Quando chega um festival com centenas de filmes, em várias secções, com diferentes retrospectivas, ciclos, mostras e programas especiais, com nomes conhecidos e outros por conhecer, com uma miríade de estreias (muitas delas mundiais) e outra de convidados estrangeiros, masterclasses e demais festas (e ainda sessões de cinema…), há que encontrar um caminho por entre o mar de possibilidades, um caminho que cabe a cada espectador descobrir. O que proponho são quatro rotas que poderão funcionar como inspiração ao leitor para percorrer os dez dias de festival, de 20 a 30 de Outubro.
Rota #1: competições
Como é normal percorrer os filmes programados na competição internacional do DocLisboa é um exercício para os mais corajosos, já que um olhar rápido dificilmente encontrará os nomes sonantes de outras secções. Já na competição nacional o caso é outro e este ano os filmes de realizadores portugueses compõe uma porção muito significativa da programação. Correspondências (2016) de Rita Azevedo Gomes (cujo maravilhoso A Vingança de Uma Mulher, seu filme anterior, parece só agora estar a ganhar reconhecimento, quando esse reconhecimento vem da crítica estrangeira) é o único filme português na competição internacional — num slot de programação que já vem fazendo tradição — e é apresentado em estreia nacional, depois de ter estreado na última edição do Festival de Locarno. Também do festival suíço surge outro título nesta competição, Rat Film (2016) de Theo Anthony, primeira longa-metragem do realizador norte-americano que encontra na figura dos roedores um reflexo do nosso mundo. Ainda na competição, chamo a atenção para Calabria (2016) de Pierre-François Sauter (outro título presente em Locarno, mas que havia estreado no Festival Visions do Réel e que agora tem a sua estreia internacional), um road movie funerário em que dois homens acompanham o cadáver de um emigrante calabrês ao seu local de enterro no sul de Itália.
Já na competição nacional o primeiro destaque terá que ir para A Cidade onde envelheço (2016) de Marília Rocha que surge nesta competição por ser uma co-produção com a TERRATREME Filmes. Aliás, o filme inicia-se em Lisboa e num registo entre o documentário e a ficção, contando uma história de saudade e emigração. Também em terras longínquas se filma Ama-San (2016) de Cláudia Varejão (que entrevistei no início do ano a propósito da sua estreia na longa-metragem, No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos) que originou em paralelo com um projecto de fotografia para o Museu do Oriente sobre as Ama-san – um grupo de mulheres no Japão que perpetua uma tradição milenar de mergulho em apneia para pescar algas, ouriços, abalones, ostras e as suas pérolas – do qual publicou um livro, Ama-San 海女さん. Na curta-metragem (as competições do DocLisboa esbatem as categorias de género e também de duração) surge Layla e Lancelot (2016) de Joana Linda, cujo trabalho na realização a edição mais recente do festival Rama em Flor homenageou e da qual destaco Em Cada Lar Perfeito, Um Coração Desfeito (2014) que já havia sido seleccionado para o IndieLisboa.
Rota #2: os caminhos da cinefilia
Se o leitor (e espectador em potência) é um cinéfilo ou se lhe interessam as questões do cinema como meio, então proponho-lhe uma outra rota, pelos filmes do festival que reflectem sobre a sua própria natureza. Of the North (2015) Dominic Gagnon surge como uma espécie de Anti-Nanook of the North logo pelo título que apaga o nome do esquimó de Flaherty e por ser uma espécie de estudo etnográfico do século XXI feito através dos próprios exercícios de auto-etnografia dos esquimós que se filmam e publicam os resultados nas redes sociais e plataformas de vídeo online. Também no sentido de uma necessária reescrita da história do cinema surge o filme de encerramento, Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo (2016) de João Monteiro (antecipado na antevisão do último MOTELx) sobre a obra de António de Macedo que o director do festival de terror de Lisboa vem ao longo dos anos homenageando (ao ponto de este ano, há poucas semanas, se ter estreado por lá O Segredo das Pedras Vivas, aquele que será o último filme do cineasta). Também sobre o cinema português surgem outros dois títulos, o imperdível filme de José Nascimento e Augusto M. Seabra que é agora recuperado (homenageando Seabra no ano em que este se ausenta da programação da secção Riscos), Manoel de Oliveira: 50 Anos de Carreira (1981), que nos oferece um olhar sobre a carreira de Oliveira quando esta estava ainda nos seus primórdios; e Silêncios do Olhar (2016), também de José Nascimento, sobre a carreira de outro grande realizador português, José Álvaro Morais. Também sobre o cinema, e também com M. Seabra (como entrevistado) surge, na competição nacional, O Espectador Espantado (2016) de Edgar Pêra (que também entrevistei no início do ano a propósito de Lisbon Revisited) sobre a posição do espectador de cinema nos dias de hoje, incluindo entrevistas a outras figuras da crítica, da programação, da academia e da cinefilia como Olaf Möller, Laura Mulvey, Laura Rascaroli, Eduardo Lourenço, Guy Maddin ou F.J. Ossang.
