Os primeiros dias do Lisbon & Estoril Film Festival pelas penas de Ricardo Vieira Lisboa, Miguel Patrício e Carlos Natálio.
Notfilm (2015) de Ross Lipman
Notfilm surge como um kino-essay nos créditos de abertura, e não como um filme de. Nesse sentido o que interessa a Ross Lipman é a componente didático-pedagógica do objecto audiovisual e menos as suas qualidades própriamente cinemáticas. Assim este é um objecto que se dedica a compreender, tão profundamente quanto possível, a história por detrás de Film (1965) de Samuel Beckett, a sua primeira e única incursão pelo cinema, protagonizada por Buster Keaton. O grande achado de Lipman passa pelos materiais que conseguiu agregar no seu filme, recorrendo a entrevistas de vários dos colaboradores e amigos de Beckett, a gravações anteriormente secretas das reuniões de pre-produção, entre outros materiais. O kino-ensaísta organiza um estudo exaustivo sobre o filme (analisando as mutações sucessivas do projecto desde a sua conceptualização até ao confronto técnico com a realidade do cinema feito por pessoas sem experiência), as suas origens, o modo como foi feito e as consequências desse objecto na obra dos seus participantes.
O problema de Notfilm está ironicamente no seu título, não ser um filme (mas sim um kino-essay). Lipman cria um excelente extra de DVD ou um bom documentário televisivo (aliás, esse parace ter sido o propósito, já que o filme surge com um intervalo que o separa em duas porções de 50 minutos) que trata de contextualizar, explicar, esclarecer, analisar mas que raramente se pensa a si mesmo como cinema. Nos primeiros minutos de filmes sentia-se que não seria esse o propósito do objecto audiovisual: a narração de Lipman começava por reflectir sobre os filmes auto-reflexivos (e sobre a arte ter que ser sobre a vida e não sobre a própria arte) e logo depois prosseguia com o traçar na história do cinema de objectos meta-cinematográficos seminais. Esse bom princípio já continha em si a limitação do escopo analítico, Vertov, os primeiros Chaplin e alguns Keaton são os exemplos dados (e que constam de qualquer sebenta oleosa) e depois esquece-se esses devaneios ensaísticos para uma historiografia competente mas anódina. Notfilm é um objecto valioso do ponto de vista do conteúdo mas constitui duas horas de objecto audiovisual sofrível.
Ricardo Vieira Lisboa
Bacalaureat (O Exame, 2016) de Cristian Mungiu
A afirmação que se segue faz pouco, ou mesmo nenhum sentido: Bacalaureat é o anti-The Dreamers (Os Sonhadores, 2003) de Bernardo Bertolucci. Onde era a pedra que irrompia pela janela no final de The Dreamers (atirada do processo-de-Maio-de-1968-em-curso) a salvação dos três jovens à beira da morte, no filme de Cristian Mungiu tudo começa por uma pedra atirada por uma janela. Só que aqui não se sabe da origem do pedregulho, e a revolução não se passa lá fora (muito pelo contrário) e a acontecer sê-lo-á apenas no interior do apartamento atingido e na família que lá se encerra. Esta pedra que irrompe pela casa vem destabilizar a frágil estrutura familiar e portanto consubstancia a expressão quem não tenha telhados de vidro que atire a primeira pedra. Só que os telhados de vidro do pater-famílias são muitos e o calhau não tem moral nem clemência e tudo faz despencar no chão. Mas se assim é, o mais extraordinário é perceber que depois de tudo se estatelar Mungiu filma a continuação nas ruinas emocionais daquela gente com um sorriso que faz por esquecer os vidros partidos que lhes cortam os pés descalços. Um sorriso papalvo de selfie.
