É a minha história preferida das muitas, e são tantas, que conheço contadas por João Bénard da Costa. Em 17 de Novembro de 1973, a Fundação Calouste Gulbenkian inaugurava o ciclo Rossellini com a projecção de Roma Città Aperta (Roma Cidade Aberta, 1945) no Grande Auditório. Estavam presentes vários convidados, membros do conselho de administração da Fundação, do Governo, o próprio realizador, o mítico diretor da Cinemateca Francesa, Henri Langlois, que proporcionara as cópias dos filmes de Rossellini, e João Bénard da Costa, que organizava o ciclo e apresentava a sessão.
Imagino que para muitos cinéfilos, de todas as idades, seja impossível pensar na relação entre a Gulbenkian e o cinema sem pensar nesta sessão e nos muitos ciclos que João Bénard da Costa ali organizou a partir de 1972 e em colaboração com a Cinemateca após dela ter sido nomeado subdiretor em 1980. A Fundação criara uma Secção de Cinema em 1968, logo dirigida por Bénard da Costa, para ajudar a formar os públicos que faltavam ao novo cinema português que também apoiava, fosse através do Centro Português de Cinema (1968) ou de subsídios diretos a vários realizadores. [Um ano antes, o Grande Auditório assistira já à estreia de A Pousada das Chagas (Paulo Rocha, 1971), curta-metragem sobre o Museu de Óbidos, patrocinado pela Fundação, e O Passado e o Presente (Manoel de Oliveira, 1971), primeiro filme do CPC.]
“lá em cima, ao lado da cabine, um camarote mais ou menos improvisado, que há doze anos me servia de poiso e ai se as paredes falassem…”
Sem Cinemateca (que só teria sala própria e programação diária a partir de 1981), pouca televisão, raras ou nenhumas reposições comerciais e sessões de cineclubes, os ciclos de cinema da Gulbenkian foram a única maneira que muitos tiveram de contactar com a história do cinema mundial sobre o qual, naquele tempo, muito se lia, mas que poucos tinham oportunidade de ver. Ao mesmo tempo, os ciclos alargaram definitivamente ao cinema o mesmo estatuto que as restantes artes apoiadas pela Fundação e que agora, como a música ou o bailado, tinham honras de Grande Auditório. A mensagem de que o cinema era uma Arte não caiu em saco roto e os ciclos foram acontecimentos culturais marcantes da vida cultural lisboeta dos anos 1970 e 1980. Depois de Rossellini, e contando sempre com a generosa cumplicidade de Henri Langlois, seguiram-se os três ciclos de cinema americano (dos anos 1930, 1940 e 1950), Munk/Wajda (78), Bresson (78), cinema mudo sueco (78), cinema brasileiro (78), húngaro (79), francês (79), os ciclos Truffaut, Ozu (80) e Pasolini (85), sem esquecer o ciclo Actor/Actor (87). E, em colaboração com a Cinemateca, Hitchcock (82), Max Ophüls e Sternberg (84), Coppola em contexto (87), cinema soviético (87), Buñuel (82), Lang e Ford (83-4), ficção científica (84), e o musical (85-6). Foram mais de 30 ciclos, alguns com três sessões diárias e/ou estendidas ao Auditório 2, um total de mais de 800 sessões de cinema, acompanhadas por catálogos ilustrados cada vez mais volumosos com o clímax das 1800 páginas em 4 volumes do ciclo sobre o musical.
Em 2006-07, por ocasião do cinquentenário da Fundação, esses ciclos foram comemorados com a projecção de 50 filmes escolhidos por João Bénard da Costa e a edição de um livro, “Como o cinema era belo”, origem das citações deste texto[1]. Mais recentemente, o cinema voltou ao Grande Auditório, em cópias de 35mm, com o ciclo “P’ra Rir”, programado por João Mário Grilo entre Dezembro de 2014 e Abril de 2015. Estes ciclos já aconteceram depois da grande renovação e restauro do Grande Auditório, durante a segunda metade de 2013 (a sala reabriu em Fevereiro de 2014). A intervenção teve o objectivo de combater o desgaste de materiais provocado pela acção do tempo e de fazer uma grande actualização tecnológica dos sistemas de palco, embora mantendo o aspecto original do auditório e, tão importante ou mais, respeitando os três grandes princípios que orientaram o desenho da sala em 1969: a eficiência acústica (que determinou, entre muitas outras coisas, a configuração e posição da canópia, a escolha de materiais ou a dimensão do pé-direito); a continuidade entre o palco e a plateia e a relação entre o interior e o exterior do edifício (com a grande parede de vidro no final do palco, com vista para o jardim e lago); e a versatilidade das utilizações da sala (além dos concertos sinfónicos, capaz de acolher bailado, teatro, congressos e cinema: a grande excepção é a ópera)[2]. É esta versatilidade que levou à opção por uma teia invertida com 14m de profundida que ocupa todo o sub-palco e onde se encontra uma série de plataformas elevatórias. É de uma delas que se ergue o ecrã de cinema e as respectivas máscaras e sistema de som. A configuração de “sala de cinema” fica completa com o revestimento da canópia a veludo, operação feita manualmente antes de cada projecção. Nesses dias, a lotação de 1228 lugares faz do Grande Auditório a maior sala de cinema de Lisboa.