Ainda pela mão de um realizador português encontramos Kako sam se zaljubio u Evu Ras (2016) de André Gil Mata (realizador de Cativeiro) sobre uma projeccionista que passa os seus dias numa cabine de projecção exibido os poucos filmes jugoslavos remanescentes, e na competição internacional encontramos Un Ami de Sibérie (2016) de Yuki Kawamura, outro retrato, desta vez de um realizador cego russo que Yuki conheceu no festival de São Petersburgo. Se prefere títulos mais seguros e nomes mais afamados, então David Lynch: The Art Life (2016) de Jon Nguyen, Olivia Neergaard-Holm e Rick Barnes e By Sidney Lumet (2015) de Nancy Buirski são dois títulos a não perder e que naturalmente versam sobre os realizadores dos respectivos títulos. Como último destaque desta rota, chamo a atenção para Cinema Futures (2016) de Michael Palm que reflecte sobre a transição do cinema analógico para o digital numa série de episódios aforísticos e com entrevistas a personalidades como Martin Scorsese, Christopher Nolan, Apichatpong Weerasethakul, David Bordwell, Tom Gunning, Jacques Rancière, Margaret Bodde, Paolo Cherchi Usai, Nicole Brenez, entre outras.
Rota #3: sessões duplas
Outro percurso que aconselho é o das sessões duplas que é possível formar com os filmes do festival, já que certos cineastas se encontram representados em diferentes secções com filmes seus. O caso mais evidente será a sessão dupla dos filmes de Pere Portabella (o segundo pensado como sequela do primeiro, já tido como clássico) Informe General sobre unas Cuestiones de Interés para una Proyección Pública (1976) e Informe General II. El Nuevo Rapto de Europa (2015) onde o realizador actualiza e alarga o universo político espanhol após a queda de Franco para a crise económica, cultural e artística deste início de milénio. Outra óbvia sessão dupla será em redor do crítico e cineasta Mark Cousins (entrevistado para o À pala de Walsh por Luís Mendonça) que apresenta no festival Life may be (2014) (co-realizado com Mania Akbari) e Atomic: Living in Dread and Promise (2015). Os espectadores portugueses conhecem-no da série sobre a história do cinema estreada em sala e editada em DVD, The Story of Film, an Odissey.
Mas talvez as possíveis sessões duplas mais apetitosas sejam aquelas que versam sobre cineastas queridos do festival. Mike Hoolbloom apresenta dois filmes no festival Incident Reports (2015) e We make Couples (2016). O realizador habituado a trabalhar com found footage é já um habitué do festival e estes dois títulos voltam a mostrar as colagens furiosamente queer que cruzam e desfazem o género (no primeiro) ou copulam revoltas e resistências (no segundo). Outro nome que todos os anos marca a sua presença no festival é Boris Lehman, e os filmes que o trazem ao festival são Funérailles (de l’Art de mourir) (2016) e Oublis, Regrets et Repentirs (2016) (este último uma espécie de bobine perdida do seu projecto anterior, Mes sept lieux, um gigantesco opus de cinco horas). Quem conhece a obra do realizador já lhe conhece a sensibilidade auto-biográfica e a forma como Lehman encontra na sua vida a poesia para interpretar o que o rodeia. A última sessão dupla que proponho é dedicada a um realizador ainda em início de carreira, Louis Henderson, que apresenta na competição internacional a curta-metragem The Sea is History (2016) e que no programa dedicado às correspondências apresenta Logical Revolts (2012) de Louis Henderson — este realizador já havia tido um filme seu seleccionado pelo IndieLisboa, All That is Solid (2014), um desktop documentary que re-apropriava imagens de um dos seus projectos anteriores.
Rota #4: o caminho seguro
Para terminar as rotas, e porque nem todos os caminhos têm que ser aventurosos, proponho uma série de filmes da nova secção do festival, Do Céu à Lua, onde se apresentam os novos filmes de: Wang Bing (realizador de Feng Ai e San Zi Mei e várias vezes vencedor da competição internacional do DocLisboa) que desta vez apresenta Ta’ang (2016); Werner Herzog com Lo and behold, Reveries of the Connected World (2016); Rithy Panh com Exile (2016) (realizador de Duch, le maître des forges de l’enfer e L’image manquante); e Sergei Loznitsa com Austerlitz (2016). No entanto, também nesta secção há nomes menos reconhecíveis, Sébastien Lifshitz venceu com Les Vies de Thérèse (2016) a Queer Palm em Cannes este ano, mas os espectadores portugueses talvez se recordem de Bambi (2014) exibido no QueerLisboa e no Indielisboa. Outro filme que tem corrido inúmeros festivais e ganho grande destaque é Ein Deutsches Leben (2016) de Christian Krönes, Florian Weigensamer, Roland Schrotthofer e Olaf S. Müller sobre a secretária pessoal de Joseph Goebbles que recorda o seu período com o ministro da propaganda da Alemanha nazi.
Mas para terminar não se pode escapar à retrospectiva dedicada a Peter Watkins nem ao tributo ao récem falecido Peter Hutton. Hutton é um realizador querido do À pala de Walsh, especialmente pela mão de Luís Mendonça, publicámos uma entrevista inédita (e provavelmente a última antes da sua morte) feita por Toni D’Angela.O Luís escreveu um bonito In Memoriam dedicado ao realizador e já antes havia destacado a trilogia de Nova Iorque como um série rara a descobrir: espero que com este tributo feito pelo DocLisboa se preencha uma lacuna no panorama cinéfilo dos espectadores portugueses (incluindo-me). Na infinidade das rotas, pode ser que nos encontremos nos cruzamentos. Até à vista.