Ostatnia rodzina (The Last Family, 2016) de Jan P. Matuszynski abre com Zdzislaw Beksinski (Andrzej Seweryn), pintor polaco, popular pelos seus retratos de grandes dimensões de figuras despojadas em cenários apocalípticos, a confessar o desejo de possuir um programa digital que produzisse uma mutação física e intelectual em Alicia Silverstone, oferecendo-lhe alguns centímetros de altura e outros apetecíveis benefícios físicos, juntamente com um conjunto de ferramentas intelectuais. A junção dos ideais físico e intelectual instiga Beksinski a descrever pormenorizadamente um rol de excessos sexuais a que submeteria a actriz, o que nos leva a conceber um corpo humano dilacerado pela violência dos prazeres a que é sujeito. Atente-se à passagem de Beksinski pelo corredor, quando acompanha o interlocutor à porta. Ao fundo, entre a penumbra, ressaltam fragmentos de uma pintura da sua autoria, em que uma figura deformada parece escorrer sangue. No regresso à sala, Beksinski senta-se e contempla pinturas suas expostas nas paredes. Pelas pistas oferecidas antevemos The Last Family como uma deriva por traços biográficos susceptíveis de inspirarem a obra do pintor, refugiando-se numa hipotética incapacidade de emancipar a obra da vida. Não poderíamos estar mais enganados.
Estreado na secção competitiva do Festival de Locarno, onde Andrzej Seweryn merecidamente conquistou o prémio para a melhor interpretação masculina, The Last Family é a primeira incursão de Jan P. Matuszynski na longa-metragem de ficção, após realizar o documentário Deep Love (2013) e várias curtas-metragens. A opção tomada no prólogo, ao centrar a cena em torno da obra de Zdzislaw Beksinski, é rapidamente posta de lado. Muito esporadicamente acompanhamos a sua pratica artística. As pinturas estão lá, em abundante quantidade e espalhadas pela casa, mas unicamente como papel de parede. Abordando o período entre o final da década de 1970 e a última morte em 2005, o filme cristaliza-se no retrato da família de Beksinski: o pintor, a mulher, o filho e as duas avós. Família disfuncional, à sua maneira – como todas as outras -, sem esqueletos no armário, como ressalva Beksinski. O passado é apenas lembrado por uma das avós ao confundir estranhos com agentes da Gestapo, evocando as pesadas feridas da ocupação nazi.
Recorrendo a câmaras de fotografar ou filmar, a maior excentricidade de Beksinski é documentar exaustivamente os factos triviais da história da família. Nem os funerais, que com os falecimentos se tornam menos povoados, escapam à sua câmara. Por outro lado, resgatam uma certa serenidade para os que ficam, como se os organismos humanos possuíssem a mesma polaridade e a sua convivência provocasse lesões graves. Estudadas as gravações de Beksinski, Matuszynski reencenou as cenas e, através de um dispositivo documental, registou, à distância, um percurso elíptico entre micro-eventos. O mundo começa na casa de Beksinski e termina na do filho, entre blocos de apartamentos desertos em que mesmo a queda de neve, quando raramente acontece, se revela um sinal prazeroso de que a natureza ainda ali se manifesta.
Recuando na obra de Matuszynski até 2006, encontramos alguma familiaridade com uma pintura de Beksinski datada de 1984, onde um casal de figuras cadavéricas se abraça no meio de uma paisagem desolada. Na curta-metragem Razem (Together, 2006), um homem e uma mulher, a quem foi detectada uma doença incurável, apaixonam-se, suicidando-se abraçados. Matuszynski subverte a pintura de Beksinski introduzindo um plano final inesperado: num salto temporal, vemos o casal morto, separado numa cama desarrumada, em posições que sugerem inquietação. Não sabemos o que se passou mas podemos extrapolar uma luta terrível e solitária no encontro com a morte. O final de The Last Family oferece-nos o mesmo murro no estômago. Beksinski recebe a visita do filho do seu zelador. Sem aviso, o rapaz perfura o corpo do pintor com quase duas dezenas de facadas brutais. Em cada uma, o espectador parece sentir o metal a entrar na carne. Antes de ouvirmos os This Mortal Coil, com Elizabeth Fraser a cantar “Song to the Siren”, uma poça de sangue alastra pelo corredor criando a ilusão que activa a figura desfigurada da pintura da primeira cena. Por alguns momentos, The Last Family recupera alguns dos tons surrealistas e expressionistas que animam a obra de Beksinski. Mas, apesar do paralelismo, não nos deixemos iludir: o cinema de Jan P. Matuszynski é mais fascinante que a obra pictórica de Zdzislaw Beksinski.