Introdução à Segunda Temporada dos Filmes Fetiche
https://www.youtube.com/watch?v=PBagXatnxbQ
Um outro ensaio sobre a cegueira
Encontrar o filme The perfect human (1967) de Jørgen Leth, dentro do documentário intimista Donner le jour (2005) de Martin Verdet, foi uma surpresa que aconteceu na timeline do software de edição, sem decisão prévia de o fazer. The (Im)Perfect Human nasceu de uma experiência que lancei a mim mesma sobre o acto de criação cinematográfica “às escuras”.
Tinha acabado de interromper um processo de criação muito cerebral e analítico, onde tudo existia na minha mente antes de eu abrir o programa de montagem.
Decidi entrar neste novo projecto de forma diferente, guiada quase inteiramente pela intuição. Não planeei o que iria fazer, sobre o que iria “escrever” cinematograficamente. Quis explorar o instinto como método de pesquisa, tentando perceber o que se evidenciaria inconscientemente do meu olhar crítico sobre o cinema se desligasse a racionalidade. O que veria “às escuras”? O que é que me preocupa tão profundamente no cinema que chega ao meu inconsciente? Que tipo de afloramento encontraria? E que juízo racional faria posteriormente sobre ele? Este texto é essa tentativa de compreensão.
Abri a pasta onde guardo os meus filmes e fui escolhendo, de forma desprendida, alguns que tiveram maior impacto sobre mim e que ressurgem com alguma frequência. Seleccionei, de entre os escolhidos, filmes que conheço quase tão bem como os filmes que realizei. Cheguei à timeline com quatro “filhos adoptivos”: Donner le Jour, Dans la ville de Sylvia (2008) de José Luís Guerín, The Perfect Human e Who is the master who makes the grass green – Reality Tunnels (1996) de Edgar Pêra.
Reparei que dois eram muito ligados à contemplação de detalhes do quotidiano das pessoas que retratavam, ambos referindo-se ao poder de observação contemplativa de homens (sensíveis) sobre mulheres: gestos, pormenores físicos, o som do andar, actos simples que se revelam poéticos, enfim, formas de perceber a intimidade do outro através de ínfimos detalhes banais. Em ambos os casos, a acção é diminuta. São histórias que revelam processos interiores de lidar com a memória através da experiência do presente e da contemplação. Ambos os observadores são motivados pelo amor por uma mulher.
Os outros dois atraíam-me pela sua voz off. Uma debruçava-se sobre o que é o ser humano perfeito, acabando por demostrar visualmente que é impossível definir ou compreender tal coisa a partir do momento em que a singularidade/subjectividade se faz evidente. A outra voz off reflectia sobre o que é o real e a normalidade, argumentando que estes não existem concretamente e que são apenas uma convenção facilitadora do discurso, sendo cada pessoa única na sua forma de entender e experienciar a realidade. A ausência de norma é o normal. A realidade, é a realidade de cada um, com a sua forma ímpar de olhar para o mundo.
No fundo, os quatro filmes falavam comigo pela sua relação com a contemplação da singularidade humana; pela materialização cinematográfica de um gesto filosófico, poético, sobre a essência e a beleza de ser-se; pela revelação da profundidade, da intimidade, da identidade única, através da simplicidade quotidiana.
Na vida, esse conhecimento do outro acontece quando nos entregamos, quando nos dispomos ao encontro, quando a relação acontece por meio de um laço mais profundo, nem sempre belo, nem sempre compreensível pela razão, mas onde somos levados a apreender o que é estar no lugar do outro e onde deixamos que o outro compreenda o que é estar no nosso. No processo, conhecemo-nos a nós um pouco mais. Relação. Empatia. Inteligir. Contemplar. Foram estas as palavras que resultaram da sobreposição dos quatro filmes.
Decidi trabalhar com os dois filmes que aprofundavam mais esse posicionamento, apesar de só agora reparar que foi essa a relação que estabeleci. Não revi inteiramente os dois filmes. Confiei na memória. Coloquei o documentário Donner le Jour na timeline e comecei automaticamente a (re)cortar os planos contemplativos. Deixei de fora todos os planos que abordavam o processo de luto do realizador em relação à mãe, que morrera pouco tempo antes com um cancro que crescera no útero. Eliminei a relação entre o luto e o tempo de gestação do bebé, essa relação terapêutica, filmada com uma distância muito justa, entre a dor e a felicidade, entre o fim de um ciclo e o início de outro. Eliminei a relação entre a criação escultórica da sua mãe e a criação de uma vida. Eliminei os planos, mais residuais, em que o realizador aparecia, bem como a sua relação com o pai e a presença da mãe da sua companheira. Sem ter intenção, fiquei com planos onde só transparecia o amor do realizador pela mulher que vemos no ensaio The (Im)Perfect Human. Ressaltava das imagens um impulso claro para compreender todos os seus gestos, todos os milímetros do seu corpo, todas as suas sensações, as suas tolices, uma vontade de a observar e de a compreender, de captar as suas peculiaridades, aquilo que a torna insubstituível aos seus olhos – aquilo que a torna única e “perfeita” para ele. Tinha encontrado The Pefect Human em Donner le Jour, apesar de todas as diferenças que lhe acrescentam camadas de significação.
