Peter Watkins, nascido em 1935, é um dos cineastas que, na língua inglesa, se poderá classificar como true original. Um dos pioneiros do docudrama, do estilhaçar das fronteiras entre ficção e documentário, tem feito da sua obra um festival de resistência à arbitrariedade e manipulação do Poder nas suas mais variadas formas, colocando, primeiramente, os mass media como o verdadeiro cão de fila da classe dominante. Agora que, cada vez mais, andamos soterrados em informação quotidiana nas suas mais diversas plataformas, a retrospectiva de Watkins no DocLisboa 2016 surge como oportunidade para estar a par de um trabalho que parece ser ainda mais relevante hoje do que há cinquenta anos. Vamos lá a ser manipulados pelo cinema do inglês.
La Commune (Paris, 1871) (2000)
O tempo despendido a (re)ver, gradual, sucessiva e cronologicamente, a obra de Peter Watkins, fez-nos chegar à óbvia conclusão de que nesta vida é impossível escapar a um mínimo de contradição, condição essa assumida pelo próprio Watkins neste monólogo de 2001 efectuado na Lituânia, país onde na altura vivia. Esta contradição, mais abaixo estabelecida, faz-nos sempre recordar aquela dúvida dos existencialistas morais do cinema: como realizar um filme de guerra sem cair na estetização do “horrível”? Ou outra: como retratar a pobreza sem sucumbir às armadilhas do sentimentalismo? No caso do cineasta inglês, trata-se tão só de evidenciar o choque que por vezes existe entre a sua crítica feroz ao cinema e televisão dos dias de hoje e a sua reiteração formal daquilo que precisamente lhe desgosta nos mass media, a saber, a “monoforma”, termo cunhado por Peter para descrever os planos de curtíssima duração e o bombardeio sonoro que fazem gala no audiovisual mainstream.
Essa é apenas uma das ambiguidades e paradoxos de uma obra que, por mais simplista que isto possa parecer, faz gala dos seus “temas”. Encaixotar tematicamente o trabalho de Peter, parece-nos, mais do que logisticamente favorável, uma necessidade, tal é a evidência de certas conceitos morais, sociais e económicos que percorreram toda a sua atividade ao longo de sessenta anos. Watkins é daqueles realizadores que, sem qualquer cinismo, quer mudar o mundo, e se for preciso tornar bem visíveis todos os fios do seu pensamento, melhor ainda. Esses “temas”, e seguindo a dimensão anárquica e desrespeitadora de hierarquias presente nos filmes de Watkins, serão apresentados de forma aleátoria, sem qualquer diferenciação de importância entre eles. E aqui vamos.
I. Militarismo
Mais do que uma aversão à violência per si, é ao militarismo de Estado que Watkins aponta as suas baterias. The Diary of an Unknown Soldier (1959), The Forgotten Faces (1961), Culloden (1964), The War Game (1965), Gladiatorerna (1969) ou Punishment Park (1971) são filmes onde os cordelinhos militares estabelecidos pelo Estado são castigados sem dó nem piedade, tecendo a guerra como palco entre os senhores do poder resguardados nos corredores da decisão e os soldados como previsível carne para canhão. Não há heróis nem catarse por estas bandas: medo e angústia é o que move os soldados em The Diary of an Unknow Soldier, Culloden ou Gladiatorerna, meros peões por entre as “brincadeiras” de ego dos “senhores”. Mas, como nem tudo é preto e branco, há em Peter a admiração da resistência ao poder através das armas, bem presente em Punishment Park ou em La Commune, embora o seu mais subtil exemplo esteja em The Forgotten Faces, recriação em ruas inglesas da sublevação em 1956 do povo húngaro contra o exército soviético. Mesmo assim, ainda estamos longe da “tomada do poder pelas armas” defendida pelo Dr. Garcia Pereira e do seu mentor, Dr. Arnaldo de Matos.
Paralelamente, a questão do uso de armas nucleares e dos seus possíveis efeitos estão presentes em The War Game, Aftenlandet (1977) e no seu inacreditavelmente longo Resan (1987) , catorze horas de duração, recorde que um dia destes Lav Diaz certamente baterá com uma das suas curtas-metragens. Uma vez mais, imerso no seu papel de denunciador, Peter faz-nos chegar as “maravilhas” de tão bonitas armas, brinquedos ao alcance de qualquer lunático nas oficinas do poder.
