Uma semana se passou e nos entremeios dos afazeres de quem tem que tratar dos seus assuntos o cinema surgiu como respiração e ritmo – por dar um novo fôlego ao dia e por imprimir novo impulso ao girar das coisas. O cinema como rotina; um filme por dia; o cinema como oração nocturna antes do adormecer; filmes-pausa: estas são algumas das expressões que podem enquadrar a minha relação com a programação desta primeira metade do Doclisboa 2016. A segunda está para breve.
A German Life (2016) de Christian Krönes, Florian Weigensamer, Olaf S. Müller e Roland Schrotthofer
Em Journey to the West (2014) de Tsai Ming-liang encaramos o rosto de Denis Lavant, num grande plano (semelhante ao que encima estas linhas) que expõe a natureza acidentada da sua superfície. Ficamos com esse rosto por longos minutos num plano fixo que dura tantos minutos quantos aqueles que Lavant consegue passar sem piscar os olhos. A German Life encontra também essa qualidade rochosa no rosto da sua protagonista, a secretária de Goebbels agora com 103 anos (e de uma lucidez extraordinária). O preto e branco altamente contrastado da entrevista e os planos que aprofundam a face desta mulher parecem querer encontrar algo entre as rugas da sua cara, ou mais que isso, uma simples evidência do seu envelhecimento. Já que todo o filme surge no sentido de nos mostrar uma mulher que recorda um outro tempo (ainda tem memórias de infância da Primeira Grande Guerra) e que necessariamente já não é a mesma pessoa que viveu essas memórias. Aquele rosto marcado pelo tempo surge como testemunha da distância à pessoa que ela foi, à inocência ignorante que teve e ao desinteresse submisso que a levou a pactuar com um regime que não questionava (não o questionavam a maioria dos alemães que elegeram democraticamente Hitler e o apoiaram durante o decorrer do seu governo — “a única culpa que posso sentir é aquela que qualquer alemão sente”).
O dispositivo da entrevista que os realizadores exploram em A German Life no sentido da revelação histórica é no fundo o mesmo que depois exploram aquando do recurso do material de arquivo. Isto é, da mesma forma que a iluminação trata de perspectivar uma mulher no século XX, também a introdução de excertos de filmes de propaganda (de ambos os lados), de jornais de actualidades e de outras imagens em movimento é sempre antecedida por um cartão que nos informa da origem do fragmento fílmico, a sua identificação, o seu contexto de produção e o seu local de arquivamento. Neste sentido nenhuma dessas imagens aparece como recurso ilustrativo da entrevista (ainda que naturalmente a confrontem e comentem), surgem como documentos do passado coreografados segundo um estilo universitário (com fonte bibliográfica segunda as normas da APA). Assim como também o testemunho de Brunhilde Pomsel nunca é ilustrativo daqueles anos, é também ele um documento. Por isto, aquilo que mais marca o filme é a consciência dos realizadores das limitações epistemológicas do saber histórico. E talvez por isso o filme seja um dos mais valiosos documentos produzidos recentemente sobre a Alemanha Nazi.
Rat Film (2016) de Theo Anthony
No mesmo dia em que fui ver Rat Film levei o meu gato, Haruki, ao veterinário. Parece que tem cálculos na bexiga, ou areias nos rins… O certo é que teve que ser algaliado (para quem não sabe os pénis dos gatos são umas minhoquinhas vermelhas muito pequeninas e escondidas num orifício peludo, de calibre muito reduzido, um milímetro apenas — mais ainda por ter sido o Haruki castrado muito cedo) e a experiência foi estranha. Ver o meu gato anestesiado, com os olhos totalmente abertos mas sem reacção ao mundo, deitado imóvel (e talvez mais estranho tenha sido o seu estado de semi-inebriamento no pós-intervenção) marcou-me. Talvez mais ainda por ver pouco depois o filme de Theo Anthony, já que encontrava constantemente paralelos com a situação que tinha acabado de viver (já se sabe que uma bola preta numa tabela de críticos resulta de uma cólica intestinal devido ao leite estragado do pequeno almoço, e as cinco estrelas vêm de um foda bem dada na noite anterior).
Mas deixo-me de rodeios. Rat Film é um filme esperto (como as próprias ratazanas que aprendem que a manteiga de amendoim costuma vir envenenada mas ainda assim caem no molho de churrasco) que se serve da questão da infestação de ratazanas na cidade de Baltimore para fazer um ensaio de forte pendor documental (e como tal muito pedagógico num certo sentido, dada a sua propensão para o entretenimento — Anthony foi produtor de conteúdos audiovisuais para a revista Vice durante alguns anos) sobre os problemas raciais, de urbanismo, de influência estatal na segregação e as condições de vida de certas camadas da população. Neste sentido o esquema narrativo do filme é de uma inteligência profundamente contagiante, ao ser capaz de articular dados estatísticos, históricos, urbanísticos, legais (e que mais) num objecto que não deixa de nos manter agarrados. E mais que isso é um filme que não esquece as pessoas nem as situações sociais sem nunca enveredar pelo miserabilísmo de um olhar superior. E se isto não bastasse, é ainda um objecto que pulula de ideias de montagem e se faz acompanhar de uma banda sonora experimental a cargo do extraordinário Dan Deacon. Uma primeira obra que faz aquilo que as primeiras obras têm a obrigação de fazer: é fresca como a alface.
