Recordo-me bem da primeira vez em que a minha retina titubeante e adolescente se fixou na figura encantadora de Mariko Okada. Quando, em 2006, decidi ver todos os filmes de Yasujiro Ozu a partir de Banshun (Primavera Tardia, 1949) até Sanma no aji (O Gosto do Saké, 1962), respeitando a ordem cronológica com preceitos (e preconceitos) de cinéfilo em formação, tropecei inequivocamente numa actriz que parecia inquietar o edifício formal de representação ozuniana sem, no entanto, nunca chegar a desabá-lo.[1] Refiro-me, certamente, a Akibiyori (O Fim do Outono, 1960), ante-penúltima película do cineasta na Shochiku e a primeira (de duas) com Okada.
Akibiyori (O Fim do Outono, 1960) de Yasujiro Ozu
Se a minha percepção corria o risco de se fundir com o mundo visto pela objectiva de Ozu ao ponto de julgar não lhe conhecer segredos, com certeza devido aos repetidos e obsessivos visionamentos da sua obra tardia numa altura em que lhe consagrava uma mini-retrospectiva pessoal, a presença de Mariko Okada nesse filme era em tudo desconcertante. Não sendo uma das personagens principais, Yuriko aos poucos monopolizava as atenções fazendo a minha mente vaguear e perguntar pelo seu paradeiro enquanto estava fora de plano. Sem grande consciência, ansiava secretamente por mais screen time seu enquanto, lá ao longe, parecia desenrolar-se uma espécie de variação de Banshun a cores: Setsuko Hara, que nesse filme encarnava uma filha relutante em casar e abandonar o pai viúvo, era em Akibiyori a mãe que tinha também de recorrer a uma artimanha perdoável, cogitada por três velhos amigos, para poder convencer a filha (Yoko Tsukasa) a seguir com a sua vida e contrair o matrimónio desejado. Podemos dizer que a Yuriko, interpretada por Mariko Okada, transmitia uma aura qualquer de mulher japonesa emancipada, já que a víamos frequentemente a trabalhar num escritório junto da protagonista, sua melhor amiga ainda solteira, e durante todo o filme, não só conseguia estar de igual para igual com os homens, conservando a sua feminilidade (ver a cena do mahjong ou a conversa genial com os três “casamenteiros”), como parecia esquivar-se do destino simultaneamente melancólico e reluzente de quase todas as jovens mulheres na obra de Ozu: ou vão-se casar, ou estão casadas ou foram casadas.
Talvez fossem a independência e o desapego pelas normas sociais mais rígidas as particularidades que possibilitavam a ocupação progressiva de Yuriko de cada vez mais tempo dramático a partir da segunda metade do filme, interpelando todas as personagens principais (incluindo a mãe na cena final, tipicamente ozuniana, de “abandono pacífico” ou, ainda, a discórdia entre as duas melhores amigas em relação ao novo – e falso – casamento da matriarca viúva) como se ela desempenhasse a função de um coro, imerso na diegese ma non troppo. É, aliás, este desdobramento, esta perda de foco, a marca essencial da diferenciação entre Banshun e Akibiyori. Se o primeiro assumia o conflito principalmente a partir dos olhos da filha (essa primeira Noriko[2] continua a ser a personagem mais coesa que Ozu jamais filmou), o remake optava por introduzir e induzir ao jogo dos intérpretes (dos matchmakers), jogo presente nas tentativas sucessivas de outros intervenientes casarem a protagonista[3] e, diria eu, no carácter de espectadora activa de Yuriko ou, se quisermos, da descoberta de uma protagonista alternativa, mais subterrânea e capaz de se casar, não com nenhum pretendente, mas com o olhar do público. A concentração centrípeta de Banshun era, deste modo, substituída pela pulverização centrífuga de Akibiyori e não seria exagerado considerar o meu fascínio por Mariko Okada confirmado, de alguma maneira, nos planos rígidos e inquebráveis da câmara de Ozu, capazes de colocá-la no coração de algumas cenas e também conferir-lhe uma imagem do feminino não muito usual na sua filmografia. Com efeito, Okada / Yuriko é mais misteriosamente bela quando os seus lábios não vão de uma ponta à outra do rosto e os seus olhos, extremamente expressivos e arregalados para uma japonesa, esboçam a silhueta de uma amêndoa perfeita em queda. Há uma espécie de perícia no amuo natural e por default das feições da actriz, ao ponto de, no imaginário pernicioso de um qualquer espectador apaixonado, ele se julgar capaz de ouvir, de bom grado e sem quaisquer reservas, longos e longos monólogos dessa mulher queixando-se de qualquer evento doméstico ou quotidiano, apenas para contemplar, nem que seja por uma vez mais, aquela expressividade tão rara, tão equilibrada e descaída, de alguém desavindo com o mundo.
Um dos momentos mais apaixonantes de Mariko Okada em Akibiyori acontece, justamente, quando Yuriko e Ayako (veja-se como os esgares de Yoko Tsukasa são tão diferentes dos de Okada nessa conversa e ao longo do filme[4]) fazem um intervalo sem avisar os superiores, dirigindo-se ao telhado do edifício onde trabalham para ver, ao longe, uma amiga recém-casada passando de comboio. O entusiasmo rapidamente transforma-se em languidez quando Yuriko se questiona sobre o valor da amizade no momento em que o casamento parece equivaler à morte das relações sociais, fora do egoísmo a dois do casal. O contraste entre a neutralidade de Ayako e o beicinho de Yuriko montam um campo/contra-campo eminentemente visual sobre dois tipos de postura e beleza feminina: uma busca o seu encanto na finura, na impassibilidade e na discrição, outra no descontentamento e na contestação silenciosa das coisas em seu redor. Quando as duas amigas findam a conversa (Yuriko ergue o seu braço como se esmurrasse o ar), um momento silencioso e meditativo acompanha-as enquanto debruçam os seus corpos para trás do parapeito. A câmara volta a integrá-las no mesmo plano e a cara de andorinha em tempos de chuva de Yuriko desenha um sorriso tímido e evanescente que é especialmente tocante na medida em que não contradiz, de maneira nenhuma, o ar subtilmente desolado que tínhamos visto anteriormente. Como se qualquer manifestação de alegria em Yuriko fosse uma forma num fundo em que o beicinho é um estado de espírito constitucional, como se todos os sorrisos fossem dialéticos na medida em que a sua subtileza é dada pelo seu contrário… Foi precisamente nesse momento que Mariko Okada, a actriz mais magnífica quando não sorria, entrou na minha córnea para dela nunca mais sair.