The Diary of an Unknown Soldier (1959)
II. Repressão de Estado
O Estado como sociedade policial é outra das garantias que temos na obra de Peter. Desvios à norma, questões pertinentes, dúvidas sobre as legitimidades governativas e qualquer indicio de espírito revolucionário serão implacavelmente punidos pela polícia. The War Game, Gladiatorerna e Aftenlandet lidam com a matéria, mas é em Punishment Park que tudo se torna mais claro, projectando uma ditatorial sociedade norte-americana, onde qualquer manifestação pública de desagrado para com o “estado do mundo” será sinónimo de prisão por longos anos ou, em contrapartida, um agonizante caminhar durante dias por um deserto a abarrotar de calor. Por mais que se “esforce” em compreender as razões dos representantes do poder, nunca duvidamos para quem vão as simpatias de Watkins. Contra-poder, já e agora.
Punishment Park (1971)
III. Feminismo
A emancipação da Mulher em todas as suas vertentes está bem vincada no sublime Edvard Munch (1974), em Aftenlandet ou, de forma ainda mais reiterada, em La Commune. No primeiro, assiste-se à hipocrisia da sociedade patriarcal norueguesa de finais do século XIX, onde os homens que vão para a cama com muitas mulheres são garanhões e as mulheres que vão para a cama com muitos homens são putas (felizmente, hoje já ninguém pensa assim). Watkins, num registo involuntariamente cómico, contrapõe as tiradas misóginas do Munch, do Strindberg e demais compinchas de copos com diálogos de mulheres a proclamarem a sua independência face às circunstâncias. A esta libertação sexual avançada trinta anos no tempo, sucede-se o desgrihoamento total da mulher em La Commune, onde se criam “Uniões de Mulheres” e se tenta cortar, pela educação, o papel da mulher como uma mera e excelente cozinheira, uma impecável doméstica, uma notável costureira, e uma fábrica de bebés (os intertítulos colocados por Watkins, informando sobre o que se passa (va) em 2000, provam que a situação se alterou entre os 2 e os 4%). Uma vez mais, há os contrapontos dos homens machões (“Mulheres no exército? Brincamos?”) e das mulheres a tentarem arranjar o seu espaço na revolução. Revolução, essa, que tinha outras prioridades em funcionamento.
Edvard Munch (1974)
IV. Identificação actor/personagem
O recurso a actores amadores (ou mesmo a não-actores) ou o trabalho comunitário, evidente em La Commune ou Fritankaren (1994), são tradições na obra de Peter Watkins, mas não há nada de mais fascinante e peculiar do que o seu sistema de casting, que teve o seu expoente em Punishment Park e em La Commune. No primeiro caso, escolheu jovens “rebeldes” e descontentes com a sociedade norte-americana de finais de sessenta e inícios de setenta para darem corpo a jovens descontentes com a sociedade norte-americana “de um futuro próximo”, e escolheu pessoas de índole conservadora para personificar as pessoas de índole conservadora que se apresentam no filme. O resultado foi tal que, segundo o próprio realizador, todo o clima de agressividade que se vislumbra em Punishment Park é não só genuíno como assustador. Mais do se preocupar com as minudências formais do filme, a maior inquietação de Watkins era o de tentar impedir que ambas as partes se envolvessem em pancadaria. Em La Commune, a maior parte, senão mesmo a totalidade, dos cerca de duzentos actores foi moldada segundo as próprias convicções e condições pessoais. Para os membros da comuna, temos reais desempregados, sans-papiers, mendigos, feministas e minorias racialmente discriminadas, e para o pessoal burguês, temos reais burgueses e pessoas para quem ver um pobre a pedir esmola é sinónimo de intervenção policial, quanto mais rápida melhor. A famigerada “identificação entre a vida e a arte” não é aqui uma mera expressão pronta a usar, mas sim a verdadeira essência destes dois trabalhos.
Privilege (Privilégio, 1967)
V. Aqui e Agora
O trilho “reportagem em acção” está presente em muitos dos trabalhos de Peter, normalmente com o próprio como jornalista invisível, em determinado tempo e espaço, a direccionar perguntas para pessoas enquadradas em grandes planos. Esta espontaneidade proporciona uma urgência de imediatismo que atinge contornos anacrónicos em Culloden ou em La Commune, onde tempos passados são invadidos por equipas audiovisuais originadas séculos depois. Em Culloden, a batalha entre escoceses e ingleses em meados do século XVIII é relatada, como se de um jogo de futebol se se tratasse, por um historiador inglês escondido atrás de uma pedra gigante, e em La Commune, Paris e Versalhes de 1871 têm ao seu dispor duas cadeias de televisão, uma “independente” ao serviço da comuna, e outra “institucional” ao serviço do governo refugiado em Versalhes. O artifício rebenta com a pindérica designação de “filme histórico”, transformando toda a acção em acontecimento presente. Já imaginamos, num futuro muito distante, o Correio da Manhã em sucessivas viagens no tempo para “dar a conhecer, em primeira mão e numa notícia Correio da Manhã”, todas as desgraças naturais e pouco naturais que assolaram este planeta ao longo dos tempos.
