É domingo e já não é verão, as nuvens empilham-se no céu tornando mais escassos os raios de sol que ainda agora cozinhavam a pele em lume brando. No meu ecrã saltitam imagens da Berlim de 1930, sorridente, soalheira, nas suas ruas um bailado de quatro milhões de habitantes. Imagens que se começariam a desintegrar uma década depois.
Menschen am Sonntag (Homens ao Domingo, 1929) de Robert Siodmak e Edgar G. Ulmer podia ser recordado apenas pela sua equipa estelar, o que faria desta obra uma espécie de concerto único de um supergrupo reunido para a ocasião, se não fosse também uma extraordinária sinfonia de Weimar. Foi o primeiro filme (colectivo) de cineastas que mais tarde fizeram carreira em Hollywood, tornando-se nalgumas das vozes mais importantes da idade de ouro do cinema americano, essa preciosidade semi-roubada à Europa.
Realizado por Robert Siodmak e Edgar G. Ulmer, com mão de Billy Wilder e Curt Siodmak no argumento e com Fred Zinnemann como assistente de câmara de Eugen Schüfftan (o único avozinho da equipa, que tinha na altura 36 anos quando todos os outros tinham vinte e poucos), Menschen am Sonntag aparece como semente do neo-realismo e da nouvelle vague. Rompendo completamente com a tradição dos estúdios, a narrativa ficcional é construída em diálogo com as imagens documentais. A forma como foi filmado, com parco orçamento e poucos meios de produção, também contribui para a singularidade do filme. A qualidade da cópia não me deixa ver muito bem, mas aposto o mindinho esquerdo em como um dos deliciosos travellings de Schüfftan foi feito do autocarro onde iam, meio desfocado, a imagem possível daquele momento. O mestre dos efeitos especiais de Metropolis (1927) de Fritz Lang tem uma divertidíssima visão da cidade e das pessoas, por vezes cáustica, por vezes afectuosa. Estranhamente, nenhum dos criadores desta aventura quotidiana veio a demonstrar particular interesse no documentário ou numa visão mais realista do cinema, tendo enveredado por caminhos quase opostos, que passaram pelos estúdios de Hollywood e foram dar ao noir, à screwball, ou à produção de série B. Menschen am Sonntag fica para a história como o ovni realista da carreira de todos eles.
O filme começa com um aviso (“um filme sem actores”) seguido da introdução das personagens – os seus nomes, as suas profissões. Um curioso plano dá início à ficção: Wolfgang aborda Christl na rua, enquanto ela espera por alguém que nunca chega. Combinam um encontro para o dia seguinte (domingo). Nós assistimos de longe à cena, através de uma teleobjectiva, momento ao qual todos os passantes parecem completamente alheios, sublinhando o que ficara também estabelecido nos cartões iniciais: a narrativa tem base (e imagem) real. Estamos, portanto, perante um dos primeiros híbridos.
Christl é figurante e a sua melhor amiga, Brigitte, trabalha numa loja de discos. Wolfgang é um homem dos sete ofícios e pinga-amor profissional. Erwin é taxista e a sua namorada, Annie, é modelo. Na única cena do filme em interior – no apartamento de Erwin e Annie – encontramos um último adeus ao expressionismo alemão (já agora, um último adeus ao cinema mudo) na personagem feminina que está sempre a dormir, num imenso contraste com o naturalismo das cenas de exterior. A tensão dramática no interior do pequeno apartamento de Erwin e Annie, que se vai tornando cada vez mais claustrofóbico, palpita na intermitência de um plano de uma torneira a pingar, uma e outra vez, cada vez mais próxima, como se de uma assassina se tratasse (talvez esteja aqui o único traço noir do filme). As gotas que caem contam o tempo que falta para a relação dos dois terminar, o tempo que falta até domingo chegar, na minha cabeça o tempo premonitório que passará a correr até à ascensão de Hitler. Uma rápida sucessão de planos compõe toda a cena, cortes que intensificam também o compasso do tempo que se esgota.