Tanto em Akibiyori como em Sanma no aji, Ozu demonstrou uma coerência deliberada sempre que a actriz se prestava a ser filmada. Da mesma maneira que, ao longo da sua filmografia, um actor como Chishû Ryû transportou sempre a mesma aura, a aura que porventura o realizador pressentia fora dos limites de qualquer estrutura narrativa ou construção de personagem, também Mariko Okada nesses dois filmes não era nem Yuriko, nem Akiko (a personagem de Sanma no aji), mas sim a Mariko Okada filmada por Ozu. No entanto, como podemos admitir a conservação de qualquer coisa de atómico, indivisível e inexpugnável de um actor (ou do seu reflexo aos olhos de um metteur en scène) num esquema de representação tão minucioso que parecia não deixar margem para grandes subjectividades? Mariko Okada lembra-se, com ternura e deferência, do método ozuniano:
Havia enormes constrangimentos. Por exemplo, para segurar numa chávena era necessário: 1º – segurar na chávena, 2º – levá-la à boca, 3º – beber dela, 4º – colocá-la de novo na boca, 5º – pousá-la. Tudo estava fixado: a altura, o lugar onde se a deixava. Não nos podíamos afastar nem que fosse por um milímetro. Nesse contexto, Ozu exigia entoações particulares que se tinham de respeitar estritamente: “Ah, sim?”, “E depois?”, “Que foi?”. E além disso, tínhamos também de fazer tudo de maneira a que parecesse realista.[5]
A direcção de actores alcança em Ozu um claro paradoxo: da austeridade radical migramos para uma impressão de genuinidade, impossível de ser alcançada senão pela extrema falta de liberdade ou improvisação[6]. Não é já a questão dos actores se representarem a si mesmos, mas antes, a de se moldarem e repousarem (Cézanne já dizia aos seus modelos que uma maçã não se mexe) numa imagem outra que não tem necessariamente que ver, nem com uma imagem pública fora das câmaras, nem com as idiossincrasias ou esquematismos mentais dos personagens representados em cada caso. Não serei o primeiro a admitir um fluxo contínuo em muitas das aparições repetidas de actores nos filmes de Ozu[7], como se o mesmo espírito ou um espírito muito semelhante reencarnasse noutro contexto, noutra situação e noutro filme. Por isso mesmo, a Akiko de Sanma no aji podia muito bem ser, num universo paralelo cujo acesso nos é interdito, a Yuriko de Akibiyori, só que casada. Basta, aliás, vê-la uns segundos para imediatamente a reconhecermos, como se se tratasse de uma velha amiga com quem não mantivemos contacto, mas que conservava algo imutável durante todo o tempo perdido. A mesma metafísica do beicinho dirigia-se agora à vida doméstica, contrariando apenas aparentemente a imagem mais emancipada de Yuriko. É que aqui também continua a haver uma espécie de tristeza mística e morna que não procura, para si mesma, soluções de corte, uma formosura que resiste e acompanha em simultâneo o facto do mundo não ser um sítio muito agradável, muito menos ideal, para se habitar.
Okada / Akiko passa grande parte do tempo em Sanma no aji com avental e roupas de ménage, fechada num apartamento estreito e saindo dele apenas para pedir tomates à vizinha. Os atritos com o seu marido (Keiji Sada), a despeito do conteúdo cómico e visual (dar tautau no futon[8] estendido para não dar no esposo), voltam a pintar o retrato de uma mulher insubmissa mesmo quando a estrutura patriarcal[9] se mantêm inalterada (e só um louco ou uma feminista acreditam na inexistência de nuances e jogos complexos de poder no interior dessa mesma estrutura). O gag recorrente dos tacos de golfe, juntamente com o momento em que Akiko se queixa dos gastos excessivos do seu marido, conferem os melhores exemplos do poder magnético e irrequieto de Mariko Okada, mesmo quando Ozu geometricamente arruma os corpos no espaço da ie[10], quais meros bules ou vasos. Havia qualquer coisa em Okada que parecia extravagante demais para conviver na família restrita de actores ozuniana, mas parece-me que Ozu pressentiu, de alguma maneira, essa energia tão particular da actriz. Essa presença, não só mas também física, tornou-se precisamente aquela que queria integrar no seu universo para contrabalançar forças díspares ou, se quisermos, ligeiramente antagónicas. Se tivesse filmado mais tempo, tenho a certeza que a Akiko de Sanma no aji não teria sido a última personagem no universo de Ozu.[11]
Ukigumo (Floating Clouds, 1955) de Mikio Naruse
Voltemos ao início: Mariko Okada nasceu a 11 de Janeiro de 1933. Mesmo antes de cair no mundo, o cinema já pairava na atmosfera e enchia o ar genealógico. Filha do esbelto actor Tokihiko Okada que filmara várias vezes com Ozu (Tokyo no kôrasu/ O Coro de Tóquio, 1931), Kenji Mizoguchi (Taki no shiraito/ O Fio Branco da Cascata, 1933) ou Yasujiro Shimazu (os dois capítulos de Ai yo jinrui to tomo ni are/ Love, Be with Humanity, 1931), Mariko não teve sequer tempo para guardar recordações do pai. Com efeito, cinco dias após o primeiro aniversário da sua filha, Tokihiko Okada sucumbia à tuberculose e falecia com pouco menos de 31 anos de idade. A sua última aparição no grande ecrã seria com Gion matsuri (Gion Festival, 1933), película perdida de Mizoguchi, e que hoje também pode ser lembrada como o fim de carreira prematuro de uma estrela discreta que nascia e morria sem nunca lhe termos ouvido a voz[12]. O resto da história não está necessariamente documentado, quer porque me faltam fontes, quer porque deixo a minha imaginação dançar, mas seria de prever que tivesse havido na infância da pequena Mariko uma mitificação em torno da figura paterna e uma sucessiva e minuciosa preparação para lhe seguir as pisadas assim que atingisse a maioridade, mergulhando, finalmente, no mundo da sétima arte. Certo é que, com apenas 18 anos, estreava-se em Maihime (Dancing Girl, 1951), realizado por Mikio Naruse e com argumento adaptado por Kaneto Shindo do romance menor e homónimo de um dos grandes escritores japoneses de sempre, Yasunari Kawabata. Graciosa bailarina em formação, a jovem Okada / Shinako em Maihime encara, lânguida, o casamento a rebentar pelas costuras da sua mãe (Mieko Takamine) e pai (Sô Yamamura). Numa das mais memoráveis cenas de um película morna e algo divagante, “Shinako recusa um possível candidato, argumentando que tem medo de se casar, pois poderia acabar como a sua própria mãe, encurralada entre um caso extra-conjugal e um casamento sem amor.” (Russel 2008, p. 213). Esta figura cândida da actriz, todavia crepuscular, obrigada a descobrir as agruras do mundo adulto a partir da corrosão dos modelos familiares mais próximos, seria uma excepção na filmografia de Naruse. Na verdade, o cineasta voltaria a escolhê-la para duas das suas mais aclamadas obras[13], subvertendo por completo os traços de carácter da sua estreia precoce.
O cinema, como a vida, tem destas coisas: interpretamos escrupulosamente a presença passada de alguém a partir de uma imagem mais recente. Assim como a História do cinema para um espectador moderno nunca se faz de maneira cronológica e progressiva, também os rostos e os corpos das actrizes se adequam a esse desfasamento diacrónico, criando uma imagem repleta de contradições que compreende as condições da sua própria fuga. Não conhecemos verdadeiramente ninguém desde a incepção. Quantas vezes também adivinhámos, nos traços vagos de uma fotografia de infância, a cara habitual de um amigo ou amante de hoje? Quantas vezes a imagem ignota do passado trouxe à tona a contradição mesma de uma imagem do presente, sempre cativa da sua situação in media res? Também para mim, a novidade da Mariko Okada em Naruse encavalitava-se conflituosamente no reflexo da Mariko Okada de Ozu, muito embora cronologicamente a primeira precedesse à segunda e não o contrário. Tanto em Ukigumo (Floating Clouds, 1955) como em Nagareru (Flowing, 1956), Okada aparenta ter outra entidade, partilhando, ainda assim com o seu ser do futuro (Akiko ou Yuriko) a mesma superfície e a mesma fácies, os mesmos olhos descaídos e desconsolados num mundo austero em que agora tem de enganar mil vezes para não ser enganada nenhuma. Mulher fatal nos dois sentidos do termo, Okada / Osei em Ukigumo encarna uma presença desestabilizadora no relacionamento, por si já oscilante, de Yukiko (Hideko Takamine) e Kengo (Masayuki Mori). Os dois amantes, reunidos e separados ad eternum numa conjectura histórico-política que despiu os homens do poder de fazer promessas[14], vagueiam por espaços contaminados pela confusão e o flagelo da guerra, espaços onde os encontros são possíveis enquanto escape intermitente de um problema maior e mais profundo. Naruse é conhecido por filmar homens volúveis, indecisos, sorumbáticos e mulheres obstinadas, apaixonadas sem se esquecerem de si mesmas, presenças nas quais a vontade brota. O casal do filme claramente põe em evidência esta dicotomia comum a quase toda a sua filmografia e não será descabido considerar a transformação inesperada de Mariko Okada como fazendo parte integrante do modo como o cineasta sempre encarou o feminino, como o lado mais forte da humanidade.
