Bárbara Virgínia é considerada a primeira mulher a realizar uma longa metragem sonora em Portugal e Três Dias sem Deus (1946) é esse filme. Realizou-o quando tinha 22 anos tendo assumido também o papel de protagonista. O filme estreou no Cinema Ginásio a 30 de Agosto de 1946 e seria apresentado na primeira edição oficial do Festival de Cannes — como era conhecido à época, Festival Internacional do Filme de Cannes —, nesse mesmo ano, juntamente com Camões de José Leitão de Barros e duas curtas metragens, a 5 de Outubro.
Bárbara Virgínia (nome artístico composto por Bárbara da avó e Virgínia da Mãe, de seu nome de nascimento, Maria de Lourdes Dias Costa — Fernandes Vilela Alves pelo casamento) nasce a 15 de Novembro de 1923 numa família de classe média alta, já que o seu pai era Oficial Superior da Marinha, tendo crescido nas Avenidas Novas. Fez o ensino secundário nos liceus Maria Amália e Filipa de Lencastre e o ensino superior no Conservatório Nacional de Lisboa como actriz, estudou também canto lírico, piano e ballet clássico, encenação, composição musical e italiano, entre outras disciplinas. Terminou a sua formação aos 20 anos, no dia 18 de Julho de 1943, tendo interpretado nas provas finais de Arte Dramática La Flame de Henri Kistemackers, juntamente com um dos seus mestres, Alves da Cunha. Outros professores que teve foram Maria Matos, Carlos Santos, Samuel Diniz e Assis Pacheco. Começa a sua carreira artística na Emissora Nacional como declamadora e cantora lírica.
Integra o grupo de bailado do Teatro São Carlos. A 25 de Outubro de 1946 estreia-se no Teatro Maria Vitória, numa revista à portuguesa — na época era frequente participarem actores de formação clássica, como declamadora — dizendo versos de Fernanda de Castro, Florbela Espanca, Catullo da Paixão Caerense entre outros. Em 1947 actua como figura principal na opereta Flor da Murta (Sua Majestade o Amor) de Silva Tavares e só em 1948 se estreia no teatro dito sério, a convite do seu mentor, Alves da Cunha, protagonizando a peça O Ladrão de Bernstein, no teatro Sá da Bandeira, no Porto. A partir de 1949 reduz a sua carreira a diseuse dando um recital no teatro São Luís e seguindo numa digressão que a levou às ilhas, a Espanha, França e Holanda.
No cinema a sua estreia como actriz dá-se em Sonho de Amor (1945) de Carlos Profírio tendo no mesmo ano sido responsável pela narração do documentário Neve em Lisboa (1945) de Raúl Faria da Fonseca — sendo que tanto a atribuição da realização como a narração dessa curta metragem documental não são totalmente certas, já que apenas se preserva no ANIM um versão incompleta de montagem sem banda de som. Surge, depois de Três Dias sem Deus, como actriz em Aqui Portugal (1947) de Amando Miranda. O seu envolvimento no cinema como actriz poder-se-ia ter dado mais cedo já que, segundo Helena Matos, em 1942 Leitão de Barros (amigo de família) tê-la-ia convidado para o papel de Júlia em Ala-Arriba (1942) antes de se ter decidido pela ficção etnográfica e escolhido apenas actores não profissionais da Póvoa de Varzim para os diferentes papéis do filme.
Colaborou em algumas publicações escritas como A Voz, o Diário de Lisboa, o suplemento do jornal O Século dedicado ao público feminino Modas e Bordados e também na publicação Emissora Nacional que reproduzia por escrito alguns dos programas da homóloga estação radiofónica. Nestas publicações fez crítica de teatro, escreveu crónicas de viagem, entre outros géneros de escrita jornalística. Depois de alguns anos entre os palcos e os microfones da rádio (no programa Combóio das Seis da Manhã) é convidada pelo empresário Assis Chateaubriand a partir para o Brasil em 1952 para uma carreira na televisão e rádio Tupi e no teatro, após um espetáculo no São Luís. “E eu fui apresentada, em São Paulo, por Guilherme de Almeida, que era o Príncipe dos Poetas. Depois disso, eu comecei a ter tantos convites que eu não pude ir embora logo. Eu fiquei a dar espetáculos em todo o Brasil.” (Pereira e Pianco, 2016).
