Un être privé de la fonction de l’irréel est un névrosé aussi bien que l’être privé de la fonction du réel.
Gaston Bachelard, L’air et les songes
Que bom se a gente pudesse arrancar do pensamento
E sepultar a saudade na noite do esquecimento
Mas a sombra da lembrança é igual à sombra da gente
Pelos caminhos da vida, ela está sempre presente
Tião Carreiro e Pardinho, A mão do tempo
Mas a reiteração da vida por si mesma permaneceria desesperada sem o simulacro do artista que, ao reproduzir este espetáculo, chega a liberar a si mesmo da reiteração
Pierre Klossowski
Noites Paraguaias (1982) é um filme que, na contramão de nossos tempos e olhos desencantados, é prenhe de aura, mas a operação empreendida em direção ao numinoso tem na infra-estrutura do detalhe realista o seu núcleo. E o numinoso agora – para esta arte materialista, que só pode conceber o divino como o demoníaco sob a intercessão dos gestos, dos ritmos, da Gesta de suas criaturas – não é exatamente aquilo que é digno de unção e culto, mas um divino faceiro, divertido, diferido, que convoca os seus adoradores para dançar e flertar com o mundo vigente. O seu lugar é o afresco rapsódico, o music hall de fronteira, o esquete carnavalesco (o diabo que toca trompete), o happening de rua, o improviso de beira de porta e bar, a diatribe bêbada, a cantada chistosa. A linha reta “de fundo” de uma narrativa sóbria e empenhada em descrever um itinerário mortificante de fatura sócio-econômica do personagem de Osmar Afrísio (pobre, desempregado, exilado: Outro) é desviada/desregrada por estes intermezzi de canto e de teatro, que retiram a fórceps o seu percurso do regime infra-estrutural da Necessidade – o mundo do trabalho, é claro, mas também das “imagens servis” da narrativa clássica, em que todo elemento de composição do filme deve servir a um fim e adequar-se a uma totalidade: compositio.
E para onde vamos, então? para um regime de Gratuidade ou desperdício digressivo, regido pela vinheta, no qual as ações são freqüentemente extraviadas de seus telos e “acabam” parando a meio-caminho, fascinadas e fascinantes pela obtusa natureza de seu ser-aí; para onde o décor é um espaço-tempo casual, mas agora para instantes privilegiados de inervação aurática: como em Le pont du Nord (1981), Porto das Caixas (1962) e Out 1 (1971), o realismo de base lumièriano não é entrave, mas a plataforma indispensável para a fabulação, a mise en scène, o trabalho da mais-valia do significante. É deste entrechoque produtivo entre o olhar que registra e o olhar que maravilha que um filme nasce diante de nós, consignando ao mesmo tempo o seu processo de captura do real (plano sequência e locação, lição moderna), como também o processo fascinatório correlato de inscrição das construções subjetivistas que diferem ou amplificam este mesmo real, abrindo-o às escaramuças da rapsódia mas também à enlevação do canto e à brochada do Verfremdungseffekt paródico: um grande filme de registro de um grande filme inventado, com direito ao Paraguais e aos Brasis de escritura que nosso imaginário engendra, no exercício exuberante de seu gênio fabulístico; ao valor de troca do mundo do trabalho e da narrativa teleológica, substitui-se o valor de uso do mundo brincante e o valor de exposição do universo especular, onde cada plano, em sua frontalidade adstringente, vem nos revelar a geografia humana sob sua figuração fantasista- e que melhor testemunho sobre o significado espiritual do real senão o canto, o romanceiro, a paráfrase de um corpo humano que encarna a imemorial arte de contar histórias? Desde o zoom sobre o homem que reconta sua lida à janela até os melômanos e mitômanos repentistas, Noites Paraguaias só conhece uma forma de nos dar uma lição sobre a “geografia da fome” , verdadeiro nó górdio de ligação e fixação da alma latino-americana: contar e cantar.
A fascinação de que o filme de Raulino não pode abrir mão, sob o risco de soçobrar no naturalismo ou elevar-se desmesuradamente às alturas estéreis do simbólico, não é, como no classicismo, um efeito de um escamoteamento do aparato de produção das imagens, mas justamente o contrário: uma insistência resiliente da práxis de processos encantatórios, de cenas entre operísticas e rancheiras, de piadas saborosas e corpos seduzidos pelo enleio especular de sua interação com o Outro e sob o melo-dramatismo da música, tão presente no filme. Neste sentido, não temos o direito de invocar dois regimes de signos e de cena, mas sim de uma vista sintética; aqui, não se opõe o realismo analítico cujas origens, convencional e um tanto arbitrariamente, se atribuem ao cinema de Lumière, e para efeito de contraposição a féerie trascendental-imaginativa dos palcos de Méliès.