Osei não se coaduna com a imagem demoníaca da mulher adúltera (que arrasa o lar permanecendo ilesa como uma força do mal), assim como Nanako em Nagareru não representa o comedimento de uma geisha tradicional.[15] A primeira destruirá em off o seu próprio casamento para se transformar fatalmente no terceiro vértice de um triângulo amoroso, a segunda vive o seu negócio com cinismo, alicerçando um dos temas mais claros e menos citados da obra de Mikio Naruse: o modo como o dinheiro transforma os seres humanos. Podemos dizer, no entanto, que o retrato-robô narusiano de Mariko Okada encontra-se, justamente, naquilo que estas duas personagens, algo diferentes, partilham: uma radical auto-determinação nos gestos, uma liberdade, trágica em Ukigumo, nos limites do humor em Nagareru, que rasga os papéis sociais representados por cada uma. Osei não será, nem a esposa perfeita, nem a esposa resignada, porque conhece a luxúria, enquanto que Nanako não será mais a geisha inteiramente submissa do passado porque coloca, acima de tudo e todos, o vil metal. Há nestas duas donas do seu nariz qualquer coisa que a pequena Shinako em Maihime temia quando confessava o medo em casar e entrar no mundo confuso dos adultos. As presenças de Osei e Nanako podem ser encaradas como produto e resposta a essa confusão; são duas mulheres que deixaram a passividade dos encantos místicos para assumirem uma realidade quase carnal onde contam somente consigo próprias. Nesse processo solitário, transgridem aquilo que deveriam ser, mas não será essa transgressão da identidade social a prova máxima da sua liberdade? Ao contrário da metafísica do beicinho da dupla de filmes de Ozu, os meus olhos, sem grandes diagnósticos, obstinadamente desciam pelo corpo e focavam o pescoço vertical e os ombros bem desenhados de Okada, como se essa postura sem curvaturas nem sinuosidades, recta perante o métier em Nagareru ou a morte em Ukigumo, fosse o símbolo mais indicado da maturidade individualista que perpassa toda a obra de Naruse.
Na verdade, não há nenhuma ideia nova nesta proliferação de almas dentro do mesmo corpo que se presta a ser observado. Tal é a particularidade e o ofício de uma actriz: desdobrar-se, dar a impressão da multiplicidade. Portanto, retratar com a mesma minúcia todas as metamorfoses de Mariko Okada e a relação com a sua presença corpórea original é quase impossível. Quando em 1960 participou em Akibiyori, praticamente dez anos após a sua estreia, a actriz já contava com quase uma centena de filmes feitos, entrando em películas de realizadores tão importantes para a indústria como Keisuke Kinoshita, Kon Ichikawa, Hiroshi Inagaki, ou de outros menos conhecidos e aclamados mas não menos importantes como Kôzaburô Yoshimura, Shirô Toyoda, Noboru Nakamura, Minoru Shibuya, Hideo Ôba, etc. Foi, precisamente, ao celebrar o seu centésimo filme que Okada lançaria os pressupostos de uma viragem total na sua carreira. Essa viragem apenas seria possível devido a um encontro intencionado com um cineasta: Kijû Yoshida.
Kijû Yoshida e Mariko Okada na rodagem de Onna no mizûmi (Woman of the Lake, 1966)
1962. No mesmo ano em que Kijû Yoshida e Mariko Okada se encontravam pela primeira vez e se sentavam para discutir um projecto que iria mudar para sempre a carreira de ambos, o cineasta escrevia na revista Eiga hyôron um texto sobre L’Eclisse (O Eclipse, 1962) de Michelangelo Antonioni. Esse pequeno ensaio constituiria um marco fundamental no crescimento estético de um realizador que, à data, apenas tinha filmado três longas metragens e participava, contra a sua própria vontade, naquilo a que o estúdio onde era empregado resolvia apelidar, por mera estratégia de marketing, Shochiku Nuberu Bagu.[16] Em Medo ao Espaço, Yoshida analisa fenomenologicamente as estratégias imagéticas de Antonioni, comparando o modo como a sua câmara organiza o espaço a uma fina revolução e revelação cognitiva. Do estritamente cognoscível rapidamente viajávamos para o invisível, ou seja, as condições de possibilidade da liberdade individual, sempre tomando o espaço (ou o modo como se o organiza existencialmente) como ponto de partida. Yoshida escreve:
O espaço, a diversidade dos seres (quer dizer, das coisas que o habitam), a sua hierarquia, descreve-se incansavelmente. Porém, a preocupação contemporânea do ser, entendida como conflito com a nossa consciência, com a nossa liberdade como meio de acção sobre ela, o ser em si mesmo, deve ser a nossa preocupação actual. Caso contrário, a simples hierarquia dos seres colocar-nos-á sob o jugo de um novo feudalismo. Segundo Masakazu Nakai – estudioso da estética do espaço e para quem as pirâmides do Egipto foram construídas como signos de um «medo ao espaço» simbolizado pela imensidão desértica – a descoberta do espaço, a partir da época moderna, viu a instauração do ponto de vista de um homem individual, através do qual se constituía o universo como sistema. O homem tornou-se observador do universo: aparece o «sujeito» (shukan); quer dizer, o espaço sistémico. Desde a época contemporânea e submetido à opressão de um desmedido capitalismo de massas, o homem começou a entender o sentido de uma nova miséria, antes de assistir ao funeral do indivíduo. A função de curto proveito, logo de qualquer proveito, deixa os homens totalmente desorientados (…). Ao perder esse espaço sistémico que baptizaram dentro de si mesmos, construíram a partir daí, estremecendo, o que poderíamos chamar um «espaço esquemático» (Yoshida 2011, p. 157).
Na senda da filosofia de Masakazu Nakai[17], a tentativa genealógica de relacionar a hegemonia de dois espaços diferentes com a aparição de duas formas de indivíduos (um moderno, outro contemporâneo) na História não será tão alheia ao cinema de Antonioni quanto parece. Com efeito, Yoshida confirmará a emancipação do “espaço esquemático” em L’Eclisse por oposição à proliferação dos “espaços sistema” da maior parte da produção cinematográfica. Ao contrário desses últimos espaços totalizantes ou pseudo-transcendentais em que a visão correspondia ao centro do universo, o “espaço esquemático” revelava uma forma vazia e recortada (sem relação a um todo perceptível ou na relação com um inacessível), na qual os corpos, despidos de inteligibilidade, eram meros fragmentos, colocando o sistema perceptivo do espectador num constante vai e vem entre preenchimento e frustração. Essa impossível transumância entre “ver” e “visto” (entre ver o que não se presta a ser visto), simultaneamente tinha o poder de adormecer a consciência reflexiva, consagrada no cogito cartesiano, e destapar aquilo que, na filosofia sartriana, se chamou de espontaneidade do ego, ou melhor, o seu carácter radicalmente extrovertido (no sentido de colocar a consciência para fora de si mesma na procura por estados nunca coincidentes)[18]. Para Yoshida, o filme de Antonioni exaltava o nascimento de uma consciência relacional, intencional, e era, por assim dizer, a epifania que ansiava desde que, por mero acaso, tinha entrado no mundo do cinema [19]. Basta ler alguns excertos de artigos anteriores para vislumbrar as exigências de purificação direccionadas ao cinema do seu tempo, porventura, pensando já na instalação desses tais “espaços esquema” e de um certo jogo entre imanência e transcendência no acto da visão. Graças às investigações e traduções de Mathieu Capel, podemos transcrever outra passagem decisiva do texto O Muro do Cinema, publicado em 1960:
Teremos de manter a ideia de que o cinema não tem nenhuma obrigação perante a narrativa. (…) Com base no documentário, devemos esperar que a revitalização do cinema passe por uma arte do registo tendo sido abstraída a estória. O argumento não é mais do que a garantia das imagens de um autor. No que diz respeito à câmara, retome-se a sua função essencial: em direcção ao real, no coração do real (Capel 2015, p. 97).
