A terceira e última parte desta tresloucada cobertura do Lisbon & Estoril Film Festival. As duas outras podem ler-se, com as devidas ressalvas de insanidade, aqui e aqui.
Fuchi ni tatsu (Harmonium, 2016) de Koji Fukada
Se queres filmar o Japão, filma as suas famílias. Koji Fukada é um dos vários cineastas que segue este mantra à risca desde Hospitalité (2010), uma comédia ácida sobre as fronteiras da intimidade no espaço caseiro e de como a formalidade extrema nos afectos dá azo aos piores e mais hilariantes mal-entendidos. Fuchi ni tatsu (2016), que é uma espécie de (in)versão angustiada dessa primeira longa-metragem, também se inscreve nas cinematografias desconstrutivas da família nipónica a partir de um agente ou presença externa. Desde Teorema (Teorema, 1968) de Pier Paolo Pasolini que a fórmula foi sendo aplicada ao contexto japonês, deixando cair as implicações metafóricas e subversivas da figura crística do visitante, mantendo, porém, a acepção que só através da violência ou da libertação sexual, introduzida pelo convidado improvável, se quebraria a ordem inviolável do lar, se confundiriam todos os papeis e, portanto, ficaria aberto o caminho para uma epifania interior. Sem querer inundar este pequeno texto de referências, Kazoku gêmu (Family Game, 1983) de Yoshimitsu Morita, Bijitâ Q (Visitor Q, 2001) de Takashi Miike, inclusive Tokyo Sonata (Sonata de Tóquio, 2008) de Kiyoshi Kurosawa são alguns casos paradigmáticos deste sub-género dentro do género mais amplo do filme sobre a família.
Na primeira parte de Fuchi ni tatsu, o espaço doméstico manifesta progressivamente a incomunicabilidade. Os enquadramentos de perfil que aí imperam (a sepulcral mesa de jantar, a barreira física entre oficina e casa) dividem uma família que deixou de comunicar para meramente expelir palavras de ordem ou de circunstância que entrecortam os silêncios vazios de nada ter para dizer. Yasaka, o homem vestido de branco, imiscui-se nesse lar sagradamente monótono que nos primeiros planos se assemelha a uma igreja minúscula com o som inquietante do harmónio e da janela em vitral para chantagear o patriarca e, ao mesmo tempo, seduzir a matriarca, ressuscitando a sua compaixão protestante e feminilidade através do poder esquecido da palavra. A despeito do passado negro do visitante, até mesmo a camisa branca e o seu aspecto imaculado fazem lembrar um emissário dos céus, o redentor que destruirá as relações falsas e mortificadas da família burguesa e restituirá a sua dimensão espiritual. Porém, ao contrário de Teorema e de todos os outros filmes mencionados acima, o acto extremo de agressão e agitamento nunca transcende o trauma. O fato branco tinta-se de vermelho num acto confuso de vingança, os anos passam, e, durante toda a segunda parte, Fuchi ni tatsu ziguezagueia entre um filme de fantasmas a monte e mortos-vivos com sede de expiação, filmados com uma câmara mais irrequieta que prefere a frontalidade das emoções à geometria da lateralidade. No fundo, Fukada subverte a própria subversão do género e, numa volta de 360º graus, volta ao mesmo sitio onde a tradição começou. Este filme cruel e pessimista, mas não necessariamente gratuito, conta, afinal, a estória de uma família que, nem mesmo na ocorrência de uma tragédia, se consegue reinventar. Será este o retrato de um modelo afectivo tão desgastado que pouco ou nada representa na contemporaneidade?
Miguel Patrício
Little Men (Homenzinhos, 2016) de Ira Sachs
O penúltimo filme de Ira Sachs, Love is Strange (O Amor é uma Coisa Estranha, 2014) estreado em Portugal este ano (dois anos depois, portanto), acompanhava a história de dois homossexuais (Alfred Molina e John Lithgow) que, após quarenta anos de vida em comum decidiam oficializar o seu casamento. Contudo, o despedimento de um implicava que tivessem de abandonar a morada de família, até poderem pagar novamente uma casa para ambos. Ora, Little Men, que inverte o título do romance de Louisa May Alcott (Little Women), parece querer continuar o universo do filme anterior. Neste, Lithgow ia para casa do sobrinho, separando-se do seu amor, e acabava como “avô” de serviço, a pintar para passar o tempo e a perturbar as rotinas familiares do seu novo lar. Estabelecia uma relação entre a figura sábio e o empecilho com o filho do seu sobrinho e um amigo, personagens que entretanto se tornaram os protagonistas deste “Homenzinhos”.
