All the good movies have been made.
Sammy Michaels
No seu segundo filme, Targets (1968), Peter Bogdanovich veste a pele de Sammy Michaels, promissor cineasta que tenta convencer Byron Orlock (Boris Karloff) a reconsiderar a decisão de se aposentar da carreira de actor que o projectou como figura mítica do cinema de terror. Como veremos ao longo do filme, a tarefa não é cumprida pois Byron Orlock confirma o que o levara a tomar a decisão: o pressentimento de que diariamente o espectador é confrontado com uma realidade demasiado violenta para ainda se arrepiar com as personagens arcaicas que representa. Em paralelo corre a narrativa de um jovem sniper, Bobby Thompson (Tim O’Kelly), que, depois de assassinar parte da família, se instala em locais estratégicos para abater aleatoriamente os que passam pela mira da sua arma. Uma história inspirada no caso real de Charles Whitman. O confronto entre os dois blocos narrativos dá-se apenas no final (ainda que no inicio haja um encontro inconsequente), num drive-in onde decorre uma sessão de homenagem a Byron Orlock, que assim porá um ponto final nas suas presenças em eventos públicos. A tela do drive-in exibe The Terror (O Terror, 1963) de Roger Corman, protagonizado pelo próprio Boris Karloff/Byron Orlock, e atrás dela o sniper encontra um último esconderijo, utilizando um pequeno orifício para prosseguir o massacre. Com este dispositivo, Bogdanovich cria a ilusão de que as imagens do filme disparam literalmente sobre o espectador.
Prestigiado crítico e responsável pela divulgação das obras de Orson Welles, John Ford ou Alfred Hitchcock, incluindo a primeira grande retrospectiva do trabalho de Howard Hawks (MoMA, Nova Iorque), Peter Bogdanovich confessou o seu interesse em dedicar-se à realização de filmes quando, durante uma sessão de cinema, foi apresentado ao produtor e realizador Roger Corman. Conhecemos a “fábrica” de produção de Corman pelos populares filmes de orçamento reduzido que inundavam os drive-ins, caracterizados por tempos de produção curtos, cenários produzidos a partir da reconversão de outros, incluindo os do próprio filme, e elencos compostos por estrelas em ascensão, actores de segundo plano, figuras de Hollywood em decadência e amadores. Este contexto origina uma economia narrativa que obriga à abolição de todos os floreados, o que, num sistema de produção extremamente activo, conduziu à criação de um punhado de obras primas, nomeadamente as adaptações livres da obra literária de Edgar Allan Poe, interpretadas por Vincent Price. A estas, acrescentam-se outras bastante estimáveis que não conseguiam a atenção da crítica dos grandes meios de comunicação, mas faziam as delicias das famílias e dos casais de adolescentes que alimentavam os milhares de drive-ins espalhados pelo país, desde as metrópoles até às pequenas cidades do interior.
A partir da ficha técnica de The Terror, pode-se melhor extrapolar o funcionamento do famoso modelo de produção de Roger Corman e o seu papel no estímulo à “Nova Hollywood”, a geração “sex-drugs-and-rock ‘n rol” ou os “easy riders, raging bulls” (Peter Biskind), que procurava alternativas ao ocaso do sistema de estúdios e à consolidação da televisão enquanto elemento agregador do público familiar: em termos de elenco, para além de Karloff, destaca-se Jack Nicholson, num dos seus primeiros papéis importantes no cinema; Francis Ford Coppola está assinalado como produtor associado, no mesmo ano em que dirigiu o fabuloso Dementia 13 (Demência 13), também produzido por Corman; e na assistência à produção aparece Monte Hellman, depois de realizar Beast from Haunted Cave (1959) e pouco antes do marcante The Shooting (Duelo no Deserto, 1966), ambos produzidos por Corman. Todos estes nomes, excepto Karloff, tomaram as rédeas da realização durante alguns dias, apesar de não estarem creditados como tal. Também Bogdanovich, antes de Corman lhe entregar em pleno a realização, teve funções polivalentes sem ser mencionado nos créditos, trabalhando como actor, argumentista, montador, director de fotografia e assistente de realização em The Wild Angels (1966), também de Corman. Deste quadro, ressalta que a “fábrica” operava como um potente laboratório de desenvolvimento de ideias para os futuros cineastas, onde num curto período de tempo davam os primeiros passos na indústria cinematográfica, numa série de funções que lhes permitiam, aquando das primeiras obras, relevar uma maturidade invulgar na articulação das diferentes vertentes que constituem o processo de produção.