Como interpretar a tremenda aversão manifestada à narratividade no cinema? Se o surgimento do “espaço esquema” desorientava as coordenadas do shukan (sujeito) – alicerçado no “espaço sistema”, como vimos – e anunciava a génese de um shutai (subjectividade) no interior de um “processo de montagem significante do diverso” (Capel 2015, p. 90), o divórcio parcial das imagens do cinema das suas narrativas estaria em tensão para o mesmo efeito. Operar o desmantelamento da familiaridade sequencial das imagens para reconfigurar a relação entre espectador e projecção, ou melhor, para afirmá-la (a relação), de uma vez por todas, como simétrica e equitativa em termos de poder. Ao longo dos anos 60 e 70, Yoshida foi pondo em prática, e cada vez com menos concessões, a crença essencial que o filme equivaleria a “uma proposição incompleta que abre caminho a um «lugar subjectivo» construído, em consciência, pelos espectadores e através do qual o cineasta deveria apartar-se[20] ou interromper a «extensão horizontal»” (Capel 2015, p. 94). Peço emprestadas as palavras de Ayako Saito no artigo Women and Fantasy para sintetizar, ainda mais, o perfil deste cineasta tão peculiar:
É a figura de um autor de cinema que questionou persistentemente o «sistema da visão» inerente à forma fílmica e seguiu o seu caminho numa modalidade auto-referencial. Podemos vislumbrar uma auto-negação curiosa, mas a sua expressão, «o filme para mim é o Outro», deve ser entendida como a expressão exacta da sua atitude perante o cinema. De facto, um sentimento de desconforto sem limites em relação à «identidade própria» é prevalecente nos seus filmes. Nas suas indagações para obter «a alteridade no filme», dentro do próprio filme, desafiou o cinema como sistema através de uma noção quase obsessiva de que o filme «pode apenas ser posto em prática por via do seu desmantelamento» (Saito 2010, p. 33).
Akitsu onsen (Akitsu Springs, 1962) de Kijû Yoshida
1962. De maneira a celebrar a centésima longa-metragem de Mariko Okada, a Shochiku decidiu oferecer à actriz liberdade total, endossando-a também como produtora do projecto. Segundo consta numa entrevista feita em 2008[21], Okada nutria o desejo antigo de dar corpo a Shinko, a protagonista do romance Akitsu onsen, escrito por Shinji Fujiwara, tendo já um nome em mente para assumir os comandos da realização: Kijû Yoshida. Supostamente, Mariko tinha sido a primeira escolha para interpretar a protagonista feminina do seu primeiro filme, Rokudenashi (Good for Nothing, 1960), mas por motivos de calendário, tal nunca chegou a acontecer. Impressionada pela maneira inovadora como esse argumento tinha sido escrito, desde então seguia, com distância, o percurso, cada vez mais exigente e problemático, do jovem cineasta. Após conversas com os responsáveis do estúdio, uma primeira dificuldade surgia: Yoshida recusava filmar adaptações literárias e mantinha que as suas películas deveriam sempre ser baseadas em argumentos originais. Okada voltava a tentar. Tinha de entrar na pele de Shinko, mas também queria levar avante a sua visão enquanto produtora e realizar os seus desejos enquanto criadora. Tinha de ser filmada pelos mesmos olhos inexplicáveis que tinham desconstruído e tornado crípticos os espaços dúbios de diversão juvenil em Rokudenashi ou mesmo Amai yoru no nate (Bitter End of a Sweet Night, 1961). Finalmente, os dois encontraram-se e prometeram unir sinergias: Yoshida faria o filme sem restrições criativas, reinterpretando o romance original à sua maneira; Okada poderia finalmente representar os encontros e os desencontros, as tormentas de uma mulher distante do seu amante no período durante imediatamente a seguir à derrota na 2ª Guerra Mundial. Pela natureza de encomenda do projecto, assim como pela estranheza do tom melodramático na obra de um cineasta com um pensamento tão arrojado e cerebral sobre a imagem, não será difícil aceitar que Akitsu onsen (Akitsu Springs, 1962) acabasse por ser mais um filme de Mariko Okada do que Kijû Yoshida. Apetece-me mesmo dizer que o grau de envolvimento da actriz – desde produtora até responsável pelo guarda-roupa – tornava-a numa espécie de segunda realizadora, ou primeira, consoante aquilo que imaginarmos da química desenvolvida na rodagem intensa, com duração de vários meses e em que se esperou pelo florescer de cada estação do ano. Portanto, esta colaboração a quatro mãos veio a ser marcante em todos os sentidos. Yoshida e Okada casar-se-iam dois anos depois, em 1964, e das quinze longas-metragens que o cineasta faria entre 1962 e 2002, a actriz contracenaria em dez.
Olhando com uma certa distância, observamos que, na geração de cineastas japoneses dos anos 60 tornou-se prática recorrente a musa ser a própria esposa do cineasta: Nagisa Oshima casou-se com Akiko Koyama, Masahiro Shinoda com Shima Iwashita, Susumu Hani com Sachiko Hidari, Kaneto Shindo com Nobuko Otowa, Zenzo Matsuyama com Hideko Takamine, etc. Para além dos sentimentos ardentes que se desenvolvem, muitas vezes contra a própria vontade, num set, pode-se explicar este fenómeno por duas razões. Primeiro, porque é da natureza do cinema japonês ser um cinema com e sobre mulheres (o que não é o mesmo que dizer: um cinema das mulheres ou para as mulheres). A tradição mizoguchiana do feminisuto[22] ainda pairava na atmosfera da nova geração, não sem a existência de uma quantidade considerável de twists, actualizações e transgressões na adopção desse mesmo legado que julgo involuntário. Segundo, porque quase todos os cineastas que mencionei acima (incluindo o próprio Yoshida) rapidamente se aperceberam da insustentabilidade em compactuar com o sistema corporativista e frequentemente castrador dos estúdios. O casamento com as musas na maior parte das vezes assumia a dimensão de mero acto numa peça maior pela busca da liberdade criativa, fora do sistema autoritário dos Big Six[23]. Não deixa de ser simbólico que, no mesmo dia do seu casamento com Akiko Koyama em 1961, Nagisa Oshima declarava publicamente o auto-despedimento da Shochiku após a embrulhada monumental da distribuição de Nihon no yoru to kiri (Night and Fog in Japan, 1960)[24], como se os dois acontecimentos estivessem intimamente ligados, como se, por partilhar a vida íntima com uma actriz de cinema, o cineasta estivesse agora habilitado a roubar e a recriar a mais refinada ficção eficaz alguma vez criada pelos estúdios e finalmente fundar uma companhia independente de produção. Na verdade, as circunstâncias do casamento entre Yoshida e Okada partilharam algumas semelhanças com esta tendência, mas apenas aparentemente.
