Uma das histórias que Quentin Tarantino gosta de contar é sobre a rivalidade entre Martin Scorsese e Brian de Palma no final da década de 70. Cada um tentava superar o último filme do outro, para deixar a sua marca como o melhor realizador americano da sua geração. Brian De Palma estava a trabalhar em Blow Out (Blow Out – Explosão, 1981), e sentia-se confiante, achava que tinha encontrado a sua obra-prima, um filme que definiria o seu legado. Conta Tarantino que De Palma decide então espreitar o último trabalho de Scorsese – estamos a falar de Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980). Assim que as luzes no cinema se apagam e começa a sequência de créditos, com a imaculada fotografia a preto e branco, a música clássica e Robert De Niro a dançar no ringue em câmara lenta encostado a um canto, De Palma percebeu imediatamente o que se iria seguir, e lançou um sonoro “Fuck… there’s always fucking Scorsese”.
De Palma tinha razões para estar preocupado: não só a sequência de créditos é das mais memoráveis de sempre, particularmente pelo tom com que apresenta a sua personagem principal como uma figura mítica mas igualmente solitária, como o que se seguiria ficaria na história. Robert De Niro é Jake La Motta, um furioso pugilista nos anos 1940 em ascensão e em permanente luta contra o mundo à sua volta. A interpretação de De Niro é difícil de classificar por ser tão fora do normal, tão assustadoramente excepcional: não é só a entrega e transformação física, mas também a emocional, que permite uma amplitude de emoções, quer nos momentos exacerbados e irados do pugilista, quer nos momentos de silêncios engolidos quando tem que ouvir os outros, quer seja no ringue ou na rua, quer seja na opacidade ou na claridade da personagem.
Parte do brilhantismo desta performance é responsabilidade de outros dois actores, Joe Pesci e Cathy Moriarty, que interpretam as duas únicas personagens que conseguem aproximar-se de Jake. Joe Pesci é Joey, o irmão-treinador-manager, um admirador-imitador do irmão, mas que suporta o peso do abuso emocional dessa proximidade, algo que Pesci consegue transmitir de forma admirável. É difícil de acreditar mas este é o primeiro papel de Cathy Moriarty, que começa o filme como uma beldade inatingível, que Jake irá perseguir e mais tarde casar – algures entre a submissão e o desafiador, Moriarty mostra-nos como enfrentar Jake.
Esta é a história de oito combates de boxe, e do que acontece entre eles. Na verdade, Raging Bull é uma série de combates, físicos e verbais: Jake contra outros pugilistas, Jake contra o irmão, Jake contra a mulher, Jake contra a máfia, Jake contra a opinião pública, Jake contra a televisão. Até escolher o almoço é uma luta verbal, até quando as coisas correm bem Jake está sempre a tentar que alguém lute com ele. Resumindo: Jake contra o mundo, Jake contra si mesmo. A primeira cena funciona como uma vinheta indicativa do resto do filme, com toda a turbulência emocional encapsulada. Nesse primeiro combate, Jake está em apuros, apesar de desferir os golpes mais duros, e acaba por perder aos pontos. Revoltado, recusa-se a abandonar o ringue, sente-se injustiçado, a sua fúria alastra-se ao público, com cadeiras e pessoas a voarem à medida que se instala o caos na arena e a polícia é obrigada a intervir. Ao longe, alguém toca o hino americano ao piano para tentar acalmar as coisas, mas é um esforço ignorado pela multidão, num quadro cénico adequado ao filme que se segue.
Scorsese mostra o seu domínio técnico e usa os truques todos: câmara lenta, freeze frames, edição frenética, lâmpadas de flash a acompanhar cada golpe, planos do ponto de vista dos pugilistas, planos aproximados dos cortes na cara, o som dos ossos partidos e o exagero do sangue a jorrar das feridas e a atingir os espectadores e a própria câmara.
A forma como Scorsese filma as cenas de boxe é delirante, vertiginosa. Scorsese mostra o seu domínio técnico e usa os truques todos: câmara lenta, freeze frames, edição frenética, lâmpadas de flash a acompanhar cada golpe, planos do ponto de vista dos pugilistas, planos aproximados dos cortes na cara, o som dos ossos partidos e o exagero do sangue a jorrar das feridas e a atingir os espectadores e a própria câmara. Se Scorsese amplia a violência dos combates, se torna essa violência num espetáculo, também parece dizer que essa violência é procurada pela audiência, validada pela sociedade como entretenimento, como um escape admirável. A energia e dinâmica das cenas violentas no ringue são transferidas por Scorsese para as cenas do quotidiano familiar dos protagonistas, sempre em polvorosa, filmadas como se fossem um combate, uma troca de murros. Numa das cenas inicias, Jake incita Joey a bater-lhe na cara, para mostrar que tinha razão num argumento que defendia, porque as palavras não lhe chegam. Scorsese expõe assim a fragilidade da personagem, sempre à procura de validação, mas que se esconde debaixo de um manto impenetrável de brutalidade.
