Esta edição da Civic TV procura olhar para duas maneiras de encarar a matéria do real, no seu sentido de fábula e na sua fome de tragédia. Majid Majidi, cineasta iraniano contemporâneo, actualiza, dentro da linguagem da fábula, a visão microscópica e microcósmica do cinema de Vittorio De Sica e Cesare Zavattini. King Vidor, grande cineasta do classicismo de Hollywood, lançou as sementes para essa escola, mas depois promove uma (aparente) inflexão na sua obra, produzindo melodramas protagonizados por mulheres fortes que se deparam com as muralhas do amor e da sociedade. Os canais Cinemundo e TVCine2, respectivamente, deram-nos recentemente a oportunidade de encontrar pontes entre estes cinemas.
Foi uma das boas surpresas que tive das minhas viagens pela programação televisiva. Bacheha-Ye aseman (Crianças do Paraíso, 1997) é uma das mais belas “fábulas sociais” do cineasra iraniano Maji Majidi. Estamos no território mais encantador do realismo fílmico. Uma história enternecedora sobre, antes de tudo, um par de sapatos. Obedecendo à grande lição da escola de De Sica e Zavattini, do “neo-realismo com bicicleta”, como lhe chamava Carmello Bene, Crianças do Paraíso nasce da imagem precária de um objecto banal. Os sapatinhos cor-de-rosa da irmã de Roya, um menino dedicado aos estudos e cioso do bem-estar da sua família muito pobre. Por infortúnio, Roya perdeu os sapatinhos da irmã.
A única solução para que esta se apresente no primeiro dia de aulas é usar os ténis do irmão. Findas as aulas, a pequena corre num sprint para devolver os sapatos ao seu primeiro dono. As duas crianças são cúmplices deste esquema por uma razão simples: é implacável a pobreza que aflige o dia-a-dia dos seus pais. Os filhos querem ser o mais exemplares que lhes seja possível. A vida já é difícil o suficiente. O filme de Majidi é de uma ternura sem fim. Não aponta dedos, não glorifica heróis e demoniza vilões. Crianças do Paraíso é um retrato de sobrevivência, mas não anseia por uma qualquer oportunidade dramática para “passar mensagem” ou “chocar consciências”. Comove por ser sereno, mas não menos triste e humano que um realismo com bicicleta.
De cineasta de forte consciência política, Vidor transforma-se num artífice de melodramas mais pessoais, de gente (que aspira a ser) rica. Não perde, com isto, a sua mundividência.
Regressamos, então, a Zavattini e à sua visão microscópica sobre a realidade. No filme de Majidi essa realidade faz-se em movimentos secretos pela cidade, um lufa-lufa constante onde o vector comum são os ténis que aqui se partilham a bem da paz familiar – não “a paz”, mas “a paz possível”. Majidi espreita a parábola zavattiniana segundo a qual por trás de um episódio tão “insignificante” como “uma mulher que vai comprar uns sapatos” se podem deduzir as principais dimensões da sociedade, nomeadamente: económica (quanto custam os sapatos? Como é que a mulher arranjou o dinheiro para os comprar?), social (qual a relação entre o empregado da loja de sapatos e a mulher? O que os liga? Que interesses estão eles a defender, enquanto regateiam o preço?), psicológica (o que representam os sapatos para ela?) e política (o que é que se passa na Índia que possa ter alguma ligação com esta história?). Nada – inclusive os pequenos gestos e os objectos banais do dia-a-dia – escapa à esfera da política e da economia. Majidi sabe disso, mas ele é um humanista. Há dois fragmentos que saem do filme e não nos largam mais: os rostos destes irmãos e os seus pés em movimento incansável. Muito se corre hoje por causas nobres: contra o cancro, contra a fome, contra a desigualdade… Pois aqui muito se corre não para vencer a pobreza, mas para a ludibriar um pouco. Um adiamento da situação inevitável que nos diz que um par de sapatos não dura para sempre. Na realidade, dura pouco para tanto uso. Não se corre aqui contra a pobreza, corre-se na pobreza. Ela não dá descanso.
O que é comum aos movimentos é o efeito de desgaste. Os dias avançam, as corridas de um lado para o outro deixam marcas no calçado frágil, mas também produzem efeitos na vida das duas crianças. Os suspiros da rapariga por um novo par de sapatos vão-se tornando mais profundos. As complicações em que se envolve o rapaz por chegar sempre atrasado às aulas – ele é rápido na corrida, mas não consegue impedir os atrasos da irmã – começam a manchar a sua imagem de “aluno exemplar” na escola. A vida é madrasta, mas este é um retrato realista com laivos de fábula. Portanto, a sorte irá proteger os corações mais puros. Majidi acredita em milagres. Com efeito, era outro o calçado de De Sica e Zavattini, sobretudo antes de Miracolo a Milano (Milagre em Milão, 1951).
