Introdução à Segunda Temporada dos Filmes Fetiche
Um ensaio audiovisual sobre arquitectura, um filme feito de dois filmes: Ver Artes/Arquitectura, um programa de televisão da autoria de Manuel Graça Dias, do qual resultaram 84 episódios, realizados para a RTP entre 1992 e 1996; e True Stories (True Stories – Histórias de um Quotidiano), uma longa-metragem de ficção realizada por David Byrne em 1986, sobre uma cidade fictícia algures no Texas. Manuel Graça Dias, nascido em 1953, português e arquitecto, fala-nos de arquitectura neste seu programa porque a pratica e por isso sente-se à vontade para falar dela, aproveitando o espaço na televisão para comunicar e partilhar a cultura arquitectónica portuguesa a um público mais alargado. Já David Byrne, nascido em 1952, norte-americano e à época do filme ainda vocalista dos Talking Heads, fala-nos de arquitectura talvez apenas porque sim, porque lhe apetece — para quê tentar questionar a pertinência de um determinado assunto num filme cujo único sentido parece ser não fazer sentido nenhum? Como o próprio referiu numa entrevista a propósito do True Stories: “I deal with stuff that’s too dumb for people to have bothered to formulate opinions on”.
Mas a arquitectura não é definitivamente um assunto “estúpido” e True Stories, mesmo que inadvertidamente (ou nem por isso), acaba por proporcionar um incisivo, e não menos caricato, retrato do estilo de vida tipicamente americano dos anos 80, pela menos na sua versão mais estereotipada possível, ou seja, fatalmente rendido à narrativa do “american dream” e ao desenfreado consumismo que lhe está implícito, manifestando-se no território através de uma série de tipologias imediatamente reconhecíveis: shopping-malls, free-ways, night-clubs, metal buildings (edifícios pré-fabricados) e o infinito urban sprawl (a construção em série de casas individuais). E se num primeiro relance estas duas produções poderão não despertar entre si qualquer afinidade imediata, certo é que ambas acabam por abordar o mesmo tema, embora uma mais directamente que a outra — a arquitectura. Mas que “arquitectura” é esta que uma das produções nos apresenta, em Portugal, na década de 90, e sobre a qual a segunda nos lança numa espécie de périplo surreal pelas entranhas da América dos anos 80? Estamos a falar da mesma e uma só coisa, ou de noções de arquitectura absolutamente distintas? A dada altura em True Stories, David Byrne ensaia uma resposta a esta hipotética pergunta: “I have something to say about the difference between American and European cities. But I’ve forgotten what it is. I have it written down at home somewhere”. Tratar-se-á, portanto, de uma questão permanentemente em aberto?
O que é afinal a arquitectura? Manuel Graça Dias propõe-se desde logo, desde a primeira frase do primeiro episódio do seu programa, ensaiar uma resposta a esta questão: “Num programa que se propõe falar sobre arquitectura, havia que tentar começar por distinguir entre arquitectura e construção”. Em True Stories, David Byrne avança também uma definição, referindo após um breve separador preto com a palavra ARCHITECTURE: “Metal buildings are the dream that modern architects had at the beginning of the century finally come true but they themselves don’t realize it, that’s because it doesn’t take an architect to build a metal building, you just order them out of a catalogue.” À questão da definição de arquitectura, soma-se portanto uma outra: o tempo.
Ao longo deste ensaio audiovisual vamos percebendo que o tempo da arquitectura portuguesa é um tempo lento, em continuidade com a história e sempre em projectado para o futuro; já o tempo da arquitectura americana é evidentemente rápido, demasiado rápido, descartável como embalagens de “fast food”. Por isso recuperou-se neste ensaio o episódio do Ver Artes que se dedica exclusivamente à urbanização da “Quinta da Malagueira” de Siza Vieira, em Évora, projecto particularmente cuidado e sensível ao tempo e à morfologia do lugar, que, como Manuel Graça Dias o apresenta, é um projecto onde o seu autor tenta “compensar a falta de dimensão da história, de que Évora ali mesmo ao lado é um exemplo maior”. Ao mesmo tempo, vemos David Byrne percorrer no seu descapotável vermelho a vastidão árida dos terrenos que circundam a pequena cidade de Virgil, para onde se prevê que uma dia a cidade venha a estender-se, enquanto ouvimos ao lado Siza Vieira dizer: “Já não há desertos na terra”. Mais à frente vamos vendo imagens de um típico subúrbio americano, onde as casas crescem como num jogo de “leap frog”, todas iguais, pré-fabricadas, com os seus relvados individuais e sem definição de espaço público comum, colectivo, onde por exemplo as crianças pudessem brincar em conjunto: “It’s kind of weird for the first person that moves into a community like this”, diz-nos o civic leader do sítio. E, mais uma vez, por oposição, o tempo lento da arquitectura portuguesa em Ver Artes: “Uma cidade, um pedaço de cidade não se cria de jacto, o tempo é amigo das cidades, sedimenta-as”, ouvimos Manuel Graça Dias dizer, enquanto a imagem varre uma maquete do projecto urbano dos Olivais, em Lisboa. “Ainda por cima o bairro tem excelente arquitectura, isso é uma boa coisa porque cria imagens muito fortes que permite às pessoas identificarem-se com o sítio” — acrescenta Paulo Varela Gomes — “a grande banalidade, a grande monotonia ou a grande falta de qualidade da arquitectura é uma das coisas que mais contribui para não haver identificação com o lugar”.
