Duas semanas se passaram e nos entremeios dos afazeres de quem tem que tratar dos seus assuntos o cinema surgiu como respiração e ritmo – por dar um novo fôlego ao dia e por imprimir novo impulso ao girar das coisas. O cinema como rotina; um filme por dia; o cinema como oração nocturna antes do adormecer; filmes-pausa: estas são algumas das expressões que podem enquadrar a minha relação com a programação desta segunda metade do Doclisboa 2016. A primeira pode ser lida aqui.
Kako sam se zaljubio u Evu Ras (How I fell in Love with Eva Ras, 2016) de André Gil Mata
Kako sam se zaljubio u Evu Ras remete para a actriz Eva Ras, figura que percorreu o cinema Jugoslavo dos anos 60 até à actualidade. No entanto o enamoramento de Gil Mata pela actriz faz-se através dos seus filmes, e são esses que se encontram no filme, vistos através da abertura do projector. Na verdade o centro o filme é uma outra mulher, Senna, projeccionista de 70 anos, que vive paredes meias com a cabine de projecção. É exactamente aqui que se encontra o filme, na forma como introduz o cinema do quotidiano e o faz tão natural quanto almoçar, cuidar da neta ou lavar a roupa. Aliás, o mecanismo pelo qual Gil Mata introduz esta faceta do seu universo é de virtuosa dramaturgia. Conhecemos as três divisões daquela casa, numa luz matinal que não basta para iluminar as zonas escuras. Só quando Senna começa a limpar a bancada da cozinha com um pano é que, progressivamente, esse mesmo pano vai limpando toda a divisão e descobrimos os dois mastodônticos projectores. O pano da loiça é o pano do cinema — ideia que se concretiza literalmente mais à frente com os lençóis que Senna estende na corda da roupa, a segunda tela, nas costas da sala, a tela onde se projecta o quotidiano.
Aliás, mais ainda do que este paralelo entre o cinema e o dia-a-dia caseiro, o filme faz outro paralelo. Também logo num dos primeiros planos (e não são muitos, Gil Mata filme em longos planos fixos coalhados de um grão digital nostálgico doutras texturas mais analógicas, talvez) existe uma relação entre o cinema e a janela. Já que a abertura por onde encontram os filmes de Eva Ras é semelhante à janela que encima a sala de projecção. Assim o cinema surge como uma janela, mas não uma por onde vemos o mundo, pelo contrário, uma que nos ilumina a casa e nos ilumina a vida. Esse é o gesto mais belo de Kako sam se zaljubio u Evu Ras, a forma como é exactamente pelo cinema que se espalha luz sobre as memórias conturbadas daquela mulher e do seu país. Os excertos surgem com efeitos ora miméticos (por reproduzirem o que se passa na cabine de projecção, enquanto uns bebem cerveja os outros bebem bebidas licorosas), ora reveladores das desilusões das utopias da juventude e do amor frustrado de Senna. Algures entre Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) de Chantal Akerman e Goodbye, Dragon Inn (2003) de Ming-liang Tsai , o filme de André Gil Mata é, de longe, o mais belo filme que vi no Doclisboa 2016.
Correspondências (2016) de Rita Azevedo Gomes
No primeiro plano de Correspondências vemos uma menina sentada num banco e fala-se de anjos, ouve-se uma voz vinda do fora de campo que marca o take e dita, acção. Já no último plano do filme vemos a água a correr rapidamente e a imagem estanca, continua-se a ouvir o som e pergunta-se, cortaste?, sim cortei, ao que se segue o comentário de Rita Azevedo Gomes, agora já não dá para repetir. Correspondências é um filme que podia durar horas, o dispositivo que a realizadora iniciou é um movimento a tender para o perpétuo. Assim, o final teria que ser de rompante, quase por acidente, como se a bateria da câmara tivesse falhado, como se todo o filme decorresse de uma torrente contínua que só poderia ser parada pela sua própria exaustão. Aliás, esse é, de certo modo, o dilema dos dispositivos cinematográficos pós-modernos, como pará-los se não possuem um arco ou uma estrutura aparente. Rita Azevedo Gomes encontra a saída na própria limitação do seu dispositivo e como tal demonstra uma consciência profunda das formas como teceu o palimpsesto poético que cruza Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena nas suas missivas mas também nas suas poesias.