Mas se parece que escrevo aforismos misteriosos, explico-me. O novo filme de Cristian Mungiu — que estreou nas salas portuguesas 4 luni, 3 sãptãmâni si 2 zile (4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, 2007) e Dupa dealuri (Para Lá das Colinas, 2012) — elabora uma reflexão sobre a Roménia contemporânea sofrendo as sequelas do comunismo de Ceausescu. Assim o tráfico de influências, as cunhas, os sobornos, as amizades politicamente incestuosas e que mais emanências de um sociedade corrupta manifestam-se no exame de secundário de uma menina adolescente (e para o qual tem que obter muito boas notas para poder ficar com uma bolsa que a possibilitará estudar no estrangeiro). O paradoxo que Mungiu explora é particularmente certeiro: o pai quer que a filha vá estudar para fora de modo a poder tirá-la de um país que não tem futuro e no qual a ideia de ascensão social pelo mérito é uma utopia, só que para tal esse mesmo pai vê-se envolvido no mesmo meio lamacento que desdenha, e mais que isso, leva a filha a sujar-se nos mesmos terrenos. Como se a única saída da fossa séptica se fizesse pela submersão total. Se a merda sempre vem ao de cima faz sentido que se mergulhe bem fundo.
Ricardo Vieira Lisboa
American Honey (2016) de Andrea Arnold
Mais para o final de Fish Tank (2009) há uma cena em que a protagonista, antes de sair de casa da mãe, dança com a irmã e a progenitora ao som de uma televisão sintonizada na MTV, momento de singular beleza. Ali, naquele momento, toda a incomunicabilidade daquela família, as invejas, os desejos concorrentes, dissolvem-se numa graça de verdadeira compreensão. E depois há uma chapada no meio da noite para nos acordar para a destruição que aquela miúda podia ter feito; e aquele miúdo que, depois de servir de fantoche, passa a ser a única saída sincera para uma vida feliz. As pontes entre Fish Tank e o novo filme de Andrea Arnold são mais que muitas, de novo uma protagonista adolescente, de novo um triângulo amoroso que liga essa rapariga e o namorado da mãe/figura maternal (num filme simbolizado por um cavalo branco acorrentado e aqui no corpo de um urso selvagem), o recurso à música popular como mecanismo de activação e propulsão narrativa, a mesma câmara à procura de um realismo lírico e de uma geração sem futuro, as mesmas imagens encharcadas de simbolismos e a mesma atenção à natureza e à sua emersão diegética.
O problema com American Honey é que o realismo britânico do cinema de Arnold verte-se agora, na passagem do Atlântico, em indie americano com consciência social. Nesse sentido, a paisagem e as pessoas que a realizadora tenta filmar com as marcas da sua autoria (elencadas em cima) surgem agora bafientas pela exaustiva exploração desses mesmo ambientes pelo cinema norte-americano. Sentimos nos jovens que percorrem os estados do sul, vendendo revistas num esquema aparentemente trapaceiro, ao som de Rihanna um efeito de mimésis com algum do cinema de Harmony Korine e a plongés poéticos sobre os insectos (assim como as copas da árvores e mesmo os bairros pobres) remetem para os (últimos) filmes de Terrence Malick. A aliar a isto, tudo parece tintado por uma estética instagram cujo poder irritativo, confesso-o, vai esmorecendo com o envolvimento emocional em torno do casal protagonista (interpretados pelos iluminados Sasha Lane e Shia LaBeouf). Uma forma curiosa de pensar em American Honey é como uma versão de The Wizard of Oz (1939) — citado directamente — que desemboca num Bonnie and Clyde (1967) desiludido com o amor (e com a morte) através de um realismo social de videoclip. Ou como a imagem que encima estas linhas resume: um cão vestido de super-homem que mija em cima da capa.