De tanto “tocar” nas imagens, cortá-las, mudá-las de sítio, revê-las vezes sem conta, experimentar o significado adquirido junto a outros planos, aumentar o plano, encurtar o plano, acabei por sentir-me, eu própria, em contemplação daquela mulher. Dei por mim a sentir admiração por ela, a defendê-la na imagem, a olhar para ela com uma qualquer espécie de amor. Senti curiosidade de pesquisar se o casal ainda estaria junto (sim), se o bebé era menino ou menina (era menino) e se teriam mais filhos (outro menino). E dei por mim a sentir-me contente por eles como se fossem meus amigos do coração. Foi estranho. Nunca me tinha acontecido tal coisa com um filme. Colocar-me no lugar do realizador através da montagem, da manipulação milimétrica e morosa de cada plano do seu filme, ainda para mais de um documentário, fez-me entrar num processo altamente empático e relacional. Mais do que quando o vi pela primeira, pela segunda, pela enésima vez. Aí era só uma espectadora. Aqui era uma contempladora. Era a contempladora do contemplador e da contemplada.
Fui cortando a faixa de som de The Perfect Human através do mesmo processo fluido e intuitivo. E brinquei com o sentido novo que ambos os filmes ganhavam. A memória e a intuição funcionaram. Sem dar conta, e sem ter revisto o filme antes do processo de montagem, reparo hoje que respeitei muito a estrutura original de The Perfect Human. Os momentos de pausa, de silêncio, os momentos em que o humano fala, as suas peculiaridades, a existência de dois humanos perfeitos, as expressões feitas pelo actor no fim do filme, a separação que se dá no final entre os dois humanos perfeitos, etc.
The (Im)Perfect Human é o ensaio onde se testa o embate de um discurso com cerca de 50 anos, com a actualidade, através de imagens de um filme (e de alguns sons) de 2005. Passado meio século sobre a criação de Jørgen Leth, o impulso para a contemplação e para compreender o que é ser-se humano continua a fazer sentido. Fazia sentido há 10 anos, quando Donner le Jour foi realizado, e faz sentido hoje.
Curiosamente, a resposta continua a ser a mesma que em The Perfect Human. Mudou apenas o dispositivo fílmico. Não radicalmente, mas mudou. A imagem deixou de estar submetida ao som. A concordância laboratorial e publicitária entre som/imagem desapareceu. A voz científica, distante, objectiva, fria e autoritária, foi posta em contraste com imagens da realidade, filmadas de forma poética, apaixonada, contemplativa e onde há uma presença telúrica, uma relação com o sagrado (no sentido pagão). As imagens por vezes desobedecem à voz. A literalidade deu origem a jogos de duplo sentido. O espaço e o tempo tornaram-se mais concretos, mas mais fragmentados. Os grandes planos passaram a estar mais presentes, a proximidade emocional e física aumentou. A perfeição da voz robótica e autoritária é posta em causa. A voz perfeita sofre uma avaria, o que a torna tudo menos perfeita ou capaz de ser a autoridade que fornece respostas. É a imagem que as dá, sem que sejam explícitas. Passa a haver também uma noção de ciclo, de loop e de repetição. Nasce um novo humano perfeito, mas nem por isso ele é a repetição do anterior. É diferente e singular. Tudo começa de novo.
Porque é que ainda faz sentido perguntar o que é ser? Que respostas procuramos ainda? Porque é que o dispositivo mudou tanto? Porque é que senti necessidade de um processo criativo mais ligado ao inconsciente do que à razão?
Quererá a minha intuição dizer-me que a essência do cinema continua a estar na procura de respostas às questões existenciais básicas? Porque é que é relevante pensar sobre esse gesto no cinema de hoje? O que é que sinto estar em perigo na criação cinematográfica para que se tenha produzido este afloramento?