Essa fragilidade de Jake, ou na verdade, insegurança, é o centro do filme. É uma insegurança tremenda, que é além de uma insegurança social, uma insegurança sexual, como se a sua sexualidade fosse ameaçada cada vez que alguém está perto da sua mulher. Incrivelmente ciumento, possessivo e paranóico, qualquer detalhe é suficiente para despertar uma ira desconcertada. A escolha da fotografia a preto e branco para o filme, apesar de incutir imediatamente um ar intemporal à história, acaba por sublinhar o facto de este ser um mundo parado no tempo, sobre a revolta de um homem contra a sociedade em mudança à sua volta. Jake é um homem ultrapassado e pressente-o: os epítetos racistas, a transformação dos valores culturais, a erosão do domínio do homem, a violência com que tenta afirmar a sua masculinidade, são elementos de um retrato psicológico problemático. Debaixo de um complexo de inferioridade, apesar do seu domínio no ringue, há um sentimento de não pertencer à sociedade, de não ser entendido, de não ser valorizado como homem – vive num mundo fechado, recusa socializar com alguém que não seja da sua família, sente-se o seu desconforto. Jake é um homem encurralado: no ringue, na prisão, no quarto de hotel, na cozinha, em casa, parece estar sempre encostado às cordas.
Scorsese filma como mais ninguém a dinâmica de grupo masculina, as interacções entre homens a tentarem afirmarem-se perante outros. É um tema recorrente nos seus filmes: Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990), Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973), The Departed (Entre Inimigos, 2006), Gangs of New York (Gangs de Nova Iorque, 2002), The Wolf of Wall Street (O Lobo de Wall Street, 2013). Há uma cena em particular neste filme que se destaca neste aspecto: quando Jake, a mulher e o irmão estão a jantar num restaurante popular, surge um grupo de homens poderosos, mas que sempre menosprezaram Jake, que apenas procuram ganhar dinheiro com apostas nos seus combates. Quando a mulher e o irmão se deslocam à mesa destes para os cumprimentarem, Jake fica no seu lugar, orgulhoso. Mas quando acaba por deslocar-se à tal mesa para falar de um combate próximo, a tensão é visível, e a forma como Jake recorre à homofobia como forma de assertar o domínio sexual num grupo de homens diz muito – Jake fala do próximo adversário (“I don’t know if I should fight him or fuck him”) mas fala também para qualquer homem que pense em aproximar-se da sua mulher. Acima de tudo, para Jake trata-se permanentemente de afirmar o seu espaço perante os outros. Depois de um combate perdido para Sugar Ray Robinson em que fica reduzido a um saco de pancada, Jake desafia Sugar Ray: “you still couldn’t knock me out, I’m still standing”. Depois de uma discussão violenta com a mulher e o irmão, regressa a casa para se sentar em frente à televisão avariada: aquele é o seu espaço, ele continua de pé.
Voltemos ao princípio: a primeira cena é na verdade um breve prólogo, onde vemos Jake mais velho em 1964, com o rosto deformado pelos anos de combates, a ensaiar sozinho algumas frases. Apesar de pouco surpreendente, já que o filme anuncia desde logo este caminho, quando voltamos a este cena mais tarde, o declínio de Jake e a sua rendição surgem com choque, em contraste com a sua recusa anterior em entregar-se: é finalmente um homem derrotado. As comparações com outro filme sobre um promissor lutador de boxe caído em desgraça – On The Waterfront (Há Lodo no Cais, 1954) de Elia Kazan – são evidentes, até pela semelhança física de de Niro com Marlon Brando. Mas Scorsese, o mais cinéfilo dos cineastas americanos, faz uma alusão directa a esse filme, ao colocar Jake a citar um diálogo do filme: “I coulda been a contender. I coulda been somebody, instead of a bum, which is what I am, let’s face it”. Para Jake, é como se estivesse a reviver o seu passado, como se encontrasse assim uma justificação para o seu destino nessa história. Para Scorsese, é um golpe final da sua parte: este homem a falar sozinho, a olhar para um fantasma no espelho, parece finalmente humano – se antes eramos cegos, agora conseguimos ver.
Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980) de Martin Scorsese será exibido sábado dia 22 pelo Cineclube do Porto, às 18h na Casa das Artes no Porto.