Durante vários anos dá vários espectáculos em diversos teatros brasileiros, tanto nos grandes centros urbanos como no interior, sempre como declamadora, tendo recebido o Prémio do Teatro Declamado pela Tv Tupi em 1957 e o prémio para melhor intérprete de poesia Carlos Alves. Este período descreve-o a actriz e realizadora numa série de cartas publicadas na revista Plateia. Despede-se das lides artísticas a 15 de Outubro de 1963 num espectáculo no Teatro Municipal de São Paulo e casa-se 11 dias depois com um empresário rico do Brasil dedicando-se à escrita de manuais de boas maneiras e etiqueta (editados pelas católicas Edições Paulinas, A Mulher na Sociedade, Poder, Pode… Mas Não Deve e Etiqueta… sem etiqueta) e continuando durante alguns anos ainda como locutora da rádio Tupi. Durante um curto espaço de tempo, entre 1955 e 1957, abriu, com a mãe um restaurante de comida tipicamente portuguesa chamado Aqui, Portugal.
O filme Três Dias sem Deus está parcialmente perdido restando dele apenas uma parte de banda de imagem sem banda de som, num total de 26 minutos separados em duas bobinas arquivadas no ANIM medindo um total de 868 metros. Dos 102 minutos de filme que se estrearam em 1946 só se conservou menos que a quarta parte. O facto de o filme se ter perdido está relacionado, de forma indirecta, com o facto de a produtora Invicta Filmes Independente ser a incursão aventurosa e sem repetição de Felisberto Felismino, um “conhecido comerciante de Lisboa” importador de canetas de tinta permanente da marca Conklin – que ainda assim recuperou nas 4 semanas de exibição do filme, até dia 26 de Setembro, o seu investimento não se dando por insatisfeito. A juntar a isso a curta circulação do filme reduziu o número de cópias disponíveis e os incêndios que ocorreram nos depósitos da Cinemateca foram também responsáveis pela fragmentação do filme.
Bárbara Virgínia tivera com Três Dias sem Deus o seu primeiro e último filme como realizadora.
No entanto esta afirmação necessita de uma avaliação mais cuidada. O caso de ser o ser primeiro filme pode não ser totalmente correcto já que numa crítica a Três Dias sem Deus no jornal O Século, António Lourenço faz referência a dois documentários de curta metragem da autoria de Bárbara Virgínia, Aldeia dos Rapazes – Orfanato Sta. Isabel de Albarraque e Jogo da Sardinha sobre a indústria conserveira do Algarve. No ANIM o primeiro encontra-se de facto arquivado como realizado por Bárbara Virgínia, já o segundo está referenciado como realizado por José de Oliveira Cosme. Os dois filmes foram estreados em complemento de Três Dias sem Deus. Note-se, no entanto, que datam de 1947 dois filmes de Adolfo Coelho com títulos semelhantes: A Aldeia dos Rapazes da Rua e A Aldeia dos Rapazes do Sul, o que pode indicar que o primeiro título atribuído a Virgínia pertença de facto à filmografia deste outro realizador. No que respeita a Três Dias sem Deus ser o último filme de Bárbara Virgínia, vários foram os projectos não realizados pela cineasta: Anto sobre a vida do poeta António Nobre; um filme para celebrar o IV Centenário de São Paulo; Aleluia! e Podia Acontecer escrito pelo dramaturgo António Cruz.
Três Dias sem Deus é uma adaptação ao cinema do livro de Gentil Marques Mundo Perdido — um escritor “medíocre” (como o qualificou José-Augusto França) acostumado a escrever biografias romantizadas de conhecidas personalidades nacionais, traduções de romances de cordel anglo-saxónicos e adaptações literárias de filmes de sucesso. O livro não se encontra depositado no arquivo da Biblioteca Nacional e todas as pesquisas que fiz em nada confirmaram a sua edição, podendo este facto ser justificado por ter sido publicado como edição de autor (o que é pouco provável dada a sua implantação no meio literário e a sua associação recorrente à editora Romano Torres, entre outras), ou não ter chegado a ser publicado (permanecendo como um manuscrito).
Por outro lado, conservam-se, na Biblioteca da Cinemateca Portuguesa — Museu do Cinema, a sequência dialogada, base de planificação (1945) da autoria de Raul Faria da Fonseca, autor da adaptação original, uma planificação do filme (visada pela censura), e uma outra planificação (anotada).
O primeiro documento é aquilo a que hoje chamamos sinopse alargada, uma série de 15 páginas separadas em três actos contando aquilo que no fundo é a história do filme. Essa história é simples, uma professora primária (Lídia) é colocada numa aldeia isoladas nas serras e no primeiro dia de aulas o médico informa-a que se terá que ausentar, com o padre, durante três dias. Esses serão os três dias sem deus do título, em que a jovem professora conhecerá o senhor do monte (Paulo Belforte) que é temido por toda a aldeia por alegadamente ter lançado fogo à igreja e por ter tentado assassinar a própria mulher. Por uma série de mal entendidos os aldeãos voltam-se contra a Lídia e Belforte, ao ponto de no final haver uma cortejo de archotes que purificariam as diabólicas ocorrências de Casal de Lobos. Mas tudo acaba em bem, e a paz é restabelecida por influência (semi-)divina.