Voltemos a Akitsu onsen. Forço-me a rever a derradeira cena na qual Okada / Shinko desiste da vida após o incumprimento da promessa de duplo suicídio com o seu amante. À semelhança de Ukigumo, o tempo incerto do pós-guerra é descrito através do enfraquecimento categórico da figura masculina, incapaz de levar as coisas até ao fim, enrolando a sua amante num brando lume de inseguranças e reencontros fugazes ao longo do tempo. No entanto, esta Okada já não era a de Ozu, nem a de Naruse, nem a de outro cineasta qualquer. Faltava-lhe tudo e, todavia, tinha tudo mais. Quando corta os pulsos, encostada numa árvore que jorra flores de cerejeira (nem é preciso mostrar o golpe quando ele se passa na mente), a expressão de Shinko não é a de uma afirmação da vida na própria morte, nem a de uma petição por descanso absoluto. É quase vazia, contrabalançada na dor física imanente e no desligamento progressivo do corpo e da alma. Da sua travessia ensanguentada pela paisagem cruelmente bela do lago e das pequenas cascatas não podemos concluir nada senão ambiguidades: matou-se porque sabia que o seu cadáver seria carregado pelos braços do amante impossível ou consumiu-se pelo amour fou num acto desesperado de querer voltar ao nada da origem? Afirmou-se ou desistiu de tudo? A anfibolia tremenda dessa lividez e desses olhos cerrados, inacessíveis, tinha sido, sem dúvida, pintada por Yoshida. Ele parecia ter descoberto, neste melodrama de formas clássicas, o altar de uma revelação silenciosa e extática, o receptáculo material de todas as teorias possíveis e imaginadas de “espaços esquemáticos” e do advento de uma nova subjectividade. Mariko Okada transformava-se na diva improvável de um cinema que apenas poderia aceitar a negação de todas as divas, a começar por ela mesma, mas que revelava, ainda assim, a urgente necessidade de ser trazida para o regaço da câmara, assim como a pedra pode segredar ao escultor a melhor maneira de ser cinzelada. Mas se há escultura em Yoshida, ela não é figurativa, antes abstracta: da exterioridade superficial dos corpos, centenas de interioridades podem ser imaginadas por quem os observa ou desmistifica. Por mais estranho que pareça, Mariko Okada já era em Akitsu onsen a condição sine qua non do cinema vindouro de Kijû Yoshida[25].
Onna no Mizûmi (Woman of the Lake, 1966) de Kijû Yoshida
Neste sentido, não há nada mais nos antípodas do que conceber uma instrumentalização da actriz pelo cineasta, ou vice-versa. É verdade que o casamento de Kijû Yoshida coincidiu com a sua saída da Shochiku em 1964, depois do estúdio ter cortado sem autorização a cena final de Nihon dasshutsu (Escape from Japan, 1964) por considerá-la demasiado pessimista. É verdade que, à semelhança de Nagisa Oshima ou Masahiro Shinoda, Yoshida fundou, juntamente com a sua esposa, uma produtora, a Gendai Eigasha, só que ao contrário deles, o crescente protagonismo de Mariko Okada nos filmes subsequentes não se deveu, nem ao carácter prévio de star, nem à vontade de exploração dos limites técnicos de uma talentosíssima actriz, muito menos ao facto de se tornar pau para toda a obra devido aos orçamentos mais magros. A História diz-nos que ela abandonou os estúdios para se dedicar quase exclusivamente aos trabalhos do seu marido, mas algo me diz que esses trabalhos também eram intimamente seus. Yoshida necessitava artisticamente de Mariko da mesma maneira que Mariko necessitava de Yoshida. A desmontagem do papel do homem-cineasta e da mulher-actriz apenas parecia aproximá-los mais. Os seis anos e as nove longas-metragens compreendidas entre Mizu de kakareta monogatari (A Story Written with Water, 1965) e Kokuhakuteki joyûron (Confessions Among Actresses, 1971) são, por isso mesmo, o testemunho de um intenso amor, confiança e respeito artístico mútuo.
Não será preciso assumir a postura de um conhecedor de bastidores para perceber a existência, em todos os fotogramas da fase a que os críticos resolveram chamar anti-melodramática[26] de Kijû Yoshida, uma fusão irresoluta entre os procedimentos fílmicos e a existência concreta dos corpos: os últimos problematizam, sem cessar, os primeiros e agitam-nos violentamente como se sobrevivessem a qualquer tentativa de dramatização. São corpos que nos reenviam o olhar e nos convidam a decifrar o enigma da sua mudez. Não parece haver espaço para a narração, muito embora nenhum desses filmes deixe de contar estórias. Um sentimento de desorientação, todavia, prevalece contra todas as tentativas de cristalizar o sentido de uma qualquer ficção esquiva. O que sobrevive é, poderíamos admitir, a afirmação de várias negações. Seria este aperçu perturbador o mesmo que Yoshida teve quando escrevia sobre L’Eclisse nas páginas de Eiga hyôron? Seria esta a consagração de um cinema esquemático, desligado de constragimentos diegéticos, que acordava “o Outro” adormecido no “eu” do espectador? Sobre a inconstância destas narrativas, Ayako Saito escreveu:
Yoshida omite muitas cenas de exposição que são essenciais para uma normal progressão da narrativa e narra de forma elíptica, meramente apresentando cenas. Isto (…) dá a impressão que, ao invés de narrar a estória, ele está a ligar cenas de fantasia. Isto faz que não haja um sujeito que narre uma estória linear e que todas as formas de fantasia façam parte umas das outras, tornando-se progressivamente difícil remontar a uma origem (Saito 2010, p. 40).
Mizu de kakareta monogatari foi o primeiro a ter essa natureza flutuante e plural de um sonho desperto. De maneira a corroer a estrutura partriarcal “Pai-Estado-Imperador”, Yoshida obsessivamente filmou os fundamentos da relação incestuosa de uma mãe (Okada / Shizuka) com o seu filho. Nunca conseguimos precisar exactamente a que correspondem determinadas cenas: serão flashbacks para construir a motivação dos personagens (tensão passado-presente), fragmentos caóticos da projecção de desejos mais recônditos ou, simplesmente, revelações metonímicas e mais abrangentes de um contrato social tácito prestes a ser transgredido? O acto incestuoso, ao contrário do que acontece na obra de Shohei Imamura, é remetido para a fantasia e o próprio tempo e espaço do filme assumem a radical desconfiguração surreal do mundo a ser visto pelos olhos de um erotismo interdito, mas cumprido no inconsciente. Okada / Shizuka partilha com as sombras e a água, omnipresentes em Mizu de kakareta monogatari, o carácter enigmático e fantasmagórico de uma insustentabilidade fascinante, porque subversiva e exterminadora de todas as relações humanas. Ela é a mulher por detrás de todas as mulheres (como acontece na sequência mais arrepiante do filme em que a amante na cama é substituída pelo sorriso erótico e protector da mãe), a presença que induz este cinema à total transfiguração do feminino.
Os dois filmes seguintes são, acima de tudo, adaptações livres de romances onde as duas protagonistas femininas transcendem a vontade de controlo masculina, oferecendo-se, paradoxalmente e sem contrapartidas, a esse mesmo desejo. “Todas essas mulheres têm algo obscuro no fundo dos seus corações. Elas mostram emoções opostas (…) e, de vez em quando, olham fixamente para o vazio, desconcentradas” (Saito 2010, p. 34). De facto, tanto Onna no mizûmi (Woman of the Lake, 1966) como Jôen (The Affair, 1967) edificam uma estética da divagação e da vacuidade do olhar da sua actriz principal (Okada, sempre ela), enquanto se desenvolve paralelamente uma tensão em surdina com o olhar masculino. “A intensidade do olhar através do qual (as mulheres) «olham para o vazio», muitas vezes enfatiza somente o acto de «olhar»” (Saito 2010, p. 34), enquanto que a visão dos homens manifesta sempre a interioridade de um desejo de posse. Em Onna no mizûmi, Okada / Miyako é chantageada por um homem que obteve o negativo de um conjunto de nus seus. As ligações erróneas entre representação e realidade servem para encenar uma quantidade considerável de mise en abymes onde o fetichismo da visão está sempre presente, pairando em todos os décors como uma maldição. Desde os estúdios clandestinos de fotografia erótica às rodagens na praia deserta de um filme softcore dentro do filme, tudo concorre para uma espécie de tirania do “visto” pelo “ver”, onde os produtos, físicos ou mentais, do “ver” criam a jactância de tudo terem compreendido acerca do “visto”. Nesse sentido, o olhar vago e indescritível de Okada assume progressivamente, para os homens que a perseguem e a julgam dominar, uma margem incomensurável de indeterminação e mistério. Por outro lado, essas mulheres parecem negar o desejo dos homens precisamente quando o satisfazem, ou seja, quando quebram o elo virtual, intocável, de uma imagem com o seu detentor e se carnalizam à sua frente: nem Miyako fará outra coisa quando, em Onna no mizûmi, entrega de bom grado o seu corpo ao predador, confundindo todas as relações de poder entre vítima e agressor, nem Oriko, quando, em Jôen, afunda o seu casamento burguês, escolhendo contrair, sem razão aparente, um caso extra-conjugal com uma espécie de vagabundo. É por esta razão que a perspectiva dos homens no cinema de Kijû Yoshida não é a de mais ninguém a não ser a do próprio espectador de cinema: esse ser habituado, desde sempre, a excitar a máquina sensorial através de representações visuais do feminino.