Observo que, de 1967 (data de produção de The Perfect Human) até hoje, a realidade do cinema, das imagens e das narrativas audiovisuais mudou muito. Deixou de haver uma separação entre o espaço para ver arte e o espaço da realidade da vida de todos os dias. Os ecrãs multiplicaram-se. Vemos mais imagens em casa e na rua do que no cinema ou na galeria. Vemos imagens no telemóvel, no computador, na televisão, na estrada enquanto esperamos que o semáforo mude para verde, no metro, no autocarro, em todos os momentos da banalidade do quotidiano.
A imagem deixou de estar associada a um momento de escape a esse mesmo quotidiano. Está embutida na própria realidade e não mais num espaço distante dela. Os códigos de construção narrativa, de construção de personagens, de construção de géneros cinematográficos, de representação da “realidade”, de representação da fantasia… estão de tal forma presentes no dia-a-dia que passaram a moldar a própria realidade. Nós construímo-nos segundo esses códigos. As narrativas políticas são construídas conscientemente com utilização desses códigos. Os media são alimentados segundo esses códigos. A realidade é contada pela métrica da construção de narrativas ficcionais. E ao longo do tempo vamos construindo o filme na nossa mente. Vamos construindo a nossa vida pessoal, a nossa vida social, política e cultural segundo a lógica e os códigos de um filme. A construção social de quem somos e do que ambicionamos enquanto civilização é manipulada pela utilização de técnicas narrativas. Vivemos num filme. Manipulam-se identidades e realidades como se manipula uma história ou as personagens de uma ficção. Queremos ser heróis. Queremos um final feliz. Observamos os vilões e os desequilíbrios das jornadas dos heróis “a sério”. Já nada parece real. Observamos a vida e o cinema com a mesma distância “injusta”. O cinema (e o geral da produção audiovisual) deixou de representar a realidade para passar a contamina-la e alterá-la.
Deixámos de conseguir ‘ver melhor’ a realidade pelo reflexo dado pelo ecrã. Até ao boom das narrativas cinematográficas e audiovisuais, vermo-nos de fora causava estranheza e essa estranheza era a distância necessária para ver com “novos olhos”, para pensar. Hoje não pensamos. Só nos confundimos mais. Não contemplamos, entorpecemo-nos. Os nossos olhos foram substituídos por ecrãs que funcionam como lentes de distorção e não mais como espelhos. Já não há distância. A mente está cheia e confusa. (A intuição talvez não.) Temos o intelecto pejado de narrativas, de personagens, de códigos e nem sequer sabemos onde começam ou acabam dentro das esferas da nossa vida. O cinema (e o audiovisual) é hoje um vírus, não uma vacina. Há imagens a mais. O mundo está cheio de ruído narrativo e visual. Por vermos demais deixámos de ver. Enquanto as narrativas se dispuserem da mesma forma, nada nos causa estranheza. A estranheza está na origem da curiosidade.
Mudar radicalmente os dispositivos cinematográficos/narrativos e provocar as formas de percepção adquiridas pode induzir um pequeno choque nesta relação da realidade com a sua suposta representação. Um espaço de respiração. O dispositivo como discurso será, talvez, uma forma de voltar à distância necessária para ver. A urgência é política, não tem apenas a ver com contar “algumas historinhas novas”. Talvez assim se consiga voltar a inteligir. A relacionar-nos com a essência do outro. A dispor-nos ao encontro, ao conhecimento de nós mesmos e dos que partilham o mundo connosco. Ao conhecimento tout court. À compreensão. Talvez assim possamos voltar a contemplar verdades essenciais que nos permitam saber viver melhor uns com os outros. A cada humano que nasce, essa necessidade actualiza-se. Daí ainda fazer sentido perguntar o que é ser-se humano…
Contemplar tem a mesma origem que a palavra templo. O prefixo con implica a noção de relação, de conjunto. Porque contemplar liga de forma metafísica o que contempla e o que é contemplado. Cria-se uma relação com significado maior. Contemplar remete para uma relação de observação que toca o divino e o misterioso. Contemplar relaciona-se com a distância necessária para ver com clareza, para intuir algum tipo de conhecimento. Contemplar implica, na sua definição, o espaço que fica entre quem contempla e o “altar” contemplado, o símbolo do sagrado.
Que melhor arte para servir a contemplação do que o Cinema? Seja o templo a casa e o altar o ecrã, seja o divino a essência humana. Por ela, o cinema tem o dever de reinventar-se de modo a possibilitar aquela que é a sua génese: mais do que dar a olhar, é dar a ver. Cabe ao espectador que olha e que vê, reparar.
Margarida Gil