Culloden (1964)
VI. O Futuro
Se Watkins se aventurou por eventos históricos, relacionando-os com o presente, também o futuro não escapou às suas análises, projectando o devir como consequência possível da “época actual”. O que aí vem, para Watkins, é negro, catastrófico e uma carga de trabalhos. Ataques nucleares (The War Game), ditaduras (Privilege, Punishment Park), e conformismo político e social (Privilege, Gladiatorerna), são podridões recorrentes nas distopias futuristas de Peter. O “sistema” tomou conta de todos nós, e a substituição por outro “sistema” apenas faz jus à famosa citação de Garibaldi. Tudo uma desgraça, levando-nos, na nossa paranóia reinante, a pensar se o próprio Peter Watkins não será uma criação do Estado como forma de criar a ilusão de que há resistência (assim como o They Live! (1988) criou a ilusão de ser um “filme de esquerda”). No final de Gladiatorerna, um dos funcionários do “sistema”, ciente das iniquidades do mesmo mas ainda assim conformado, pergunta a um jovem (saído das catacumbas do Maio de 68) que tem como missão o destruir, “vais destruir isto para criar o quê?”. Fiquemos com as utopias.
Gladiatorerna (1969)
VII. Mass Media
A manipulação e a insídia dos mass media talvez seja a problemática pela qual Peter demonstra maiores “amores”. Tal como a polícia, Watkins encara a televisão e a imprensa como instrumentos ao serviço do poder dominante, criando a ilusão de “informação” onde apenas e só existe desvirtuamento das mentes do povo (Watkins, o anti-mabuses!). The War Game, Privilege, Gladiatorerna, Edvard Munch ou La Commune são filmes onde, de uma ou outra maneira, os media tecem teias para aprisionar o povão, submetendo-o aos caprichos e gostos uniformes dos “donos disto tudo”. Em Punishment Park, contudo, a informação é vista com bonomia, com o próprio Watkins a interpretar um jornalista revoltado com a situação ultrajante da brutalidade policial. Pena Watkins ter interrompido as suas lides cinematográficas/televisivas no ano 2000, precisamente quando uma coisa chamada Internet começou a entrar massivamente nas casas e mentes de cada um; seria bonito ver/ouvir as considerações sobre isto por parte do inglês.
The War Game (1965)
VIII. Monoforma
Existem filmes em Watkins que poderiam ser designados como “filmes-charneira”, por representarem, em si mesmos, o início e o fim de algo na sua filmografia, às vezes as duas coisas em simultâneo. Culloden introduziu para o mundo a noção de “reportagem em directo” num contexto histórico, The War Game foi banido comercialmente pela BBC (que o produziu) durante vinte anos, e Privilege foi a sua não só única tentativa de prosseguir por caminhos mais mainstream como a sua última obra em território inglês, pois a partir daí Suécia, Noruega, Dinamarca e França seriam os “países irmãos” da sua aventura cinematográfica. A cada trabalho, Watkins praticamente auto-marginalizou-se do “normal” circuito comercial, sabotando talvez as suas próprias aspirações no início de carreira (estatueta dourada para The War Game, em 1966). Filmes com uma duração considerada excessiva para uma “aceitável” distribuição, uma cada vez maior ferocidade na luta contra as próprias organizações audiovisuais, e uma progressiva indefinição em encapsular os seus trabalhos (ficção documental?, documental ficcionado?, nada disto?) levaram a que Peter seja talvez hoje um dos maiores realizadores vivos menos conhecidos da malta cinéfila, mesmo dos que andam a escavar no You Tube preciosidades realizadas no Botswana em 1926. Há falhas, há “desequilíbrios”, há a cedência (propositada? inevitável) à própria monoforma reinante, mas também há sempre uma imaginação e vontade criativa em destruir a norma, que não faz, apesar de tudo o que foi escrito anteriormente, Watkins como mero porta estandarte das bandeiras da esquerda. Basta ver os primeiros dez, quinze minutos de La Commune para se perceber tudo isto. Mas a vida é boa é na sua variedade, e não dizemos que não a uma double bill Peter Watkins/Michael Bay.
Peter Watkins na rodagem de La Commune (Paris, 1871)