A desconstrução da visão como acto de posse primordial[27] pede, igualmente, uma reformulação obrigatória dos agentes do drama “esquemático”. Também o masculino aparecerá progressivamente sob novas roupagens, sendo estas cada vez mais negadoras da sua condição de detentor do real[28]. Em Honô to onna (Flame and Women, 1967) e Juhyô no yoromeki (Affair in the Snow, 1968), películas ainda mais distantes, sombrias, de uma frieza clínica, a esterilidade dos respectivos protagonistas masculinos parece alavancar a liberdade sexual da mulher, quer por via da inseminação artificial, quer por via do adultério. Essa incapacitação em actualizar o desejo masculino dentro da tela é visto por Yoshida como uma castração metafórica do olhar fora da tela, como se ocorresse, não só o fim do reconhecimento espectador-homem, como a subversão absoluta daquela velha afirmação de Robert Bresson em Notes sur le cinématographe que equiparava o olhar a uma “força ejaculadora”[29] (Bresson 2000, p. 23). Por outro lado, renegar a possibilidade do acto sexual ser reflectido dentro da ficção significava criar um novo tipo de casal cinematográfico cuja dinâmica apenas podia ser pensada através do fantasma de uma falta. É como se o desejo destes homens mutilados pairasse num limbo (existe porém carece de meios para se concretizar) e os obrigasse a assumir a inconstância de um fino onirismo num mundo abstracto de corpos bloqueados, mas em tensão, iguais no pasmo e no desnorteamento. Ao esvaziamento sexual das figuras masculinas, nesses dois filmes é possível vislumbrar, uma vez mais, o poder neutralizante, ambiguamente feminino, de Mariko Okada.
O olhar cinematográfico de Yoshida lançado à sua esposa não é, portanto, nem fetichista, nem voyeur – segundo Laura Mulvey em Visual Pleasure and Narrative Cinema, essas eram as duas únicas possibilidades que o male gaze do cinema clássico tinha de representar o feminino – e nenhuma das “personagens” que Mariko Okada dá corpo parecem repousar numa única palavra ou adjectivo, exprimindo com isso qualquer coisa da natureza de uma identidade a partir da qual se tornaria possível tirar conclusões de carácter. Estas mulheres não são santas, nem meretrizes, nem parecem transitar de um estado para outro, como acontece abundantemente no cinema de Luis Buñuel ou Shûji Terayama. Podem transgredir o universo masculino dos personagens, entendidos enquanto espectadores, mas não o fazem seguindo inteiramente as regras do seu jogo. A despeito desse magnetismo que carregam, dessa sedução não coincidente com o desejo, tão pouco parecem propor uma revolução social com premissas e palavras de ordem panfletárias, facilmente reproduzidas por todos. O seu silêncio esfíngico é, certamente, maior do que tudo isso. Por estas razões, penso que o radical feminismo de Kijû Yoshida é, na verdade, um pretexto para despoletar o “Outro” que há na actriz. Saito disse-o melhor que eu:
A actriz e «a actriz em toda a mulher», actuam como um espelho, reflectindo o olhar de medo do Outro, olhar que os homens não conseguem suportar. Para Yoshida, que sempre enfatizou que o cinema é “o Outro”, essa alteridade é habitualmente personificada pela mulher (Saito 2010, p. 35).
Kokuhakuteki joyûron (1971) de Kijû Yoshida
Essa vontade obsessiva de querer destronar o reconhecimento individual, a consciência de si, alastra-se, como não poderia deixar de ser, a todo o edifício fílmico, desde o cineasta aos actores. Em A minha teoria de cinema: A lógica da auto-negação, Yoshida escreveria a este propósito:
Os actores devem transcender o plano escolhido pelo realizador e expor os seus rostos despidos, a sua total personalidade enquanto actores. Uma expressão, um piscar de olho, a contracção de um músculo, muito mais do que a interpretação calculada, têm poder suficiente para destruir o drama encenado. A única coisa que pode abanar o conluio tacitamente admitido entre o público e o realizador é o corpo do actor. Por vezes, filmo cenas sem dar qualquer indicação aos actores. Mas os actores estão lá e, como realizador, não há maior prazer do que esses momentos em que a presença deles torna-se numa crítica de mim próprio. Isto não significa, de todo, que eu despreze a capacidade de representar. Não será essencial e ousado aceitar que os actores não exprimem nada com os seus corpos, mas que os corpos, eles mesmos, são a expressão? (Yoshida 2010, p. 17).
Publicado na revista Eiga Geijutsu uns meses antes da estreia de Erosu purasu gyakusatsu (Eros + Massacre, 1969), sem dúvida o seu mais complexo filme (também) no departamento da representação, o manifesto parecia ser demasiado claro em relação ao papel do actor. Sendo, contra todas as evidências, a refutação do cineasta-demiurgo, ele era também o simulacro do real, o irredutível sobrevivente dos vícios inteligíveis do metteur en scène. Se voltarmos, agora, às metamorfoses de Okada no ciclo dos anti-melodramas, quais retratos onde o sfumato domina enquanto estratégia e metáfora pictorial, podemos finalmente entender que “o elo entre a ficção da actriz e a ficção da mulher é desmantelado para revelar, em vez disso, a realidade da «actriz»” (Saito 2010, p. 34-35). A que corresponderá, no entanto, essa “realidade da actriz”? Yoshida responderia com mais um filme.
Kokuhakuteki joyurôn, distribuído em 1971 pela lendária produtora Art Theatre Guild, colocava três divas no divã (Ineko Arima, Ruriko Asaoka e, como não poderia deixar de ser, Mariko Okada) para construir um dispositivo fundado, tanto no confronto da dialogia, como na propagação de mise en abymes, através das quais se dissecava a ficção mais duradoura e eficaz que o cinema alguma vez produzira: a actriz de cinema. A visão caleidoscópica sobre os traumas escondidos de seres que, antes mesmo de se afirmarem como mulheres, são já representações do feminino, denunciava, a três tempos, a confusão de identidades decorrente da sua “to-be-look-at-ness” (Mulvey 1999, p. 837). Serão estas três mulheres vítimas do seu métier? Terão escolhido esta vida para aprenderem a mentir magnificamente, para adquirirem uma identidade a partir da visão dos outros, ou para jamais se preocuparem em destrinçar o real da ficção e a ficção do real? Yoshida (des)enquadra cada uma destas actrizes através de patologias, como se sublinhasse, a partir daí, o modo problemático como acedem à existência fora das câmaras: Aki (Asaoka) mostra sintomas de androfobia, Isaku (Arima) desenvolve uma mania suicidária e, finalmente, Kyoko (Okada) recorre à psicanálise para interpretar sonhos tórridos e explicar a neurose que a assola e impossibilita de trabalhar. As três apenas conseguem fazer-nos adivinhar a interioridade através de algo radicalmente disfuncional. Neste sentido, são já a contradição da actriz que é sempre aquilo que parece ser e se cumpre na superfície bidimensional da tela e do imaginário onanista dos observadores.