A estética palimpsesto manifesta-se na forma como as imagens, os registos e os sons se amontoam no terreno da tela: temos o cristalino do digital a enquadrar espaços fechados onde a profundidade de campo apresenta vários personagens dispersas pelo cenário, temos imagens de arquivo de Sophia e Sena, temos colagens de imagens de Super8 (ou o digital vertido no analógico por efeitos de pós-produção) e câmaras telemóveis ou iPads, pequenas ficções caseiras com Luís Miguel Cintra e Rita Durão e ainda sketchs, como o do peixe e a sua escamação. Todos estas mutações que Correspondências enverga orgulhosamente surgem da forma heteróclita (para usar um termo bénardiano) como o filme se construiu: filme de amigos e de encontros, feitos aos bocados e no seguimento dos acasos (certamente). Essa fluidez de forma, de estilo, de meios de produção, de registos e de tudo mais, é finalmente unificada pelo texto. Uma ode à poesia e à filosofia dos poetas, que são motor de um filme fascinado pelas suas próprias possibilidades.
Exile (2016) de Rithy Panh
Algo estranho se passa no cinema de Rithy Panh. Depois de anos a fazer documentários cruéis sobre as atrocidades dos Khmer Vermelhos, S-21, la machine de mort Khmère rouge (2003) e Duch, le maître des forges de l’enfer (2011), agora, nos últimos filmes, o foco do cinema documental do realizador parece ter-se transferido para um exercício de maquetes onde explora, através das potencialidades fantásticas do cinema, um acesso a um tempo e a uma situação passadas como em L’image manquante (2013) ou neste Exile. É certo que alguma da sua ficção já dava a antever este desfecho. Se é certo que as abordagens anteriores já continham em si os gérmen destes novos ensaios (veja-se, por exemplo, o pintor que especula os campos de extermínio em S-21), também é certo que o cinema de Rithy Panh se esteticizou num romantismo nostálgico à procura de uma saída para a culpa do sobrevivente. Exile constitui essa estética levada ao ponto de caramelo (daquele que se cola nos dentes), onde à torrente de palavras que a narração oferece, se juntam um conjunto de imagens sempre desejosas de estarrecer. Esta pictórica e sonora avalanche poética ganha um efeito de dessensibilização que mina os propósitos daquilo que conhecia do cinema do realizador cambojano.
Mas ainda assim, uma frase me ficou do discurso do filme, dita a propósito dos perigos do totalitalismo comunista no Camboja, a pureza é o terror. Mas o que é Exile senão um exercício de pureza formalista? Veja-se a forma como os encadeados fundidos se encaixam perfeitamente nos efeitos de fantasmagoria, a forma como as possibilidade do digital constroem imagens místicas, o modo como o espaço de um estúdio reflecte um país e a vida na miséria, mas tudo sempre tintado por uma luz dourada. Ainda assim, há no mais recente filme de Rithy Panh uma série de soluções simbólico-metafóricas que, ainda que perdidas na torrente, deixam lastro pela sua sensibilidade: o gesto de enterrar um passado para melhor o poder exumar, a associação do exilado ao espectador de cinema confortável na sua posição distante (que faz a ponte com o filme anterior e a problemática das imagens em falta que existindo promoveriam o esquecimento — vide Didi-Huberman), o despojo de bens materiais reduzido ao utensílio fundamental da sobrevivência, a colher, ou, por fim, a forma como um arquivo pessoal se faz público e a autobiografia se verte na história de um país. Nesses momentos Rithy Panh é justo, com o seu tema e com o seu cinema.
Silêncios do Olhar (2016) de José Nascimento
José (ou Zé, como todos lhe chamam) Álvaro Morais é o realizador em foco no filme de José Nascimento. E é um objecto pessoal no sentido em que os dois realizadores foram amigos próximos (“unha com carne” como o próprio disse na sessão do filme) que se conheceram no estúdio da Tóbis, aquando da rodagem de O Bobo (1987). Conta-se no filme que Nascimento, juntamente com Augusto M. Seabra, estavam a montar na Tóbis um programa para a televisão (sobre cinema) e que terá sido a propósito de uma peça dedicada à rodagem da adaptação de Herculano (que incluía uma entrevista a Álvaro Morais) que mais tarde Nascimento seria convidado para montar o filme. E se iniciaria a parceria profissional e a amizade — ao ponto de, segundo Nascimento, o Zé Álvaro lhe ter dito que se algum dia se fizesse um filme sobre si que fosse o José Nascimento a fazê-lo. Neste sentido, Silêncios do Olhar é um filme de amigos, e nem de propósito se inicia com uma jantarada onde várias pessoas próximas do realizador falam, entre garfadas e copos de vinho, de quem era e de onde viera esse homem.