Em modo presto, as imagens do fim-de-semana dos berlinenses vão alternando com as da aventura estival. Christl leva a sua melhor amiga, Brigitte, e Wolfgang leva o seu melhor amigo, Erwin (que não consegue arrastar a bela adormecida da namorada). Passámos então dos excessos expressionistas do interior para o realismo exterior que procura (e consegue) fundir o coreografar da cidade com a narrativa. Não voltaremos a abandonar a história do passeio dos quatro até ao fecho do filme senão para pequenas incursões ao interior do apartamento (no qual Annie continua a dormir).
Os quatro rumam à beira-lago, a expedição domingueira da sua preferência. Wolfgang prontamente decide que Brigitte é mais bonita que Christl e age sem pudor nas investidas sobre a virginal melhor amiga, que acaba por ceder ao seu charme sem colocar grandes obstáculos, numa cena abertamente sexual. Os dois fazem amor enquanto a câmara faz uma panorâmica pelos arredores, fechando o plano sobre uma quantidade enorme de lixo, para depois regressar ao cume das árvores e ao céu em êxtase, até voltar a pousar nos dois jovens que acordam do torpor e compõem a roupa. Na Berlim domingueira de 1930, antes de Siodmak, Wilder, Ulmer e Zinnemann terem sido manietados pelo Código Hays, podemos deliciar-nos com as múltiplas cenas carregadas de sexualidade: Annie a dormir meio despida, as duas amigas a vestirem o fato-de-banho atrás de um arbusto ao pé dos rapazes, as diversas bofetadas nos rabos (femininos, masculinos), uma alça que não fica no ombro, um sugestivo manequim sem roupa na montra de uma loja, as lânguidas poses de Brigitte, já nada virginal. Os futuros censores deliciar-se-iam secretamente com um sem-fim de referências sexuais (talvez condicionadas apenas por alguma self-consciousness dos não-actores).
Mesmo que se contem várias versões desta história (algumas entrevistas publicadas dão a entender que cada um dos cineastas reivindica mais ou menos autoria do filme que os outros), talvez possamos identificar os traços do humor de Billy Wilder no argumento como a mais óbvia referência para ecos futuros. A sua alma de repórter terá sido o motor de busca das quatro personagens que correspondiam à idealização dos berlinenses-modelo do quotidiano. Virá também da cabeça de Wilder, certamente, o momento em que Annie e Erwin, zangados um com o outro, rasgam as fotografias dos actores (ele as dela, ela as dele, Garbo lá no meio, a sua beleza descartada pelas mãos do ciúme) violentamente, deixando já clara a sua obsessão pelas estrelas. A transgressão sexual – as diversas amostras de pele, as inúmeras palmadinhas nos rabos e a intensidade da cena de sexo entre Wolfgang e Brigitte, quase não-consensual ao início evoluindo rapidamente para um apaixonado instante – é recorrente nas crónicas de Wilder. E também a ambivalência moral: Wolfgang acabará por manifestar interesse noutras duas raparigas, mesmo na cara de Brigitte, depois de terem feito amor. Pode ser um conto de verão, pode ser uma comédia sexual, este Menschen am Sonntag, mas será certamente uma crónica de costumes idealizada por Wilder à qual se acrescentou o humor da câmara de Schüfftan e Zinnemann. Não será porventura tão fácil encontrar aqui traços do cinema noir de Ulmer e Robert Siodmak, à excepção do excelente plano da torneira (assassina) que anuncia um negro fim.
Terminam o passeio e regressam à cidade e às suas vidas (Erwin ao apartamento onde Annie ainda dorme) com a promessa, que provavelmente não será mantida, de novo encontro no próximo domingo. Só falta mesmo a Brigitte (ou a Christl, ou a Wolfgang) o carisma de Ray Salyer (o não-actor que protagoniza On The Bowery , filme realizado por Lionel Rogosin em 1956) para transformar esta verdadeira jóia numa obra-prima. Desta feita, são vários os corações que sucumbem ao dia passado à beira-lago. O de Christl, que se arrepende de ter levado a melhor amiga para o que seria o seu domingo com Wolfgang; o de Brigitte, quando descobre que Wolfgang não passa de um douchebag conquistador; os nossos, ao verem uma Berlim que se perdeu na história do mal que veio ao mundo.