Não é de estranhar que, em Kokuhakuteki joyurôn, toda a profundidade psicológica dessas mulheres seja tomada a partir de uma negação peremptória da ditadura das superfícies[30] do cinema. A aparente “estilização pela estilização” dos planos não é mais do que um símbolo da desconfiança dessa gramática cinematográfica da profundidade: por exemplo, um grande plano não é mais o acesso ao interior, mas antes o amor e a labuta de um mistério; o descentramento dos planos prova que nem a matéria é uma unidade estática; enfim, os espelhos recorrentes denunciam a total falácia da presunção de identidade do reflectido em relação ao seu reflexo. Sobre essas actrizes e por detrás de todas as máscaras, Yoshida quer que as reconheçamos somente através de um conhecimento negativo: “sei que não sei nada sobre elas”; apesar do filme encenar registos de explicação psicológica que apenas adensam ainda mais o conluio explicativo (decifrador do feminino e criador de uma falsa verosimilhança), entre cineasta e espectador, conluio esse que só a actriz pode desmantelar. Na sequência final em que as três actrizes são entrevistadas antes da rodagem, pergunta-se a Okada / Kyoko o que acontece ao seu ego quando interpreta. Responde com determinação que, nessas alturas, não há nada que sobreviva a não ser o vazio. O escoamento, sem cessar, de mil esboços diferentes de mulheres no mesmo corpo provocará uma espécie de afasia identitária? Será essa a expressão de um vazio primordial, possibilitadora de vários registos ficcionais? A identidade como ficção? A “realidade da actriz” que o cinema de Yoshida sempre aponta não se expressa pelo triunfo útil do desdobramento heterógeneo da psique, nem por um mimetismo sem remissão à consciência, mas sim pela afirmação segundo a qual o “eu é outro e o outro é nada”.
Enquanto os estúdios japoneses e o mundo do cinema, tal como o conhecíamos, colapsava durante os anos 70, Mariko Okada era a última actriz a desmontar audaciosamente o mito da actriz. No entanto, Yoshida não voltaria a filmar com a esposa durante mais de 30 anos e nem a chamaria para a consagração da sua carreira com Kaigenrei (Coup D’État, 1973). Após as “confissões entre actrizes”, parecia que o realizador tinha chegado a um esgotamento temático. Nessa altura, as imagens que ambos tinham construído ultrapassavam qualquer colaboração entre cineasta e musa. Se me dissessem, no alto dos meus dezassete anos, que do beicinho místico transitaríamos para uma tal imagem dissidente, teria enormes resistências em acreditar. Certo é que a minha retina mais madura, mas não menos titubeante, continuou a acompanhar o envelhecimento da actriz mais bela quando não sorri. Frequentemente foi matriarca de pulso nas películas mais tardias de Sadao Nakajima como Seiha (Domineering, 1982), Jo no mai (Appassionata, 1984) ou Gekido no 1750 nichi (1750 Days of Turbulence, 1990); foi mulher com passado obscuro em Ningen no shômei (Proof of the Man, 1977); cameo em Jûzô Itami, por vezes, humorístico como em Tampopo (1985) ou então, essencial para a investigação em Marusa no onna (A Taxing Woman, 1986), enfim, os papéis, mais raros durante as décadas, continuaram a construir uma actriz de aparições apaixonantes. Quando já no novo milénio com Eri Eri rema sabakutani (Eli, Eli, lema sabachthani?, 2005), Shinji Aoyama escolhia Okada para contracenar com Tadanobu Asano e Aoi Miyazaki, dois actores da nova geração, a ideia era prestar um tributo à figura ambígua desse olhar que nos olha de volta. Porém, o processo de velhice de uma actriz descarnaliza a sua beleza e faz pairar as intenções possessivas no ar, como um espectro do passado. As feições (aqueles olhos ainda mais salientes e redondos com a idade), a voz (ainda mais doce), em suma, um corpo que viveu tanto através do cinema que já nem parecia ser o objecto turvo das suas ficções e máscaras (apresenta-se sempre como se fosse a mesma coisa), tornava todo o espectáculo voyeur numa cerimónia de amor platónico. Não é essa a poesia subjacente à decadência de um corpo que amámos jovem? Não é a beleza do envelhecimento, afinal, o triunfo da res cogitans sobre a res extensa?
Este escrito poderá ter sido, debaixo das aparências, somente mais uma carta de amor patética a uma actriz que amei às escondidas, com o olhar. A carreira serpenteante da musa improvável Mariko Okada regista a contradição lancinante do espectador de cinema: um amante secreto de actrizes cuja condição e situação jamais permite um encontro com o real, ou seja, a adequação do interior com o exterior (do desejo com o seu objecto). Especialmente a partir do tratamento desconstrutivo do olhar e do feminino, presente no cinema de Kijû Yoshida, Mariko Okada tornou-se a diva anti-diva primordial, a actriz que reenviava o olhar vazio diante da câmara para clamar, ainda que silenciosamente aos seus observadores: “Não sou extensão da vossa fantasia, estou para além disso. Sou mulher”. No entanto, espectadores e actrizes compreendem-se somente na medida de uma paixão unilateral que reconhece, apesar de tudo, a sua impossibilidade e frustração; o seu carácter, de fio a pavio, virtual. A Okada do cinema de Yoshida pode ser, assim, meramente uma declaração expressa e temerária no interior do filme de algo que se passa sempre no exterior do filme e de todos os filmes, pelo menos desde que existem actrizes e espectadores[31]. A imagem flutuante daquela que representa outros e, no limite, se representa (não pode deixar de ser ela mesma[32]: eis a esperança ontológica do espectador que a julga conhecer fora de todas as ficções[33]) presenteia, a quem a contempla, os limites e o interlúdio da sua evasão. Ao mesmo tempo, qualquer espectador saberá intuitivamente que os filmes são sonhos e as actrizes objectos do imaginário, miragens de duração limitada prontas a desvanecer com a última bobina. Cada fim de filme representa, pois, uma despedida, sendo que a acumulação da experiência de vários fins engendra um perfil psicológico de alguém mais habituado a despedir-se do que a encontrar-se com a sua projecção. Talvez por isso mesmo, o cinema tenha a particularidade de criar castos enamorados, sujeitos que acreditam somente no amor instantâneo e maximamente perecível do olhar. Devo à Mariko Okada de Akibiyori, de Nagareru, de Onna no Mizûmi, de Kokuhakuteki joyurôn, entre tantos outros títulos, a restituição plena e consciente da minha identidade como espectador. Ser espectador de cinema é possuir a despossessão, é simultaneamente aprender e desaprender a amar.
Erosu purasu gyakusatsu (Eros + Massacre, 1969) de Kijû Yoshida
Notas:
[1] É sabido que o “realizador mais japonês de todos os japoneses” é mestre em conferir um certo esvaziamento dos trejeitos, conservando ainda assim um grau neutral, quase convincente e quotidiano, de energia e afectação. Ozu foi e será sempre o cineasta dos sorrisos que não são mais do que sorrisos. Qualquer tentativa de procura de um fundo psicológico (ou psicologizante) só se encontra num registo, justamente, superficial (no sentido de superfície) em que tudo é o que parece ser.
[2] Setsuko Hara deu vida a três Norikos diferentes numa trilogia temática que partilha o nome da sua protagonista e é composta por Banshun, Bakushu (Verão Prematuro, 1951) e Tokyo Monogatari (Viagem a Tóquio, 1953).
