Com a quantidade de filmes realizados até hoje sobre aliens e suas naves invasoras, torna-se difícil acreditar que os verdadeiros aliens que existem neste universo ainda não tenham percebido a mensagem de que os queremos aqui e agora, de preferência com tecnologia capaz de nos aniquilar num instante. Se não nos puderem vaporizar, então, que possam estabelecer frutuosas relações diplomáticas, comerciais, sociais e culturais connosco. Mas para isso é preciso que nos entendamos, e nesse caso temos de ir buscar linguistas e tradutores que ajudem a ultrapassar as diferenças entre as espécies. Como a Dr. Louise Banks (Amy Adams), no novo filme de Denis Villeneuve, Arrival (O Primeiro Encontro, 2016).
Denis Villeneuve lá vai continuando a sua tarefa de se constituir como laborioso e paciente fabricante de puzzles narrativos, deixando, pelo caminho, muitos rendidos ao seu perfeccionismo e outros, como aqui escreve Bilge Ebiri, acusando-o de não mais ser que um emproado, um manipulador e um charlatão (como se, necessariamente, estas fossem três cousas más). Fazendo, então, o papel de advogado do diabo, referimos que, sim senhor (a), o cinema do canadiano é pretensioso, manipulador e charlatão. São as “nefastas” consequências de uma langorosa imersão em histórias que desde o primeiro minuto sabe-se lá para onde caminham e da organização de um sistema visual que não deve ter hoje muitos concorrentes no cinema de língua inglesa. Villeneuve, sem pingo de vergonha, consegue, em simultâneo, conciliar a dimensão mundana da historinha com um domínio de todas as ferramentas cinematográficas (Enquadramento! Enquadramento!) que impede as suas obras de caírem na mais pura ostentação (bibelot alert). Sim, somos fãs babados.
Arrival é, então, mais um tijolo na construção da reputação de Denis como realizador a dividir águas. O filme é de uma gigantesca ambição temática (sim, daqueles filmes com “temas importantes”) no interior de uma imensa super-produção, e, no entanto, o que fica no fim é a sensação de que acabámos de assistir a um filme de uma íntima modéstia com um foco emocional a bater nos lugares certos às horas certas. Já era assim com os anteriores filmes de Villeneuve, desde pelo menos a sua primeira longa a que assistimos, Polytechnique (2009): histórias com uma gravidade (para outros, sisudez) muito pronunciada mas que, felizmente, não impediam a faísca do humano de carburar pelas suas entranhas. O estabelecimento de uma compreensão mútua entre alienígenas e humanos não consegue escapar, graças a Deus Nosso Senhor, ao tratamento imbuído de “rigor sentimental” (ou será “sentimentalismo rigoroso”?) providenciado nas oficinas de Denis; a marca de um verdadeiro autor: esperamos, então, um filme do realizador sobre a rodagem de um filme porno.
Para estes resultados, contribuem, espantosamente, colaboradores de Villeneuve como o director de fotografia Bradford Young ou o compositor Jóhann Jóhannsson. Quanto ao primeiro, e com a ajuda de um design de produção maravilhoso, consegue incutir um profundo contraste entre a natureza “malickiana” do nosso mundo e o vazio metálico da nave espacial. É certo que não é de muito bom tom admirarmos estas coisas “menores” da fotografia e assim (como bons cachorrinhos amestrados, seguimos à risca um dos mandamentos do Profeta Daney: A FOTOGRAFIA SERÁ A ÚLTIMA COISA QUE VISUALIZARÁS NUM FILME), mas, por Zeus, difícil resistir a tamanhas guloseimas para os olhos. Por sua vez, Johannson, comparsa do canadiano em Prisoners (2013) e Sicario (Infiltrado, 2015), estabelece um sonoridade simultaneamente épica e outonal, atingindo os seus maiores níveis de brilhantismo quando se deixa a sós com a personagem da Amy Adams.
Amy Adams é o verdadeiro centro gravitacional de Arrival. Sim, há Villeneuve e sua mestria, há uma tentativa de redimensionar o propósito e o sentido da linguagem que nem o Dr. Noam Chomsky se lembraria, há o grande Forest Whitaker, mas sem Adams, levaríamos de Arrival um muito bom mas um tudo nada árido produto cinematográfico. Vulnerável e ambiciosa, tocante e resiliente, tão inteligente como socialmente inapta, a sua Louise Banks é uma criação que figura desde já na lista das melhores personagens dos últimos anos no cinema americano. Serve como contraponto à personagem da Emily Blunt no Sicario, que andava, durante quase todo o filme, aos papéis, sem entender patavina do que se estava a passar; em Arrival, Amy Adams, além de ter um papel mais pró-activo no interior de um microcosmos masculino, tem ainda uma pequenina responsabilidade: é o elo de ligação entre seres de outros planetas e a espécie humana. É como ir ali ao café beber um bagaço.
Há razões de queixa em relação a Arrival? Há, mas parecem-nos queixas inevitáveis e já quase dispensáveis se estivermos a lidar com um filme deste género. São clichés narrativos (parecem quase inserts) que fazem já parte do cardápio, e bastará ter visto meia dúzia de filme de invasões alienígenas (ou do sub-género “fim do mundo”) para saber logo quais são. Exceptuando isso, Arrival é um daqueles blockbusters quebra-cabeças que surgem de dez em dez anos; argumento e história são já suficientemente interessantes por si mesmos, e se ajudados por um homem atrás das câmaras que mostre ter olho (s) para imagens, então, pelo menos para os fãs sci-fi mais hardcore, o filme de Villeneuve é indispensável. Para os outros também, e para os detractores de Denis igualmente: é mais uma oportunidade de lhe darem carga de pancada.