No TVCine 2 tem-se propiciado uma descoberta valiosa: alguns melodramas de King Vidor, cineasta que, na sua fase muda, muito inspirou os neo-realistas italianos. De Sica confessou ter-se inspirado em The Crowd (A Multidão, 1928) para realizar Ladri di biciclette (Ladrão de Bicicletas, 1948). Em 1951, Roberto Rossellini contava à revista britânica Sight & Sound como o filme de Vidor o havia marcado “verdadeiramente” e como este lhe mostrara “o caminho da verdade, do real”.
Vi alguns filmes que rodeiam os clássicos maiores de Vidor da sua fase sonora, como The Fountainhead (Vontade Indómita, 1949), que também passou no TVCine 2, e Duel in the Sun (Duelo ao Sol, 1946). The Wedding Night (Noite de Pecado, 1935) segue-se a Our Daily Bread (Pão Nosso de Cada Dia, 1934) e já é toda uma outra coisa. Vidor salta de um drama rural ambientado na Grande Depressão, acerca da criação de uma comuna por um casal de citadinos à procura de uma nova oportunidade na vida, para a história de um escritor que foge da cidade para encontrar inspiração na sua casa de campo. Do problema do pão para o complexo da página em branco, de cineasta de forte consciência política, atento à situação social dos mais desfavorecidos, Vidor transforma-se num artífice de melodramas mais pessoais, de gente (que aspira a ser) rica. Não perde, com isto, a sua mundividência.
Na casa de campo, um pouco como acontece em La collectionneuse (A Coleccionadora, 1967) de Éric Rohmer, o escritor encarnado por Gary Cooper não encontra o sossego pretendido. Na vizinhança vive uma família polaca que rapidamente entra pela sua vida adentro. A bela e ainda solteira Manya Novak (Anna Sten) entrará coração adentro, acendendo no escritor a chama perdida. A questão social, de classe, surge no momento em que a mulher de Cooper o visita e se apercebe que o novo e brilhante livro do marido, sobre uma paixão arrebatadora de um americano por uma mulher polaca, tem mais de autobiografia do que de criação ficcional. O mais bonito aqui é a força desta personagem, desta mulher que é preterida por outra, mais nova e de uma cultura “estranha”. Helen Vinson é fabulosa a dar corpo a esta mulher moderna que recebe a história (da história) da aventura do marido (no livro como na vida) com uma extraordinária nobreza. Ela faz-lhe ver que a paixão que sente dificilmente terá pernas para andar. O muro cultural é intransponível. Não o diz em desespero de causa, nem em jeito de chantagem emocional. Diz o que diz porque conhece o marido e o seu meio como ninguém. O filme é de 1935 mas revela uma maturidade rara que advém do facto de Vidor ser alguém que procura compreender a psicologia – a “personalidade”, para usar uma palavra ainda melhor – das suas personagens antes de as usar como parte de um xadrez dramático mais ou menos esquemático.
A força desta mulher prolonga-se nos melodramas seguintes que o TVCine 2 exibiu. Stella Dallas (O Pecado das Mães, 1937) e Beyond the Forest (A Filha de Satanás, 1949), dois filmes de mulheres ambiciosas onde a escada social é muito íngreme [podia acrescentar a esta equação Jennifer Jones e a sua composição em Ruby Gentry (A Fúria do Desejo, 1952), mas este filme não passou ou ainda não passou no canal TVCine]. Uma força da natureza, Barbara Stanwyck faz tudo para que a filha que tanto ama suba na vida. Também aqui Vidor revela o seu olhar humanista, na medida em que procura compreender as razões profundas de cada personagem. As nuances psicológicas são muitas. Por exemplo, Stanwyck começa por procurar a todo o custo ascender socialmente, mas um casamento conveniente com um industrial muito rico vai-lhe permitir aproximar do patamar social que ambicionava. O seu projecto de vida é interrompido com a entrada em cena da filha e a saída de cena, anos depois, por divórcio, do marido.
A ambição inicial de Stanwyck não é muito diferente da que move Bette Davis em Beyond the Forest. Esta agarra-se ao que tem e ao que não tem para enriquecer e ser “alguém na vida”. Davis leva o seu desejo de ascensão social a um muito destrutivo estado de loucura. Não tem a sorte de Stanwyck, que projecta na filha a possibilidade de verdadeiramente pertencer à classe alta. Se o desenvolvimento é profundamente diferente, entre as duas protagonistas nestes melodramas de Vidor, pode-se dizer que o desenlace as junta de novo. Davis assiste ao “casamento ideal” da filha, mas através da janela. Ela testemunha a partir da rua, anónima, só, ensopada pela água da chuva, a cerimónia que torna a filha no avatar perfeito dos seus sonhos. Já uma Davis enlouquecida é consumida de vez pela sua ambição. Parte para a floresta perto de casa num estado de absoluto desnorte. Nada haverá para lá da floresta senão o “The End”. A solidão final destas duas mulheres sinaliza a tragédia do social na obra de Vidor. A pobreza não dá descanso.