E o tema mantém-se: em Love is Strange a crise económica afectava o amor; em Little Men a amizade é também perturbada pelas questões imobiliárias e do dinheiro. Jake morre-lhe o avô (não custa imaginar este início em raccord com o fim do filme anterior) e muda-se para uma casa deixada por este. Junto à casa trabalha, numa loja que era também pertença do falecido avô, uma senhora latina e o seu filho, Tony. Os dois rapazes vão tornar-se melhores amigos, os pais vão desentender-se. O mais incrível deste comovente filme é a maneira como a forma espelha o seu conteúdo. A amizade dos dois é livre, são os travellings contínuos em que andam de skate pelas ruas, em que vão para a escola. O travão dessa amizade são as casas, espaços de imobilidade, mas também de uma transformação social. As casas mudam o preço, mudam os inquilinos e ameaçam terminar o movimento que se faz lá fora, além paredes, entre desiguais. Entre o que prende e o que liberta está o espaço intermédio do crescimento, parece dizer-nos Ira Sachs. Mas o espectador, esse, liberta-se, emociona-se, desde os primeiros momentos.
Carlos Natálio
Nocturama (2016) de Bertrand Bonello
Um ano após os atentados terroristas no Bataclan e em outros locais em Paris, o filme de Bertand Bonello tem um cheirinho a redenção e sobretudo um consciente lado de comentário político. A tese é simples e vincada: e se atentados terroristas fossem praticados por jovens franceses com uma taxa de ennui muito elevada e um enorme grau de frustração motivado pelas facilidades e desigualdades do sistema capitalista? Se este “e se” é bastante aprisionante para o espectador, o mesmo se passa com as decisões formais de Bonello. A primeira metade do filme é um percurso labirintico por escadas de metro, corredores, portas de edifícios, um plano coreografado, revestido de heist movie ao qual nem falta a mostragem no ecrã das horas que vão passando a conta gotas. Já o pós-golpe, na segunda metade do filme, é um huis-clos dos jovens fechados numa loja de múltiplos andares, a esperar pela manhã (pela morte?) e por uma hipótese de fuga.
Aqui Bonello é tão claro como fora atrás: como se as personagens de El Ángel Exterminador (O Anjo Exterminador, 1962) de Buñuel não saíssem do seu “abrigo” entretidas a brincar com aquilo contra o qual querem agir. Armas, cognac, vestidos de noiva, carrinhos, playstations, telemóveis, manequins, sistemas de som, tudo serve a brincadeira aborrecida e indigente, tal como o filme é ele próprio um brinquedo para explicar as contradições dos discursos terroristas e a arbitrariedade da separação entre terroristas e os “inimigos do estado” (como são tratados estas “crianças revolucionárias” pelas autoridades). Splits screens, câmaras deambuladoras, sms, Godard revolucionário, estátuas a arder, ecrãs de computador, videoclipes integrais em playback, são algumas das brincadeiras ao dispor de uma realização, como no mundo dos seus personagens, em modo de dispendio de energia. E no final uma montra é uma jaula. Ou será o contrário? Não interessa. Pede-se ajuda. Quem a dá?
Carlos Natálio
Nocturnal Animals (Animais Nocturnos, 2016) de Tom Ford
O segundo filme do estilista barra realizador Tom Ford, depois de A Single Man (Um Homem Simples, 2009), abre com umas senhoras nuas, muito gordas, a agitar as banhas em slow motion. Perante tal imagem-ilha de poder visual instala-se desde cedo a dúvida: show ou bizarria amestrada? Estas imagens correspondem narrativamente a uma das criações da protagonista, a artista contemporânea, Susan (Amy Adams, a ruiva principal num filme onde tudo tem a qualidade do vermelho glamour, mesmo o sangue é glamoroso), que recebe do ex-marido (Jake Gyllenhaal, escritor em modo sensível) um romance prestes a publicar com o título Nocturnal Animals (Animais Nocturnos, 2016). O livro esconde um thriller de violação no Texas (no qual Jake tem o seu segundo papel, o de homem desesperado) e fará a protagonista recordar e reavaliar o seu passado, nomeadamente a forma como trocou o ex-marido pelo actual engatatão.