José Nascimento percorre toda a obra de Álvaro Morais, e o melhor do filme é de facto a narração (dita pelo próprio) que remonta vários depoimentos de Morais, em entrevistas e outros textos, numa unidade surpreendente. Ou então, quando a câmara de Nascimento regressa aos locais de rodagem dos filmes que homenageia e com os mesmos actores opera uma recriação, transida pelo tempo que passou. Nesses gestos em que a voz de um se manifesta pela voz do outro e o olho se repete pelo olho do outro, está mais do que simples homenagem uma retribuição, já que em O Bobo o cameo de Álvaro Morais no comboio acabaria dobrado pelo próprio Nascimento. Nesses momentos encontra-se uma lucidez extraordinária na forma como o realizador via o seu cinema, e esse é o maior achado. A juntar a isto, os depoimentos de Vasco Pimentel e Beatriz Batarda sobre os métodos do realizador são particularmente reveladores da sua forma de ver o cinema. Lamenta-se que a versão apresentada no festival não seja ainda uma versão definitiva e que o cuidado com certos pormenores não espelhe a obsessão perfeccionista de relojoeiro que o Zé Álvaro tinha.
Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo (2016) de João Monteiro
A sessão de encerramento do festival teve um momento de terna beleza: a salva de palmas quase interminável que saudou João Monteiro durante largos minutos. Uma salva que quis agradecer a Monteiro o trabalho de recuperar um realizador algo esquecido (e de certo modo, desmerecido), mas também a perseverança de um projecto que se alongou por vários anos, em diferentes modos, com apoios sempre precários. Nesse sentido, Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo é um objecto valioso também pelos testemunhos que recolheu junto de muitos dos realizador do Cinema Novo Português, alguns deles entretanto falecidos: Fernando Lopes, Fonseca e Costa e Paulo Rocha. E talvez pela idade dos participantes (que já pouco têm e tinham que se preocupar) Monteiro conseguiu extrair alguns depoimentos de uma candura surpreendente. A sinceridade dos comentários (o pigmeu Bénard, como lhe chama Macedo) que não se importam de criticar ou desdenhar os colegas (Cunha Telles como o produtor sedento) revela finalmente um pouco o que terão sido as clivagens de um grupo que nunca foi de facto uno ou uniforme. Ou seja, tentando reavaliar a obra de Macedo, Monteiro acaba por reavaliar o próprio movimento do Cinema Novo Português (ainda que apenas de passagem, é certo).
Neste sentido o filme de João Monteiro é uma obra de enorme força lúdica para um espectador cinéfilo, que o faz gargalhar a cada cinco minutos pelas inside stories que se revelam, e mais que isso, é um objecto que segue uma linha narrativa em arco (ainda que o arco seja bastante curvo e ondulado), de ascensão e queda e nova ascensão, que tem um poder emocional bastante forte. Mas a chave para compreender Nos Interstícios da Realidade passa, creio eu, por encarar o filme dentro dos próprios mecanismos pelos quais se escreve a história. É que, de facto, se Monteiro promove uma reescrita da história do cinema português, ou melhor, uma reinscrição na história do cinema português, fá-lo através dos mesmos mecanismos que promoveram o esquecimento e o apagamento de António Macedo dessa mesma história. Isto é, se a candura dos entrevistas se revela no desbocamento, a candura de Monteiro revela-se na crença de uma possível reparação histórica. Como se existisse de facto a possibilidade de se aceder aos factos do passado. Assim a narrativa emocional que promove a correcção de uma falha da história é também ela uma distorção dessa mesma história, como são, afinal, todas as Histórias, enclausuradas pela própria limitação do conhecimento. Esse é o aspecto que, sendo a grande força do filme, é também a sua maior fraqueza.