Ricardo Vieira Lisboa
Bangkok Nites (2016) de Katsuya Tomita
Saudâji (Saudade, 2011) tinha já consagrado Katsuya Tomita como o cineasta dos expatriados, alguém que cristalizava na geração de emigrantes ou dos seus filhos (brasileiros, filipinos, tailandeses, etc.), uma desconexão fundamental com o Japão unicultural onde o ditado “em Roma, sê Romano” se aplica como nenhum outro país. Contrariamente, neste Bangkok Nites (2016), Tomita, no papel de realizador, produtor e actor principal força agora a sua própria expatriação, voando para várias zonas da Tailândia e Laos para dissecar, com os olhos caleidoscópicos de observador, uma nova, mais secreta e consentida forma de colonialismo. Bangkok Nites pode ter uma duração homérica mas a única epopeia que os nossos olhos enxergam é íntima; o único heroísmo possível é o da resignação face ao quotidiano povoado por japoneses sem terra, carnalidades várias, drogas irrestritas, muita melancolia e música pop. Tomita, portanto, começa por filmar ostensivamente uma cidade sem nativos – em que, nem mesmo as mulheres da noite o são – , pestilenta – é o que, logo no primeiro plano, diz Luck, a prostituta que sabe falar três línguas, quando vê a imagem paradoxal da sua silhueta reflectida num vidro que duplica os néons dos prédios – e cuja habit(u)ação não consegue dispensar fugas temporárias. Na verdade, Bangkok Nites é, para o seu realizador, um filme de êxodos dentro do êxodo, já que o primeiro sufoco da capital do turismo do sexo é interrompido por uma visita às profundezas rurais. Eis que a claustrofobia dos quartos, dos clubes nocturnos e das montras humanas dá lugar a um road movie contagiado pela ambiência mágica e virginal da Tailândia selvagem. A dicotomia campo/cidade, porém, não traz consigo a emergência de uma mulher angelical, contraposta à mulher fatal da urbe. Luck é sempre a mesma independentemente da mudança drástica não só de paisagem, como também de estética cinematográfica. Com efeito, nesses momentos de relaxamento dormente com o antigo amante Ozawa (Tomita) por vezes há uma espécie de apichatponguização que julgo pouco justa para os esforços do próprio Tomita, que se põe a jeito, sobretudo numa cena em que espectros de antigos guerrilheiros comunistas se escondem na selva impenetrável, para ser acusado de apropriações indevidas e citações que não convivem muito bem com o resto do seu universo.
“Paraíso” é, em várias línguas, a palavra mais pronunciada em Bangkok Nites, mas o regresso à capital não podia ser outra coisa que uma catábase orféica, só que sem Eurídices para redimir ou resgatar. É verdade que os planos de Tomita induzem a uma certa distanciação observacional, pouco propícia a julgamentos e muito contida naquilo que mostra (num filme de três horas sobre turismo sexual, a nudez é relegada para fora de campo), porém, sempre nas entrelinhas, o expatriado japonês Ozawa (e nós com ele) vai desenvolvendo um olhar de desprezo perante os seus conterrâneos que se entusiasmam em corromper a suposta “pureza” das mulheres do Terceiro Mundo. No entanto, não há espaço na tela para justiças poéticas nem para actos de violência que justifiquem ou dêem voz à revolta. No limite, o que se passa após a cena da compra da pistola é o anti-clímax mais apropriado para um filme que não termina quando as câmaras deixam de filmar. Nós, como Tomita, apenas podemos ser testemunhas da miséria.
Miguel Patrício
Elle (Ela, 2016) de Paul Verhoeven
Raccord perfeito para a “pós-carreira” de Verhoeven uma vez feita a aclamação do cineasta enquanto autor: primeiro filme em França, produção do franco-tunisino Saïd Ben Saïd (responsável pelos últimas obras de Philippe Garrell, Kléber Mendonça Filho, Cronenberg) e estrela francesa, Isabelle Huppert. Adaptando o romance “Oh…” de Philippe Djian, o cineasta holandês prossegue com a sua investigação da real natureza da sexualidade, tendo como veículo mais uma das suas destemidas guerreiras. Isabelle é uma mulher de negócios de sucesso (tem uma empresa de criação de videojogos) que, numa ocasião após ser violada por um desconhecido, acaba por procurar saber mais informação sobre o seu “forçado amante”. Ofenderia certamente os defensores dos direitos das mulheres dizer que Elle (Ela, 2016) é um thriller erótico em torno da violação; inversamente, seria ir longe demais achar que estamos aqui no puro drama da mulher ofendida. Em todo o caso, o que interessa a Verhoeven é filmar a sexualidade como algo que está longe de ser drama e que não se basta com (embora não prescinda dele) o frisson da violência e da submissão. Assim, mais do que os corpos de Sharon Stone e Michael Douglas a balançar entre o amor e o sexo de Basic Instinct (Instinto Fatal (1992) ou o o sexo desabrido e natural de Turks Fruit (Delícias Turcas, 1973) , sua primeira longa-metragem feita na Holanda, Elle parece a expansão de uma cena do menos conhecido Flesh+Blood (Amor e Sangue, 1985), filme de época passado na transição da Idade Média à Renascença. Nesta cena Rutger Hauer viola Jennifer Jason Leigh, quando descobre, para muito espanto seu, que afinal é o contrário: ela viola-o a ele.