No dia da projecção de Roma Cidade Aberta, em 1973, o balcão e a plateia estavam esgotados e havia pessoas sentadas nos corredores. O filme estava proibido pela censura, mas um acordo de última hora autorizou a passagem de uma cópia não legendada. Na apresentação, Rossellini inflamou o Grande Auditório ao dizer, primeiro, que dar conselhos era sempre estúpido e, depois, que discutiria o filme com o público após a projecção, o que era proibido por lei durante a ditadura. Apesar de ter “lá em cima, ao lado da cabine, um camarote mais ou menos improvisado, que há doze anos [lhe] servia de poiso e ai se as paredes falassem…”, naquela sessão os nervos eram tantos que João Bénard da Costa passou o tempo inteiro em idas e vindas constantes entre a cabine e a sala.
Hoje, os nossos guias da visita ao Grande Auditório foram Clemente Cuba, 57 anos, coordenador das equipas de iluminação de cena e audiovisuais, e José Gouveia, 44 anos, da equipa de audiovisuais. A entrada faz-se pelo piso do balcão que dá acesso a um longo corredor com revestimento de pastilhas creme. Três portas anti-fogo castanhas assinalam as régies de iluminação, vídeo e a cabine de projeção propriamente dita. Clemente Cuba explica como dois projectores Philips de 35mm equipavam originalmente a cabine. Depois da remodelação de 2014, foram substituídos por dois Victoria 5 (provenientes dos cinemas Alvaláxia) e um projector digital 4K Sony SRX-320S. Os Victoria estão montados sobre plataformas deslizantes que libertam espaço na cabine quando não estão a ser utilizados. São operados por projeccionistas externos, normalmente da Cinemateca. O Sony, por seu lado, é habitualmente operado por José Gouveia a partir da régie de vídeo, mesmo ao lado, onde se filmam os espectáculos e se montam várias produções audiovisuais próprias. No final do corredor há uma pequena sala de montagem de cópias de 35mm com uma enroladeira recente e um belíssimo armário de bobines, em ferro, muito anterior à renovação. Onde seria o tal “camarote” de Bénard da Costa?
Clemente Cuba acompanha-nos em seguida até ao sub-palco. Tentamos ver o ecrã de cinema, escondido entre os vários elevadores, mas o que aqui mais chama a atenção é o conjunto de plataformas e o novo sistema de elevação. Percorremos depois o corredor técnico que liga os vários edifícios da Fundação, avenida principal desta cidade subterrânea com as suas salas de ensaios, depósitos de instrumentos da orquestra (com as etiquetas que lembram todas as voltas ao mundo que já deram), armazéns de equipamento de iluminação e até uma lavandaria.
Actualmente, para além dos ciclos de cinema, onde se projectam várias cópias em pelicula, o ecrã será usado este ano para o ciclo de transmissões em direto de óperas do Met de Nova Iorque. A transmissão de espectáculos e eventos desportivos era habitual nos primeiros anos da projecção digital, quando ainda havia poucos filmes naquele formato para mostrar e além disso se apostava no argumento da diversificação dos públicos para encorajar o investimento nos novos equipamentos. Na Gulbenkian, a projecção digital é usada para expandir a oferta da temporada com óperas, o único tipo de espectáculo que o Grande Auditório não está preparado para acolher fisicamente.
Regressemos a Novembro de 1973. Bénard da Costa corria entre a cabine e a sala. Langlois e Rossellini dormitavam tranquilamente nos sofás do foyer. Quando terminou a projecção, recorda Bénard da Costa, seguiu-se “a maior ovação que me recordo em sessões de cinema.” Passados 10 minutos, Rossellini ainda não conseguira agradecer e entre os aplausos e “bravo” começaram a escutar-se gritos de “Abaixo o fascismo!” e “Liberdade, liberdade!”. “Por fim, não houve mesmo debate nenhum porque a emoção já proibia raciocínios. Coube-me a ingrata tarefa de levar Rossellini dali para fora, antes que os ânimos aquecessem a ponto de pôr o resto do ciclo em causa. À saída, as pessoas abraçavam-se e muitas choravam. Quem não esteve lá nunca imaginará”. Durante a ceia, enquanto Bénard explicava a Rossellini o que tinha acontecido, Langlois declarava, solene, que “dentro de bem pouco tempo muitas coisas se iriam passar por aqui”. E dali por cinco meses, passaram mesmo.
Fotografias: Mariana Castro
Agradecimentos: Otelo Lapa, Daniela Oliveira, Clemente Cuba, José Gouveia
[1] João Bénard da Costa, Como o cinema era belo, Lisboa, FCG, 2006.
[2] Ana Tostões, Fundação Calouste Gulbenkian: Restauro e renovação do Grande Auditório, Lisboa, FCG, 2015.