Em relação à planificação estão disponíveis na biblioteca da Cinemateca dois documentos em papel de bíblia, organizados horizontalmente em colunas onde se explica a escala de cada plano, a sua duração, a acção que nele ocorre, o diálogo que nele se ouve, assim como referências a efeitos sonoros ou movimentos de câmara. Uma corresponde à versão da planificação que foi submetida à censura onde cada página está carimbada pelo dito orgão. A outra é uma planificação de trabalho anotada com alterações que se terão feito durante a rodagem, com mudanças de diálogos, cortes de cenas e demais alterações.
Na versão anotada há ainda várias referencias aos dias de rodagem com identificação, por exemplo, daqueles que seriam com som directo e aqueles que seriam mudos, assim como a metragem prevista da película, 2 800 metros, a duração prevista, um hora e quarenta e dois minutos e dez segundos, assim como o elenco de actores com diálogos (e no final os dias de trabalho de cada um deles, assim como o valor que iriam auferir pelo trabalho), a saber: Bárbara Virgínia (Lídia), João Perry (o pai, Paulo Belforte), Linda Rosa (Izabel), Álvaro Rocha Pires (Pedro), Alfredo Ruas (Vicente), Elvira Velez (Bernarda), Maria Clementina (Tereza), Joaquim Miranda (Tadeu), Casimiro Rodrigues (Januário), Laura Fernandes (Beatriz), António Sacramento (médico), Jorge Gentil (Padre Alberto), António Marques (João) e Manuel Mariano (Joaquim). A juntar a isto, descobrem-se ainda nesse documento alguns desenhos de plantas de décors, assim como do pormenor das janelas agrilhoadas que ladeiam a sala do piano. Outro dado relevante é a existência de uma página repleta de assinaturas de Bárbara Virgínia que, com 22 anos, certamente usou essa página para ensaiar a sua rubrica.
Um olhar sobre o fragmento conservado no ANIM permite perceber que a porção arquivada corresponde a uma série de cenas consecutivas que se iniciam com a chegada de Lídia a Casal de Lobos, na sua primeira visita, sendo aliás o primeiro plano, aquele em que Lídia é recebida pela criada que a deixa sozinha e se ausenta da sala. A sucessão de cenas das duas bobinas, nos seus 26 minutos (a primeira dividia num total de 69 planos e a segunda, mais curta, em 34), termina no momento em que Lídia vê Belforte sair do quarto misterioso com a cadeira de rodas vazia e depois de Pedro lhe aparecer choroso e ser recolhido pela criada. A mudança de bobinas dá-se depois do regresso de Lídia a Casal de Lobos após descobrir que não tem mais alunos a quem ensinar e antes do ataque de Isabel após o almoço, antes da primeira confissão de Belforte.
O dado mais significativo é que quase toda a acção descrita na sequência dialogada, base de planificação se confirma no fragmento, em particular a referência à sala escura, de linhas góticas se torna evidente pelas portas de arco bicudo, pelos corredores de várias portas, pelas escadas em caracol, pelas colunatas que ocupam ambos os pisos, pelas janelas agrilhoadas de moldura em pedra e também pela iluminação de fortes contrastes favorecida pela introdução em cena de velas, fósforos, lamparinas e outras artefactos assim como pelos vários grandes planos de rostos sob fundo negro ou de marcadas silhuetas em contraluz que olham com espanto e temor o que se passa no contra-campo. No fundo, uma manifestação de um estilo gótico, típico de uma série de filmes norte-americanos desse início da década de 1940.
Aliás, a história de Três Dias sem Deus aproxima-se, de forma quase escandalosa, à de filmes estreados poucos anos antes em Portugal como Rebecca (1940), Wuthering Heights (1939) ou Jane Eyre (1943) para citar apenas os mais evidentes. Elencar as semelhanças entre Três Dias sem Deus e a trama desses filmes (todos adaptados de romances da literatura anglo-saxónica escritos por mulheres) seria moroso. No entanto, sem querer ser exaustivo, atente-se nas seguintes coincidências: à boa maneira do romance gótico inglês, os quatro filmes possuem um castelo ou uma casa senhorial enorme, mal iluminada e arrepiante (no caso de Três Dias sem Deus é a casa da família Belforte, Casal de Lobos) sendo o piano um elemento recorrente na fabricação desse ambiente assustador (em Jane Eyre e em Três Dias sem Deus); em Rebecca, Jane Eyre e Três Dias sem Deus existem quartos interditos e em todos esses filmes o quarto corresponde à (ex-)mulher do paterfamilias (Laurence Olivier — de Rebecca e Wuthering Heights —, Orson Welles de Jane Eyre, João Perry); se num a mulher está morta (por um acidente/assassínio/suicídio – Rebecca), e noutro está insana (Jane Eyre), no filme de Bárbara Virgínia a mulher está viva mas incapaz de falar ou se locomover devido exactamente a um acidente/tentativa-de-homicídio por parte do marido (ela Isabel, ele Paulo).
