Quando Xavier Dolan em 2014 (e então com 25 anos) venceu em Cannes o prémio do Júri por Mommy (Mamã, 2014) ex-aequo com Jean-Luc Godard não houve quem não reparasse no simbólico acto comparativo. E se os esperançados num novo wonder kid se apressaram a louvar a bonita “passagem de testemunho”, os cépticos viram este paralelismo como um símbolo do “declínio do Ocidente” (só que no cinema), e o filme do jovem canadiano como o mais perfeito exemplo desse Adieu au Langage (Adeus à Linguagem, 2014) para o qual o “jovem” franco-suíço alertava.
Gostos e ódios à parte é impossível ficar indiferente ao facto de Xavier Dolan ser hoje o cineasta jovem mais premiado do cinema contemporâneo. Não que isso ateste necessariamente qualquer qualidade, mas ao invés permita pensar essa precocidade por relação a dois modelos separados por um abismo: os modelos de Mozart e, just for the sake of our times, de Justin Bieber por exemplo. Talvez por isso, parte do que importa hoje nos filmes de Dolan seja menos o de os considerar anonimamente, de per si, mas antes essa lúdica tarefa de descortinar o genial na charlatanice ou viceversa.
Dois anos depois, Dolan volta a vencer em Cannes o grande prémio do Júri (desta vez sozinho) com Juste la Fin du Monde (Tão Só o Fim do Mundo, 2016). Pela primeira vez a trabalhar com um cast francês – Vincent Cassel, Marion Cotillard, Léa Seydoux, Gaspard Ulliel, Nathalie Baye – Dolan adapta uma peça de Jean-Luc Lagarce e filma em 6 dias no Canadá esta história de um jovem escritor que, depois de mais de uma década ausente, regressa à casa de família para lhes contar que a sua morte está eminente devido a uma grave doença. De certa forma Juste la Fin já tinha sido feito em 2013: Tom à la Ferme (Tom na Quinta) também é a adaptação de uma peça de teatro e o regresso ao interior do Canadá para lidar com uma morte, a do namorado, e a indirecta revelação à família deste da sua orientação sexual.
Se neste filme, um dos seus melhores, havia uma ambiência de thriller, de peso psicológico em torno da homofobia e da dominação, agora, em 2016, este regresso ao tema do próprio regresso parece tornar-se um tanto abstracto narrativamente. O escritor Louis passa o filme a observar os efeitos que a sua ausência causou na família (a mãe que o admira não o compreendendo, o violento irmão que acha que esse tique do observador e do detalhe é uma estratégia de superioridade e a irmã mais nova, que cresceu com um vazio motivado pela distância) e em contraste Dolan povoa o seu filme de uma banda som que é sobretudo (mas não só) uma banda grito-discussão. Se em Mommy esse falar constante provinha de uma doença bipolar do seu protagonista e de uma energia própria da juventude do cineasta que “gritava tecnicamente” (lembrem-se do formato aprisionante 1:1), aqui parece que Dolan quer trabalhar sobre a ideia do contraste. Diz-se tudo, agitam-se os corpos, dança-se, berra-se, enfim, uma gritaria sem fim, e são no fundo as palavras importantes que ficam por dizer.
Estratégia esta arriscada pois trata-se assim de construir um filme com um corpo histriónico e cujas personagens acabam por ficar pouco desenvolvidas e as situações algo formatadas (por exemplo, o filme apoia-se em demasia nesta ideia de uma nostalgia bonita e expressiva do relembrar do passado). Isto porque tudo se deve submeter a esta ideia de contraste entre o grito e a mudez. Mas sendo rigorosos Mommy já trabalhava este contraste: a noção que por detrás das asneiras e das discussões constantes se esconde o silêncio, a consistência e a felicidade das relações familiares. Contudo, este tinha um caminho com mais percalços narrativos. Juste la Fin du Monde acaba por ser um regresso aos temas de Dolan, mas sem ter algo de muito novo a dizer. Assim, ficamos apenas como os contornos, o estilo brique-a-braque do virtuoso que ora emula Gus Van Sant, ora faz lembrar Spring Breakers de Harmony Korine.
Leio por aí sobre a transcendência dos rostos destas personagens colocadas no “fim do mundo”. Talvez seja caso para dizer que um ambicioso projecto de projectar Dolan como um anti-Dreyer que chegasse ao mesmo objectivo, se cole demasiado ao mel do pior Wong Kar-Wai para lhe podermos dar crédito. Em resumo, este é talvez o filme que mais se parece com uma primeira obra dos que vi do canadiano, isto mesmo partindo do pressuposto de que um dos seus méritos é o de tornar as sequências de montagem-videoclipe em momentos mais refrescantes do que desvirtuadores de uma linguagem.