cinema erótico softcore com características e uma história bastante particular.
Danjiki geinin (The Artist of Fasting, 2016) de Masao Adachi será novamente exibido no Doclisboa, no dia 30 de Outubro, às 16h30 no pequeno auditório da Culturgest.