Já há vários anos que Werner Herzog passou a ser uma das mais fascinantes personagens de toda a história do cinema. E não falo apenas do conteúdo dos seus filmes mas de todo o género de historietas que lhes subjazem e que, retratando um modo de fazer cinema, vão desde a célebre ingestão de sapatos, ao lançamento de si próprio para cactos gigantes, coloração de ratos em água a ferver ou filmagens ilegais no meio da China rural. E não têm fim os divertimentos… Se essas anedotas farão certamente a delícia dos seus netinhos em noites de fogueira e acampamento, rapidamente este percebeu que a sua persona, imutável e frontal, rivalizava em popularidade com as suas obras. Por isso, nos últimos anos em que mudou de selva, do Perú para a selva da celebrity culture norte-americana, este tem sido “vendido” como o sábio louco alemão que tudo pode dizer, que as pessoas o ouvirão como se tratasse de um misto de espectáculo stand up e de lecture universitária.
Parte das suas últimas intervenções públicas incluem o fascínio por um videoclipe do Kanye West, as declarações de que a “sua rede social é a sua mesa da cozinha”, ou que não tem telemóvel e que fez a primeira chamada aos 17 anos. Entretanto no cinema, Herzog é uma metamorfose ambulante que ora dá aulas sobre “guerrilla filmmaking” e a arte de abrir portas com uma gazua na sua Rogue Film School, ora faz pastelões no deserto com Nicole Kidman ao estilo mais anónimo, ora aparece ainda encarnando vilões ao lado de Tom Cruise. E de todos estes “confrontos” de cariz um tanto burlesco Herzog parece sair impassível, dando a sensação que mais rapidamente ele corrompe a cultura pop americana do que o seu inverso. Independentemente de qual das partes sai por cima toda a gente quer assistir as estes aparentes duelos.
Quando o alemão anunciou que ia fazer um documentário sobre a internet e o futuro da tecnologia digital o espectador cinéfilo, sorrindo, terá logo antecipado as tiradas ácidas e irónicas com que Herzog iria “destruir” os entusiastas desse “admirável mundo novo”. Contudo, engane-se quem pensar que Lo and Behold, Reveries of the Connected World (Eis o Admirável Mundo em Rede, 2016) se configura como um ataque à tecnologia. Estruturado em 10 capítulos, o filme afirma-se como uma espécie de manual de introdução ao estudo das tecnologias digitais por alguém cuja curiosidade é movida por um misto de fascínio e de receio. Muito poucos temas parecem ficar de fora: o surgimento da internet, a adição à mesma com visita a um centro de reabilitação, a invisibilidade das cyber wars, a aura mítica e a importância da cultura hacker, o advento da inteligência artificial, as questões de invasão de privacidade, a hipótese do colapso súbito das tecnologias digitais e com elas de declínio da civilização, é só escolher.
A abrir Lo and Behold Herzog filma o cientista Leonard Kleinrock, da Universidade da California, explicando, ao som da abertura da ópera “O Ouro do Reno” de Wagner, que a primeira palavra trocada entre computadores, em 1969, era suposto ser log (como em log in) mas porque um dos computadores parou, ficámos apenas com a palavrinha inicial da internet: lo, como na expressão “lo and behold”. O filme arranca assim sob o signo da surpresa e veneração ante o novo, para lentamente entrar num esquema de percurso guiado pela voz hipnotizadora de Herzog que, sempre em off, vai inquirindo os seus entrevistados e dando ao filme aquilo que ele necessita: uma massa que cimente estes pequenos ensaios, ligados apenas pela curiosidade meio patusca do cineasta.
Num dos capítulos finais discute-se uma evolução natural da “internet das coisas” no sentido de omnipresença da presença da internet e sua consequente invisibilização. O conceito para esta nova e emergente etapa, “internet of me”, confere um poder quase mágico ao utilizador de personalização da tecnologia, onde toda uma rede de máquinas e objectos à nossa volta obedecerá ao nosso comando através do toque e da voz, potenciando assim uma radical transformação nas nossas noções de ego e de colaboração. Fazendo um paralelismo, pode dizer-se que em Lo and Behold, projecto produzido por uma empresa do ramo tecnológico, esse poder de controlo dos segmentos é guiado ou “activado” precisamente pela voz e curiosidades de Herzog. É com ela que vamos conhecendo robots futebolistas, monges que tweetam, carros que se guiam ou máquinas que nos vão buscar um copo de sumo. Talvez por isso, e apesar da muita informação que Lo contém, a curiosidade ante o futuro se encolha ante a perspectiva aliciante de continuar a acompanhar a saga de Herzog pelo mundo, seja caminhando sobre o gelo da Antárctica, a areia do deserto do Sahara, o fogo de um vulcão activo [vide o seu outro documentário deste ano, produzido para a Netflix, Into the Inferno (2016)], ou até por outros planetas onde, claro, haverá wi-fi.
Esta sessão é prefaciada por uma das curtas-metragens que o prolífico Gabriel Abrantes concluiu este ano. Realizado em colaboração com Francisco Cipriano, Uma Breve História da Princesa X (2016) é um filme e um comentário audio ao próprio filme (ao estilo extra de DVD) num só. O objecto da ironia do comentário off de Abrantes é a recriação da curiosa história da obra “Princess X”, do escultor romeno Constantin Brâncuși, que era suposto retratar a neta de Napoleão, Marie Bonaparte (Joana Barrios), pioneira na descoberta das causas da frigidez feminina, mas acabou por, ironicamente, resultar num “pénis de bronze”. A ironia, pode dizer-se herzoguiana, da curta-metragem permite juntar numa só sessão o pupilo ao mestre, depois de em Freud Und Friends (2015) a relação se ter tornado explícita por via da caricatura mordaz.