Tal como acontecia com Colin Firth no filme de 2009, também aqui se revela o tema predilecto de Tom Ford: o do poder de sucção do passado, a incapacidade de sair dele. Mas gostava de voltar à questão das gordas por um motivo. Se ela tem uma justificação (ainda que frágil) no universo narrativo (é um índice do maravilhoso e horripilante mundo dos óculos de massa, bebidas extravagantes e poder, na actual high art novaiorquina), ainda mais o tem como prova de um gosto pela criação estilística, pela composição da imagem bela ou provocadora. Tal faz com que a adaptação do romance de Austin Wright, juntamente com o uso pesado da música de Abel Korzeniowski, submeta o filme a uma rigidez de pensamento: a literatura, e com ela o thriller, funciona como uma antecâmara, um eco distorcido do cinema, e com ele do drama. Tudo se submete, ditatorialmente (elipses, representação, montagem), a esta ideia de paralelismo, sob pena de cada mundo não ter a espessura suficiente além do que se quer provar. Dito isto, Michael Shannon, enquanto xerife do interior americano, canceroso [numa personagem dos já longínquos universos de Blood Simple (1984) dos irmãos Coen], ergue-se como única substância viva além do traço comparativo.
Carlos Natálio
Rester Vertical (Na Vertical, 2016) de Alain Guiraudie
Em jeito de compensação pelo acidente de 2013, em que L’Inconnu du lac (O Desconhecido do Lago, 2013) foi remetido para a secção “Un Certain Regard”, Cannes 2016 elevou Rester vertical (2016) à competição oficial. Se a escolha prestigiou ou não a competição é uma questão irrelevante e independente da qualidade do filme pois, na história do festival, abundam exemplos de cinema anódino seleccionado para esta secção. Chega agora a Portugal, já com o logótipo da Alambique, devidamente legendado e pronto a estrear-se. A avaliar pela quantidade de público, sorrisos envergonhados e exclamações de espanto, na sessão de sexta-feira à noite do Cinema Nimas, o universo singular de Alain Guiraudie ainda não conquistou em Portugal uma base sustentável de fãs ou o Leffest não encontrou forma de os filmes chegarem ao seu público potencial. Ainda assim, não se pode concluir que a resposta do público tenha sido semelhante para outros filmes do festival, pois mesmo um quase desconhecido Katsuya Tomita teve uma sala bem composta para assistir às três horas de duração de Bangkok Nites (2016).
Rester vertical convoca as habituais personagens em fuga ou em movimento, neste caso, Leo (Damien Bonnard) em busca de lobos no sul de França, apaixonado por uma pastora, com a qual tem um filho. O refreamento do thriller de L’Inconnu du lac dá lugar à peregrinação introspectiva de Rester vertical. Ao longo de um campo aberto que lembra Du soleil pour les gueux (2001), invocando a imensidão das paisagens naturais do western, Leo transforma-se num pai foragido por ter cometido o pecado de usar o sexo para ajudar um velho a morrer. É o cinema de Guiraudie a contornar o vício de que sofre muita produção que aborda a homossexualidade masculina: a obsessão pelo corpo jovem e belo. Em Guiraudie, não só é vulgar a intimidade entre homens de diferentes idades e corpos obesos, como é transversal à classe e à profissão. De resto, o “suicídio assistido”, com o fundo sonoro de “Away” dos Wall of Dead, afirma-se como candidato ao prémio de melhor cena do ano, a concorrer com o gato a olhar para a violada/violadora Isabelle Huppert esparramada no chão, em Elle (2016) de Paul Verhoeven, e a chuva dourada do careto, de O Ornitólogo (2016) de João Pedro Rodrigues.
Carlos Alberto Carrilho