Inicia-se no próximo dia 5 de Outubro (e estende-se até dia 9) a segunda edição do QueerPorto. Em jeito de antevisão destaco três filmes da programação do festival, mas não deixo, no entanto, de chamar a atenção para outros tantos: Tickled (2016) de David Farrier e Dylan Reeve é o documentário sobre cócegas que tem andado a dar que falar; Absolutely Fabulous: The Movie (2016) de Mandie Fletcher abriu o festival de Lisboa e encerra o festival do Porto (e escrevi algumas linhas sobre o filme aqui); A CrackUp at the Race Riots (2015) de Leo Gabin tem direito a uma sessão especial e é uma adaptação apropriacionista do romance homónimo de Harmony Korine e, por fim; destaco a sessão de curtas metragens que decorrerá na malavoadora.porto, intitulada Normcore Narratives, com especial destaque para o extraordinário American Reflexxx (2014).
La Vanité (2015) de Lionel Baier
A propósito do último filme de Lionel Baier que vi, Les grandes ondes (à l’ouest) (2013) filmado em Portugal e versando sobre a revolução de Abril, conclui que “era preferível que Baier se tivesse ficado simplesmente pelo disparatado (e caricatural, e musical e alegre).” Agora, de fronte de La Vanité sinto um pouco o mesmo: o seu cinema é tanto melhor quanto mais se deixa encantar por uma certa doçura absurda. Doçura essa que era capaz de transformar, no outro filme, o 25 de Abril numa revolução sexual ou, neste último, a eutanásia numa reflexão algo anedótica sobre a multiculturalidade. Aliás, o filme de Baier, que abre a segunda edição do QueerPorto, pode ser descrito como um início de uma piada formulaica: um suíço, uma espanhola e uma russo encontram-se num motel e… ou melhor, um arquitecto reformado, uma empregada das limpezas e um ginasta gay for pay encontram-se num motel e… ou ainda, um doente terminal, uma viúva com remorsos e um emigrante ilegal encontram-se num motel e… Cada uma destas fórmulas revela as preocupações sociais do filme de Baier e consequentemente as preocupações de um certo cinema suíço, sempre atento às flutuações migratórias que atravessam o país.
Na medida em que La Vanité é um filme rodado quase totalmente em estúdio, revelando um cuidado de cores e de composições que não estará longe de um Wes Anderson ou um Luc Moullet, as reverberações sociológicas em torno da imigração, da eutanásia, do aquecimento global e das estruturas familiares contemporâneas surgem a despropósito e o efeito é surpreendentemente agradável. O formalismo como técnica de distanciamento parece ser aqui capaz de um mais acertado comentário político — porque, já se sabe, a brincar é que se dizem as verdades. A comédia de enganos à volta de um homem que não se consegue matar até faz lembrar alguns dos filmes de Blake Edwards no seu desespero colorido. O problema está no terceiro acto do filme que o converte numa espécie de especial de Natal televisivo, com uma moral (amoral) pregada à força de uma banda sonora delicodoce e encontros angelico-metafóricos que tentam, literalmente, dourar a pílula da doença e da morte. Era preferível que Baier se tivesse ficado simplesmente pelo disparatado.
Nunca Vas A Estar Solo (2016) de Alex Anwandter
Vencedor do prémio do júri dos Teddy na última Berlinale, Nunca Vas a Estar Solo é o típico filme desta secção LGBT do festival alemão: história de coming of age dum adolescente pouco armariado num bairro suburbano onde a ausência familiar se articula com o bullying. Talvez o mais interessante do filme seja a forma como Alex Anwandter é capaz de contornar o esquematismo que a sua trama inicialmente aparenta e, a menos de um terço da duração do filme, inverte o protagonismo, trazendo para a frente o pai do rapaz. Essa habilidade narrativa é desconcertante e consegue refrescar os lugares comuns da história. A juntar a isso, a forma como o filme metaforiza algumas porções narrativas através de soluções de contexto — como seja o facto de o pai trabalhar numa loja de manequins onde todas as peças são intermutáveis mas onde a fibra de vidro nunca chega a ganhar vida — revela uma atenção da parte do realizador no que diz respeito à construção de personagens através de recursos diegéticos. O problema está no facto de Sergio Hernández [que já passou pelas nossas salas em filmes como Glória (2012) e No (2012)] aparecer num insuportável over acting que ridiculariza os intentos do realizador.
Se Anwandter parece esquivar-se de alguns dos clichés da sua sinopse, cai inevitavelmente num tom melodramático-de-puxa-lágrima que já está mais perto da trama tele-novelesca (o coma, o confronto com fuck budy, a discussão com a vizinha, os olhos tresloucados do pai, o despedimento, etc.). Quando o filme se delicia com os tangos chilenos e filma apaixonadamente o adolescente em drag encontram-se momentos de especial acerto emocional e cinematográfico — que acabam, no entanto, por se tornar repetitivos, já que a cada dez minutos há espaço para um intervalo musical. Atrevo-me a pedir, deste canto minúsculo da web, ao realizador e ao caro leitor que repare na nova campanha da Moche, onde, felizmente, a orientação sexual ou a fluidez de género já não são motivo para um drama social de faca e alguidar — ainda que, talvez, essa aceitação se deva a um egoísmo selfie da contemporaneidade, promovido pelos smartphones, suas criaturas digitais e correspondentes serviços de telecomunicações.
Kiki (2016) de Sara Jordenö
Sem nunca ser referido directamente, Paris Is Burning (1990) sobrevoa o filme de Sara Jordenö quase do início ao fim. O título [que poderia estar incluido no ciclo dedicado ao New Queer Cinema que o festival programou nesta edição e que exibirá títulos fundamentais como Go Fish (1994) de Rose Troche, Mala Noche (1985) de Gus Van Sant, The Living End (1992) de Gregg Araki ou Poison (1991) de Todd Haynes] que retratava a comunidade drag da Nova Iorque dos anos 1980 encontra evidente paralelo em Kiki sobre os kiki balls que dinamizam hoje em dia as (e são dinamizados pelas) comunidades LGBT de bairros pobres de Nova Iorque, como o Harlem — comunidades essencialmente afro-americanas. Esse era já o gancho do filme de Livingston, mas surge agora actualizado pelas tensões raciais geradas pelos conflitos com a polícia, numa América extremada depois da eleição do primeiro presidente negro (veja-se a força dos movimento Black lives matter).
O racismo, as várias formas de fobia sexual e as questões trans formam a base dos testemunhos que Jordenö recolheu ao longo de oito anos em Nova Iorque. A dimensão do projecto documental consegue, por exemplo, acompanhar os processos de transição de duas mulheres trans e do confronto destas com as suas próprias imagens e o intervalo que as separa. Nesses momentos percebe-se a dedicação da realizadora ao movimento e à cultura kiki, e além da sinceridade, Nova Iorque parece nunca ter sido tão luminosa (uma luz sueca, talvez). Lamento apenas a limitação formal que se reduz a uma alternância entre entrevistas em talkings head e outras em voice over. Ainda assim é tocante a forma como a dança pode ter um poder tão extraordinariamente libertador, a dança como acto de comunicação e de expressão individual (em particular, da expressão da sexualidade). É essa alegria que percorre as competições de vouguing que faz esquecer os jovens que são expulsos de casa, a prostituição como único recurso de sobrevivência, a pobreza e a discriminação: quem dança seus males espanta.