O rosto de Huppert é uma fortaleza. Ele fecha todas as emoções e depois são os encenadores, realizadores, que se divertem a abrir a caixa de pandora. Já tinha acontecido, por exemplo, quando no teatro fez “4.48 Psychosis” de Sarah Kane, ou quando se mutilava em La Pianiste (A Pianista, 2001) de Michael Haneke. Aqui, quando toda a gente está interessada na “jogabilidade” do sexo (o ex-marido, o amante oficial, a mãe e o seu puppet sexual, e um dos empregados da empresa), Huppert apenas se preocupa com a verosimilhança da convulsão orgásmica. Para tal não há domesticação/consentimento possível para o prazer, numa rede onde todos os homens têm a sua pulsão (e daí o renoirismo do filme, desde logo assumido pelo autor) e onde Huppert os dispõe num imaginário eventualmente romântico que vai desde o ideal ao fatal [e daqui a influência de 8½ (Fellini 8 ½, 1963)], também declarada. Mas esqueçam tudo isto porque afinal Elle é filha de um psicopata (de dois, um sem aspas e outro com, o pai da personagem e o autor): como se Huppert encarnasse Janet Leigh e tivesse sobrevivido ao chuveiro com Anthony Perkins, ou à violação, dois anos antes, em Touch of Evil (A Sede do Mal, 1958). Depois disto e para uma sobrevivente já só o prazer vale.
Carlos Natálio
Certain Women (2016) de Kelly Reichardt
Há dois traços comuns no cinema de Reichardt: 1) o sentimento de uma certa melancolia associada a um relação especial das seus personagens com a natureza (a maior parte das vezes filmadas em longos e suaves planos pelas paisagens naturais do Estado de Oregon); 2) a importância dada aos pequenos grandes momentos do quotidiano, sem heróis aguerridos ou acções estridentes. Nos seus últimos dois filmes, Meek’s Cutoff (O Atalho, 2010) e Night Moves (2013), unidos entre outras coisas pelo tema da água (num convertido em busca física e metafísica, no outro o espaço que “aprisiona” a água, a barragem, é o que tem de ser derrubado), Kelly tenta o western e o ligeiro thriller ambiental como casas possíveis e agregadoras para estas suas preocupações.
Mas a suavidade da cineasta deixa-se conter mal por espartilhos. Assim, Certain Women, retoma, num total sentido de liberdade e comunhão com o espaço, as deambulações de Wendy and Lucy (Wendy & Lucy, 2008) e de Will Oldham e Daniel Londan em Old Joy (2006). Essa liberdade implica que as personagens principais das três histórias que Kelly filma se cruzem mas sem que se sublinhe a necessidade da rima própria de uma “poética do acaso”. Não. Esse encontro faz parte de uma mesma cadência da vida que se recusa a hierarquizar acontecimentos. Não por acaso os carros desempenham papel de ligação entre as personagens, como se toda a realidade não pudesse deixar de ser ela própria um road movie onde as coisas se encontram, sem acidentes aparatosos. Estas “algumas mulheres” são como esses contos de Maile Meloy, a partir do qual a realizadora escreveu o argumento: um acidente de trabalho que dá azo a um acto de desespero; um monumento ao quotidiano que se constrói de pedra; ou um acidente em plena planície (onde não há contra o que chocar) e uma hipótese de amor por concretizar. Tudo a fazer sentido num 16 mm granulado e apaziguador, num cinema instalado no tempo que passa, sem sobressalto. Uma “vida sem drama” onde apenas flui o drama da própria vida. Soberbo.
Carlos Natálio