No que diz respeito a Targets, o logótipo da Paramount abre os créditos porque o estúdio comprou o filme já depois de ser concluída a sua produção no circuito independente. Peter Bogdanovich recebera uma proposta de Roger Corman para utilizar um segmento de imagens de The Terror e de ter Boris Karloff como actor, com vista a desenvolver o argumento para um novo filme. Quando Bogdanovich mostrou o argumento ao amigo e realizador Samuel (Michael) Fuller, a quem, em jeito de homenagem, roubara o nome da sua personagem, este dispôs-se generosamente a reescrevê-lo com a condição de a sua colaboração não ficar indicada nos créditos, antevendo que poderia retirar protagonismo ao jovem realizador. Para além das fontes europeias (o Nosferatu de Murnau chama-se Orlok), os ensinamentos de cineastas da Hollywood clássica, com quem o cinéfilo Bogdanovich privava, não são de menos importância na feitura de Targets, desde o plano picado sobre o sniper quando abandona as torres junto à auto-estrada, que lembra Cary Grant a fugir do edifício das Nações Unidas em North by Northwest (Intriga Internacional, Alfred Hitchcock, 1959), até ao uso eficaz da lente zoom sobre a vítima abatida segundo uma noção de zoom enquanto prolongamento do disparo, sugerida por Fritz Lang como a única situação em que permitiria o uso desse tipo de lente. No entanto, nada disto significa que se possa encarar Targets como uma espécie de pastiche de um aluno excelente. Longe disso.
Se Bogdanovich parece lançar um último suspiro sobre a morte do cinema clássico de Hollywwod, também aborda dois temas quase indissociáveis que não lhe interessam particularmente, o cinema de terror e a violência, utilizando uma estrutura narrativa ambiciosa e trabalhando a banda sonora de forma pouco comum dentro do cinema comercial norte-americano, unicamente através das fontes de som existentes na própria cena. Sabendo que, no cinema de género, a música é crucial na criação da emoção, por não ter uma composição musical clássica e diluir esse efeito, o som deixa de sublinhar a imagem e passamos a ter dois elementos que caminham (aparentemente) independentes, criando por vezes resultados surpreendentes como é o caso de todo o final no drive-in, com os sons e as imagens de The Terror em fundo a marcar a acção. Este efeito cria desafios estimulantes para o espectador, originando uma realidade ambígua em que as próprias personagens se perdem, o que é poderosamente retratado na cena em que Bobby Thompson, prestes a render-se, é “entalado” entre a figura real de Byron Orlock que caminha na sua direcção e a personagem que representa na tela, disparando desorientadamente sobre os dois (uma das sugestões de Fuller).
O jovem sniper está rodeado por frias cores claras, diríamos mesmo gélidas, que vão do azul ao cinzento, num “minimalismo” que aponta para a abstracção e a eliminação de significado, uma diluição até ao desaparecimento, numa espécie de horror à cor, fenómeno cultural que David Batchelor apelidou de “chromophobia”.
Em termos de estrutura, tratando-se de duas narrativas que evoluem separadamente até perto do final, Bogdanovich usa em cada uma diferentes aplicações cromáticas, evidenciando claramente a separação e tornando-as num hábil elemento dramático que anuncia as personalidades das personagens principais. O mundo em que se movimenta Karloff é de cores quentes, entre o amarelo e o castanho, que invadem o guarda-roupa, os adereços e os cenários — um mundo adequado ao exuberante tratamento cromático que Roger Corman usava na AIP. Por sua vez, o jovem sniper está rodeado por frias cores claras, diríamos mesmo gélidas, que vão do azul ao cinzento, num “minimalismo” que aponta para a abstracção e a eliminação de significado, uma diluição até ao desaparecimento, numa espécie de horror à cor, fenómeno cultural que David Batchelor apelidou de “chromophobia”. Segundo o autor, trata-se de uma resistência que se tem verificado na cultura ocidental relativamente ao uso da cor. A sua introdução é entendida como uma contradição em relação ao mais nobre pensamento ocidental, desconsiderando conceitos como o feminino, o primitivo, o oriental ou o infantil, enquanto elementos superficiais, não essenciais ou cosméticos e representantes de condições de contaminação e corrupção. Algures entre a meditação e o discurso, Batchelor investigou o uso e a supressão da cor nas artes plásticas, na arquitetura, no cinema, na literatura e na filosofia, começando por nos colocar perante a percepção, errada segundo o autor, que o Ocidente tem do branco e da sua analogia com o divino e o belo — como se o branco não fosse uma cor, mas a condição de um corpo estranho e distante.