By Sidney Lumet (2015) de Nancy Buirski
“Não há uma moralidade, há a moral daquelas pessoas naquela situação. Se eu as dirigir bem, então será possível que uma moral surja. Mas inconscientemente”. Lumet fala e nós ouvimos. O dispositivo é simples, um homem sentado numa espécie de directo perpétuo (e o estranhamento é ainda maior por Lumet já ter morrido em 2011, datando esta entrevista de 2008) que não pode deixar de tecer comparações a De Palma (2016) — exibido na última edição do MOTELx. Um realizador fala dos seus processos, dos seus métodos, das suas ideias, dos seus fracassos e também da sua vida (talvez aqui se centra a diferença maior com o outro filme), de forma desabrida e cândida, expondo tudo numa capacidade de auto-análise que é rara. Mas não é por acaso que o próprio Lumet fala de work work work (como a Rihanna), isto é, falar do seu métier é falar de si. Essa é no fundo a chave tocante do (tele-)filme de Buirski, encontrar a vida de Lumet no cinema e no cinema a vida de Lumet — logo a começar por um gesto recoreográfico que transmuta o corpo de Lumet criança no de um child actor dos anos 1930, ou quando Bogart fala do seu desespero de não querer ser actor, como se tirasse as palavras da boca do realizador.
Mas talvez aquilo que tenha interessado ao programadores do DocLisboa (mais ainda pelas linhas programáticas que se podem traçar entre este título e a retrospectiva do cinema cubano ou da secção Cinema de Urgência) é o recorrente interesse de Lumet pela figura do radical — “os radicais têm sempre algo para oferecer” —, nesse sentido alguns dos momentos mais reveladores do filme são aqueles em que o realizador olha criticamente e analiticamente para alguns dos seus filmes sobre activistas e activismos, em particular, a estratificação dos conflitos familiares e a desilusão das utopias em Running on Empty (1988) ou a interpretação semiótica de um plano e uma não-escolha de montagem em The Verdict (1982). Mas mesmo aí Lumet afirma “nunca fui activista, o activismo interessa-me como tema”. Ou seja, Lumet abrindo-se ao cinema e soltando-se do espartilho do politiquismo em que a sua obra foi sendo encapsulada (também pela prórpia Nancy Buirski que de um total de quatro dezenas de filmes se centrou numa dúzia bem escolhida). Lumet o político, não. Lumet, o cineasta.
Cinema Futures (2016) de Michael Palm
O filme de Michael Palm começa entre uma estátua de yoda e outra de Muybridge a poucos metros de distância. Uma é um ponto de referência do turista da selfie, o outro está esquecido. A metáfora que Palm promove é que o cinema do primeiro sobrevive através da reverência digital (na forma da câmara de um smartphone e o efeito de cutlo), já o segundo evapora-se numa memória longíqua que desnatura com a não preservação. Essa será a grande questão sem resposta e a grande oposição que o filme coloca e que se resume nos créditos de abertura em que se lê “a film by” e depois, “a file by”. O digital chegou e provocou uma mudança ontológica na matéria do cinema que se ramifica em todas as suas efervescências culturais: do produção à exibição, da conservação ao restauro. No sentido de promover o debate sobre a digitalização do cinema, o realizador convoca sumidades como Martin Scorsese, Christopher Nolan, Apichatpong Weerasethakul, David Bordwell, Tom Gunning, Jacques Rancière, Paolo Cherchi Usai, Nicole Brenez sendo que algumas contribuem definitavemente para a problematização (Cherchi Usai, Scorsese, Bordwell e Gunning, este último a mais acutilante das cabeças falantes — “as obras não são eternas… a conservação tem mais que ver com amor e erotismo”) outros surgem apenas como um nome bom para listar (Apichatpong diz três palavras, Brenez e Rancière quase não falam e pouco acrescentam, Nolan fica-se pelas banalidades).
No entanto a grande força do filme de Palm não passa tanto pelos comentários dos entrevistados (a que recorre mais pelo contexto e pelo argumento da autoridade), mas pela forma como este encara o próprio cinema como o melhor meio para se questionar sobre as suas mutações. Neste sentido as comparações metafóricas evidenciam-se quando os Gremlins invadem a cabine de projecção e substituem a bobina e Palm encontra o digital takeover operado aquando de Avatar (2009), ou quando a Novak de Vertigo (1958) aponta para as linhas de um tronco que estratificam a história dos séculos e Palm faz raccord para uma bobina petrificada num arquivo, ou ainda quando estabelece o paralelo entre os humanos e os replicantes de Blade Runner (1982) e o analógico e o digital — em tudo idênticos, só que os segundos têm apenas 4 anos de vida e não o sabem… Na verdade, Palm é mais desconfiado e catrastrofista do que a maioria das pessoas com quem fala, e encara o digital com renitência (justificada no que respeita aos problemas da preservação) sem abraçar com gosto as possibilidades do “restauro como interpretação” como fala Scorsese ou o “arquivo como espaço infinito de história possíveis” como refere Brenez. Nesse sentido fica-se com um objecto deprimido com o estado de coisas (e que melancolicamente percorre em lindíssimos travellings os corredores do arquivos cinematográficos do mundo) que olha para o futuro pelas lentes de um conservadorismo académico. É pena.