A definição de arquitectura que este ensaio audiovisual explora poderia então resumir-se à eterna dicotomia entre uma espécie de bem e uma espécie de mal, entre a imagem de uma construção cuidada e de outra descartável, entre a delicadeza sábia dos arquitectos portugueses versus a expansão abrutalhada que acompanha o desenvolvimento das cidades americanas. Contudo, qualquer definição de arquitectura nunca é imediata, nem se pode limitar ao confinamento de uma dicotomia. É nesse sentido que o programa de Manuel Graça Dias nos desarma totalmente, quando, entre episódios mais solenes dedicados à arquitectura “oficial” praticada pelos mais reconhecidos arquitectos portugueses da altura, vemos surgir episódios dedicados a assuntos “ordinários” e que à partida parecem totalmente descabidos. Ao longo de todo o Ver Artes podemos ir encontrando episódios dedicados exclusivamente, por exemplo, às auto-estradas; às roulottes; ao desenho dos pratos e travessas de comida; aos lugares da noite, onde somos levados a conhecer o Frágil, entre outros estabelecimentos nocturnos; às letras na cidade; aos mistérios na cidade; aos guindastes e navios; e, numa espécie de proclamada auto-negação, à fervilhante “arquitectura sem arquitectos” dos clandestinos urbanos. Se do programa de Manuel Graça Dias retivéssemos apenas estes episódios, ficaríamos com a sensação de que Portugal e Virgil, algures no Texas, talvez não fossem assim tão distintos.
Daí, as free-ways: a infraestrutura que tornou cidades como Virgil possíveis, diz-nos David Byrne em True Stories: “They’re the cathedrals of our time, someone said. Not me”. Manuel Graça Dias faz referência a este pequeno comentário de Byrne no episódio que dedica às auto-estradas: “Ele disse que alguém dissera num filme, olhando a câmara, que as auto-estradas eram catedrais modernas”. De tão subtil esta referência poderia até passar despercebida mas quando porém detectada estabelece uma inequívoca relação entre as duas produções. Contudo, contém imprecisões. Ao contrário do que o programa português sugere, a personagem não olhava para a câmara no momento em que o comentário era proferido, ouvindo-se apenas David Byrne em voz-off. Uma falha na memória de Manuel Graça Dias, ou de quem lhe contou esta cena, poderá talvez explicar este lapso na narração que remete para a imagem que se associa automaticamente a True Stories: David Byrne com um enorme chapéu texano, sentado ao volante de um carro descapotável vermelho, a falar diretamente para a câmara, tal qual um “talking head” (expressão anglo-saxónica usada em televisão para designar a imagem de uma pessoa filmada do peito para cima a falar directamente para câmara).
“Não o contradisse porque acredito ser necessário recorrermos a exemplos na angústia de nunca encontrarmos o tom, vamos interceptando perpetuamente a fala com metáforas, recorrências formais que chamamos e misturamos para atingir a emoção” — continua depois a narração de Manuel Graça Dias. E, coincidentemente, não será um pouco esta a própria essência de um ensaio audiovisual? Invocar outras imagens, misturar referências diversas, conduzir uma assemblagem de associações improváveis que mesmo que imprecisa poderá levar à definição de uma ideia, ao esboçar de uma teoria, à comunicação de um qualquer discurso?
Um famoso crítico americano escreveu à época sobre True Stories: “This movie does what some painters try to do: It recasts ordinary images into strange new shapes” (Roger Ebert, 1986, crítica consultável aqui). A referência ao True Stories poderá não passar de uma insignificante vírgula na imensidão de conteúdos do Ver Artes, mas a sua presença neste ensaio pretende reflectir a janela de abertura ao mundo que Manuel Graça Dias procurou sempre construir com o seu programa, através da forma absolutamente inusitada com que soube explorar temas irremediavelmente mundanos mas não por isso menos fundamentais à prática arquitectónica, pois a arquitectura é uma actividade que nunca se exerce no meio do nada — “já não há desertos”. Este ensaio audiovisual propunha-se assim tentar transmitir a criatividade com que este programa de televisão procurou explicar o que é a arquitectura, tarefa que se advinha sempre complexa e controversa. Pela sua mera existência e longevidade (4 anos de emissões quinzenais especializadas), o programa Ver Artes constitui um precioso testemunho audiovisual do que melhor se construiu na década de 90, mas destaca-se também por não se limitar a ser apenas isso, contornando de forma fulgurante todos os cânones disciplinares e proporcionando acima de tudo uma visão do mundo nas suas mais múltiplas e singulares manifestações — não é pois dessas idiossincrasias que a boa arquitectura se alimenta?
Este ensaio teve como base uma comunicação apresentada em 2012 no Seminário “Na Superfície”, na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, sob o título “Arquitectura talking-head”.
Alexandra Areia