Podemos e devemos falar antes sobre Noites Paraguaias em um supra-realismo no sentido entendido pelos surrealistas e por Clément Rosset, filósofo trágico, quando em suas Fantasmagorias assevera que não é o imaginário que se opõe ao real, mas o ilusório. A démarche imagética do surrealismo, de que Noites Paraguaias pode ser considerado um vértice caboclo, com a verve e a glosa humorísticas típicas de nossa Gesta e nosso cancioneiro, aprofunda o realismo “documental “- seus collages, seus happenings – , ao anexar a este as instâncias do onírico e do imaginário, que são tão reais quanto nossos encontros gregários ou trabalhos consuetudinários: o homem, como todo o inanimado e alimária, é parte constitutiva do real. Por que então castrar o sonho e o delírio que nele jazem? Assim, podemos pensar aqui em um super-realismo, na medida em que agora temos acesso, nas fantasmagorias fantasistas encenadas de Raulino como em suas notações documentais, a um homem total, habitante de um mundo total: onírico e prático, plano sequência e frontalidade expositiva, especular e expectante.
Ao acordar de um sonho, um amigo fala para o outro que as coisas no sonho são mais transparentes, porque as vemos como são; claramente se reivindica para o sonho um papel de vetor realista de presentificação do real, um souci de réalisme que só atribuímos com facilidade às operações prático-inertes da vigília, mas que Noites Paraguaias, com um humanismo não despido de ironia trágica – os sonhos estão “tão aí” quanto um ato de fala ou o entoar de uma cançoneta, mas permanecerão mudos se o homem não achar uma linguagem que os traduza para o real-real – solicita para a interpelação onírica e delirante. O realismo, entendido classicamente como o refúgio da transparência clássica, teve suas fronteiras ampliadas desmesuradamente pelo cinema moderno: o “neo-realismo espiritual” dos filmes de Rossellini com a Bergman integra a seus domínios de investigação do real a interioridade paranóica ou assombrada (La paura, Stromboli) do kammerspiel existencial e da parábola mística: O real siderado pelo sujeito. Por que não também pensarmos o real sob uma Figura mais coalescente e flexível, à medida de suas realidades paralelas como eqüidistantes, a saber: divagado pelo sonho, ironizado pelo clin d’oeil chanchádico, a paráfrase e a paródia? A grandeza do filme de Raulino é produzir um reino de indiferença destas dimensões: entre um contracampo e outro, o sonho se infiltra, mas sem dizer-se sonho, ou só a posteriori : as galinhas fantasiadas, de que só percebemos a situação onírica no contracampo que nos mostra um personagem acordando; ou a féerie habita o mesmo espaço da paquera casual no bar, como se o ego e o inconsciente do plano esposassem agora uma mesma camada: quando a câmera se afasta e percebemos que a coisa agora se adequa à palavra, já que o humorista nos confidenciara que o bicho estava à solta, e no espaço circular entreaberto pela recuada da câmera vemos que no baile ao redor do casal todos os cavalheiros usam máscaras de bicho.
Tudo é possível, e aqui mesmo, neste hic et nunc de subúrbio, de favela, de centro de São Paulo: um negro toca piano (Chopin em off) na caixa de papelão de um prédio em construção – e por que não? Entre o possível e o atual, um plano de cinema urde uma trama sub-repticiamente solidária, pois a imagem, em sua virtualidade, é porosa tanto ao mostrado como ao sonhado (fora de campo, fora de quadro), e o homem total, “supra-real”, habita simultaneamente estes dois homens. Aliás, a allure proletária decidida do décor de Noites Paraguaias não aponta justamente, nesta plenitude atulhada de vacância que os subúrbios brasileiros nos oferecem, para um vazio ideal à confecção de um espaço de Jogo, de reinvenção fantasmática, de práxis imaginária? Onde um homem supra-real, holístico e onívoro de figuração, tem enfim espaço para desfilar suas personas como consumar seus delírios (tremens)?
“(…) a imaginação não se contenta em dar, na ausência de um objeto em particular, este objeto, ou seja: sua imagem; seu movimento é o de perseguir e tentar exprimir esta ausência em geral e não mais, na ausência de uma coisa, esta coisa, mas através desta coisa ausente a ausência que a constitui, o vazio como meio de toda forma imaginada” (Blanchot, La part du feu). A vacância do subúrbio da cidade encontra aqui a vacância do deserto, na leitura/visualização de Vidas Secas (1963); uma mesma experiência metafísica de “vacância” Revelada se articula aqui: são os baldios do subúrbio que melhor revelam as verdades do centro (sociais como afetivas: prenhes de alegorismo como de fantasma e fanfarra lumpens), assim como a noite transfigurada do sonho é o grande révelateur do Desejo latente da vigília.
O filme de Raulino é vertiginoso porque não exclui nada do que pode ser convocado para circunscrever o cinema como este espaço de vacância ilimitada mas centrífuga, onde todos os jogos são desejáveis, os itinerários e os desvios de rota como atalhos: sobretudo as margens devem falar – do inconsciente como da periferia – , pois o homem supra-real deste realismo sem fronteiras sabe corresponder a uma démarche política de resistência, onde imagens como homens in extremis e “em trânsito”são os mais adequados para demonstrar o significado da experiência do front, já que, como pensou Marx, os proletários são a classe com maior potencial revolucionário: aqueles que, por nada possuírem, a todas as máscaras estarão disponíveis, lugar de um valor de uso radical, part maudite da unívoca cena clássica.