O autor parte da visita ao interior de uma casa de uma “colourless whiteness”, propriedade de um coleccionador de arte, concluindo que “poucas coisas poderiam submeter-se àquele regime severo, protegidas das indesejadas e incertas contingências do mundo exterior – sem intercâmbio ou fuga, antes isolamento e confinamento”. E questiona-se sobre o que aquele buraco branco o obrigara a pensar. “Mais no que exclui do que no que contém. (…) Se a cor não tem importância, porquê exclui-la de modo tão forçado? Se a cor não interessa, porque é que a sua abolição interessa tanto? De certa forma, não interessa, ou não interessaria se pudéssemos garantir que aquele interior seria auto-suficiente e isolado como parecia. Mas o interior desta casa apresentava-se com uma grande ambição. Não era um retiro ou um vazio monástico. (…) A sua ‘pobreza voluntária’ era tanto mais justa, quanto evangélica. Parecia que queria impor a sua ordem à desordem que a rodeava.”
Em Targets, não há tamanha severidade mas há sinais suficientes que indiciam esse tipo de disciplina. Os elementos da casa de Bobby Thompson são enquadrados milimetricamente, mesmo nos elaborados planos sequência. A paleta mínima de cores pastel, usada no interior da casa, entra em choque com a riqueza cromática do exterior, o que tanto se materializa numa violência latente difícil de verbalizar, como numa tentativa falhada para identificar os verdadeiros motivos que o levam a praticar aqueles actos brutais. Reconhecemos uma certa malaise de vivre, logo na cena em que Bobby entra em casa e olha demoradamente para os retratos da família, com a distância de um estranho, como se estivesse a olhar para um espelho e não reconhecesse a própria figura. No bloco narrativo paralelo, também acontece algo semelhante mas em forma de comédia. No seguimento de uma bebedeira, Sammy Michaels e Byron Orlock são forçados a dormir na mesma cama. Quando Michaels acorda, sobressalta-se por ver Orlock a seu lado, eventualmente confundindo-o com uma personagem dos seus filmes. Poucos segundos depois, o mesmo acontece a Orlock que é surpreendido pelo próprio reflexo no espelho suspenso na parede, numa variação que acentua a imagem de incerteza e de irreconhecimento de Bobby. Numa outra cena perturbante, com as luzes apagadas, Bobby fuma um cigarro no quarto. A única fonte de luz é determinada pelo ritmo das fumadas, fazendo com que, por breves momentos, o negro imperscrutável se dilua revelando parcialmente o “buraco branco”. Mesmo assim, é tão chocante o assassinato da família, porque destituído de emoção ou reacção, a organização dos cadáveres em cima da cama, como se estivessem possuídos por um sono profundo, e finalmente a limpeza do sangue e dos últimos traços de morte, no regresso à pureza do quadro inicial.
No último plano do filme, a partir da tela, vemos o drive-in abandonado pelos espectadores com um único automóvel, eventualmente o do assassino, depois de ser preso pela policia. É sobre este plano que correm os créditos enquanto subtilmente a sombra de uma nuvem o atravessa. Bogdanovich parece querer assinalar que com o desaparecimento das figuras míticas do cinema também chegou ao fim o papel do drive-in enquanto espaço privilegiado de encontro de famílias e de adolescentes apaixonados, provavelmente a favor da televisão que seria um meio que traduzia melhor a actualidade violenta do quotidiano. No entanto, outra parte da realidade depressa se encarregou de contrariar essa visão. Uma peculiar conjuntura social — o Summer of Love, a onda de serial killers, a Guerra do Vietname e o assassinato de Martin Luther King — inspirou uma série de realizadores independentes, que operavam à margem de Hollywood, a procurarem os locais mais recônditos do país para filmarem cenas extremas de sexo e violência, recorrendo aos enredos mais extravagantes. Em cerca de poucos meses o filme passava da escrita do guião ao lançamento comercial, algo que em Hollywood precisaria de mais de dois anos, conferindo-lhes a preciosa actualidade da televisão e, ao mesmo tempo, reconhecendo as potencialidades comerciais de um numeroso público, constituído essencialmente por adolescentes e jovens adultos, que voltava a encher os drives-ins espalhados pelo país e as grindhouses de Nova Iorque e de Los Angeles. Não pense o leitor que nos referimos aos realizadores que inspiram Quentin Tarantino e com os quais costuma embelezar as suas listas de preferências, mas sim àqueles que Stephen Thrower chamou “exploitation independents”, ou seja o sector mais radical da exploitation. A face pura e dura.