Tanto em Rebecca como Wuthering Heights e Três Dias sem Deus o precipício e a queda dele é uma solução narrativa e simbólica para a falência do casamento e nos quatro o homem da casa é um ser com acessos de raiva; também se repete a figura da criada medonha (Mrs. Danvers interpretada por Judith Anderson em Rebecca e Teresa por Maria Clementina em Três Dias sem Deus), da (ex-)mulher que houvera sido uma grande figura da sociedade e em todos a protagonista é uma jovem moça inocente e idealista sobre a qual recaem apetites do senhor viúvo ou em vias do ser (Joan Fontaine — de Rebecca e Jane Eyre — e Bárbara Virgínia).
Por fim todo os filmes terminam num grande incêndio no palácio/castelo/casarão sendo que num esse fogo queima por fim a memória fantasmática e assombrosa (também no sentido de assombração) de Rebecca, noutro mata definitivamente a mulher tresloucada permitindo por fim o amor do casal (sobre)vivente (Jane Eyre) e em Três Dias sem Deus esse fogo faz renascer a mulher paralítica e comatosa, impedindo por isso a relação extraconjugal entre o senhor e a menina (a visão patriarcal e anumoa moral católica romana vigente acaba por se evidenciar, ao contrariar o cliché que o cinema de Hollywood já havia instituído). De forma mais lata também existe em todos um julgamento (ora legal ora popular) que acaba por revelar a inocência do marido (quer do assassínio, quer do embruxamento pelo demo) e também a atmosfera de segredos, mistérios e meias-verdades é uma constante nos quatro títulos.
Deste modo ficam evidentes algumas das proximidades narrativas de Três Dias sem Deus ao ciclo de filmes góticos dos anos 1940, em particular aos três filmes referidos. Assim o filme vem sendo inscrito (esporadicamente) segundo a perspectiva do cinema de género, sendo que o género em causa é o cinema gótico, o filme de suspense ou de mistério. Ao longo da história do cinema português os termos filme de género (associado ao terror ou ao suspense) quando encarando o filme de Bárbara Virgínia só surgem recentemente. Por um lado, um artigo de João Monteiro, conhecido director do festival MOTELx – Festival Internacional de Terror de Cinema de Lisboa, que traduz por escrito aquilo que o programador vem fazendo (uma revisitação da história do cinema português, em busca de objectos que à luz contemporânea revelem os formalismos que mais tarde se cristalizariam nos clichés associados ao cinema de género). Nesse artigo, intitulado História do Breve Cinema de Terror Português (2000), o programador apresenta Três Dias sem Deus como uma das três excepções do cinema de género durante o chamado “período de ouro” do cinema português [a par de O Louco (1946) de Victor Manuel e O Cerro dos Enforcados (1954)] e descreve-o como “trata[ndo]-se de uma variação do clássico Rebecca de Alfred Hitchcock. Lídia, jovem professora, vai ensinar para uma aldeia da serra onde se verificam estranhas ocorrências”.
Mas antes Manuel Cintra Ferreira — numa folha de sala dedicada a Três Dias sem Deus a propósito de um ciclo dedicado à actriz Elvira Velez na Cinemateca em 1995 — refere como “modelos” Rebecca e Wuthering Heights — descrevendo a realização como aquela que “consegue por vezes criar um clima dramático, que a iluminação, por vezes desequilibrada, reforça nalguns momentos (a primeira bobina que veremos, mostra alguns bons aproveitamentos de focos luminosos fora do plano, na tradição do filme gótico americano)”. E Cintra Ferreira termina a sua folha de sala com a ideia de que, apesar da natureza obscurecida dos fragmentos que se preservaram, “deixa-nos a sensação de que se perdeu alguém que poderia ter feito obra ‘diferente’ no cinema português”. Assim Três Dias sem Deus é visto não só como uma entrada estranha no conjunto dos filmes nacionais, como a sua própria matéria versa sobre assuntos e formas que não estabelecem ressonâncias com outros objectos fílmicos feitos à época em Portugal. Essa natureza insólita do filme é o que faz dele um dos títulos mais misteriosos do cinema português.