A Cidade Onde Envelheço (2016) de Marília Rocha
O filme de Marília Rocha representa muito do ar dos tempos, e nesse sentido as suas duas actrizes e a sua encenação documenta melhor uma juventude à deriva sem saber o que quer (nem o que não quer), sem grandes objectivos, desiludida, anti-utópica, aborrecida, tentando prolongar um enfezada inocência infantil para a idade adulta, do que qualquer possível documentário tradicional. Aliás, é na própria deriva do filme por territórios fluidos e híbridos da doc-fic (ou do fic-doc) que melhor se encontram as suas personagens, elas mesmas também perdidas entre territórios (literalmente, dada a sua condição de emigrantes portuguesas no Brasil) e entre culturas e formas de ser. Um dos pormenores mais delicados do filme passa pelo modo como toda a narrativa é solta e meio sem-propósito. Vagueante. Uma flânerie narrativa apenas ancorada a duas mulheres: uma introvertida que encontra defeitos em tudo o que a rodeia, e outra, deslumbrada com defeitos do mundo e portanto saudosa de não os poder abraçar todos de uma vez.
A forma como os diálogos surgem em ritmos estranhos, com enormes silêncios entre as palavras e as deixas, faz de A Cidade Onde Envelheço um filme de fino recorte sonoro. Muito subtil na forma como evita o típico sobrecarregar da banda de som opondo aos momentos de enorme calma invectivas musicais, quase sempre diegéticas, que derivam por danças e bailados que contagiam todos os personagens. A juntar a isto, a qualidade leitosa da luz que perpassa o filme de Marília Rocha, numa calma apaziguante que tem o dom de evidenciar o desespero sem nunca o sublinhar, tem um efeito reconfortante. Neste sentido A Cidade Onde Envelheço é um filme que fala, sem falar — como nas conversas de amigos —, sobre uma geração; ele próprio feito (anti-)manifesto de um movimento sem rumo, sem cabeça e sem vontade.
O Espectador Espantado (2016) de Edgar Pêra
O novo filme de Edgar Pêra coloca uma pergunta a vários dos seus entrevistados que é, “o que é mais cinema, um jogo de futebol no grande ecrã ou o Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) no telemóvel“? O realizador não tem propriamente uma resposta, e sinceramente também não é bem a pergunta que mais lhe interessa. Serve no entanto a questão para interrogar sobre o que é afinal esse bicho estranho e em constante metamorfose chamado espectador de cinema. O filme parte da tese de doutoramento de Pêra, e inclui várias entrevistas a académicos, críticos e programadores de cinema feitas a esse propósito (Olaf Möller, Laura Mulvey, Laura Rascaroli, Eduardo Lourenço, Augusto M. Seabra, Guy Maddin, Fátima Chinita, ou F.J. Ossang — e como em Cinema Futures alguns dos entrevistados são perfurantes e outros, tiros ao lado). No entanto Pêra também entrevista familiares seus e inclui até imagens do seu filho a gritar CINEMA. A fronteira entre o filme-tese e o filme intimista é algo que o filme explora, no sentido de encontrar respostas para a hipótese colocada, na senda do cinema ensaístico clássico que olha de si para o mundo e faz questão de exibir a armação das lentes.
Do ponto de vista formal (e é esse quase sempre o dado de maior interesse no seu cinema), O Espectador Espantado é um objecto hiper-activo, mesmo frenético — como todos os seus filmes. Pêra é, afinal, um realizador espantado, que se deslumbra uma e outra vez com as imensas possibilidades do cinema. Nesse sentido a solução promovida pelo 3D de projectar entrevistas originalmente produzidas em duas dimensões sobre os assentos de uma sala de cinema, sobre corpos e sobre outras superfícies texturizadas remete para a ideia de um cinema que se projecta de modo diferente dentro de cada espectador. Se a ideia é boa, o filme não consegue escapar ao síndrome das cabeças falantes de documentários mais convencionais. A este respeito, parece-me que o recurso a excertos de todos os filmes anteriores do realizador, em 3D — Cinesapiens, A Caverna, Lisbon Revisited — e não só, converte o filme num projecto costurado onde cada remendo tem um tom e uma cor distintas, o que não destoaria da obra do realizador não fosse o intuito académico do projecto em particular. Um filme estranho e algo perdido entre o pendor investigativo/pedagógico e o maravilhamento avant-garde.