[3] Kijû Yoshida em Ozu Yasujiro no han eiga (em francês Ozu ou L’Anti-Cinema), o seu livro polémico e seminal sobre a estética do realizador, escreveria que os três velhos que orquestram toda a “planificação” do casamento são uma mise en abyme do próprio Ozu, ou seja, um auto-retrato da sua própria velhice. Yoshida jamais menciona o papel da sua esposa, Mariko Okada, no filme todavia refere claramente a transferência de importância narrativa da mãe e da filha para aqueles que as tentam separar: “esses desejos profanos, essa gentileza arrogante e dominadora, não fará mais do que esfolar e perturbar os laços sagrados da viúva e da sua filha” (Yoshida 2004, p.216).
[4] Tsukasa, ao contrário de Okada, tem uma presença muito mais fina e eu diria etérea, sem isto querer dizer inteiramente moldável. Talvez por ser a protagonista e devido à pulverização da narrativa e dos seus personagens, Ozu tenha sentido a necessidade de criar uma entidade suficientemente identificável por todos, mas sem nenhuma característica demarcadamente sua.
[5] Retirado da entrevista gravada em 2008 no contexto da retrospectiva total da obra de Kijû Yoshida no Centro Georges Pompidou. A entrevista pode encontrar-se no DVD de Akitsu onsen (1962) editado pela Carlotta com o título La Source Thermale d’Akitsu.
[6] Ozu, a despeito das críticas ao star system presentes num artigo que escreveu em 1949 na revista Kinema Jumpo, levou, mais tarde, até às últimas consequências esse sistema, reinventando-o à sua maneira. A recorrência dos mesmos actores, no entanto, deveu-se raramente a pressões dos estúdios e muito menos à petição de encaixar determinada persona ou imagem pública de um actor a uma produção específica, mas a um sistema de escrita e mise en scène em que as personagens não podiam estar desligadas da aura de um determinado actor. Neste sentido, é impossível esquecer a dimensão retratista do cinema de Ozu. Os personagens são um pretexto para retratar, pintar, uma subjectividade anterior ao som da claquete.
[7] Donald Richie chegava mesmo a escrever que uma intimidade constrói-se de maneira tal que nos entristecemos somente pela despedida de personagens que deixaram de ser alavancas para motivar a acção narrativa.
[8] Um colchão específico que muitas vezes é toda a cama japonesa.
[9] Uso este termo com muitas reservas.
[10] Casa japonesa.
[11] Curioso notar que o último argumento escrito por Ozu e o habitual Kogo Noda, Daikon to ninjin (Radishes and Carrots, 1965), levado ao grande ecrã por Minoru Shibuya, também conta com a presença de Mariko Okada num cast que é, de facto, um reunião de (quase) todos os grandes actores da família ozuniana. Fica por esclarecer se essa escolha já teria sido feita antes da morte do cineasta.
[12] De facto, o primeiro filme japonês com som foi Madamu to nyobo (The Neighbor’s Wife and Mine, 1931) de Heinosuke Gosho, mas Tokihiko Okada nunca chegou a fazer a transição do mudo para o sonoro que tantos técnicos e realizadores, na altura, evitavam.
[13] Okada também apareceu em Fûfû (Husband and Wife, 1953) do mesmo realizador.
[14] Este tema daria pano para mangas, mas o fim do Imperialismo japonês (com a derrota na 2ª Guerra Mundial e o desmantelamento da figura sagrada do Imperador) trouxe consigo uma reformulação do masculino: como se a cultura da guerra tivesse revelado a falência do papel social do homem. Em Ukigumo, isso torna-se claro quando as categorias tradicionais do masculino e do feminino se invertem e a capacidade de prometer, isto é, estabelecer um vínculo social, torna-se impossível de praticar pelo homem (e ele diz a dada altura: “perdi tudo, até a minha alma”). A aparente submissão e abnegação de Yukiko não é mais do que o cumprimento de uma promessa, uma espera infinita pelo eco masculino que deixou de existir.
[15] Catherine Russel escrevia assim sobre Nanako: “(…) é evidentemente da geração do pós-guerra, um novo estilo de geisha ou ima noko («a rapariga dos nossos dias») (…). Às vezes usa roupas ocidentais da moda e os seus maneirismos carecem do refinamento associado ao mundo das geisha” (Russell 2008, p. 297).
[16] Não terei tempo de discorrer com pormenor sobre esta temática, no entanto, resta-nos afirmar que o termo Nuberu Bagu (a pronúncia japonesa de Nouvelle Vague) nunca correspondeu a um movimento inteiramente espontâneo, nem à urgência corporativa de fundar algo com objectivos estéticos comuns. Essa classificação nasceu, antes, por mero marketing da Shochiku, o estúdio mais tradicionalista do Japão, que queria tornar apelativa para os espectadores mais jovens a vinda de uma nova fornalha de realizadores (Nagisa Oshima, Masahiro Shinoda, Tsutomu Tamura e Kijû Yoshida), associando-a à geração contemporânea de cineastas franceses. Por essa mesma razão, terá de haver sempre um certo cepticismo em relação a esse termo, já que muitos dos cineastas envolvidos, incluíndo Yoshida, nunca se reconheceram, nem nas obras dos seus camaradas de ofício, nem num movimento artístico mais abrangente.
[17] Um importante filósofo que influenciou o pensamento sobre a imagem na geração de 60 japonesa, principalmente Yoshida. Ver Mathieu Capel em Évasion du Japon.
[18] Leia-se ainda Yoshida: “De facto, nesta película, as repetições são particularmente numerosas, afundam-nos num estado de apatia. E, justamente, essas repetições parecem adormecer a nossa consciência” (Yoshida 2011, p. 158).
[19] Segundo o próprio, nunca quis ser realizador de cinema e apenas escolheu a profissão, abandonando o desejo de ingressar no curso de filosofia, para sustentar a sua família.
[20] O próprio Yoshida escreveria o seguinte: “O criador não é meramente um performer a ser visto. Ele também chega a conhecer-se através das imagens que produz. Dentro do ilimitado movimento reflexivo decorrente de se estar preso entre dois espelhos transparentes de ver = ser visto, o filme adquirirá riqueza” (Yoshida 2010, p. 18).
[21] A mesma entrevista, já mencionada, consta nos extras do DVD francês de Akitsu onsen.
[22] Termo votado aos maiores enganos. No Japão corrente, feminisuto não significa feminista, mas antes um homem simpático, cavalheiro ou, até mesmo, condescendente em relação às mulheres (algo que, ironicamente, um certo tipo de feministas parece odiar). No caso de Mizoguchi, esse termo, como nos diz Audie Bock, equivale a um tipo específico de veneração pela mulher, pela capacidade de carregar todo o tipo de sofrimento às costas, pela capacidade de se esquecer de si.
[23] A indústria japonesa, à semelhança da americana, também teve os seus seis grandes estúdios: a Shochiku, a Daiei, a Nikkatsu, a Toho, a Toei e a Shintoho.
[24] Devido ao seu conteúdo abertamente crítico dos movimentos políticos estudantis dos anos 50, o estúdio retirou o filme de exibição, somente três dias após a sua estreia, alegando falta de espectadores. Certamente, o assassinato de Inejiro Asanuma, o líder do partido socialista japonês, nesse dia parece ter sido a razão obscura por detrás de tal decisão intempestiva.
[25] Com consciência, distancio-me das observações de Ayako Saito quando classifica Akitsu onsen como radicalmente diferente de todos os outros filmes com Yoshida e Okada. As diferenças entre a primeira colaboração e as restantes são evidentes, mas não ecoará no suicídio de Shinko as seguintes palavras de Saito? “Podemos apenas perguntar-nos se Yoshida, nos seus próprios filmes, intencionalmente ou não, estava a tentar destruir a persona da actriz Mariko Okada” (Saito 2011, p. 35).
[26] Composta por seis filmes: de Mizu de kakareta monogatari até Saraba natsu no hikari (Farewell to the Summer Light, 1968).
[27] Posse enfraquecida somente na ocasião de se quebrar a distância que prende uma imagem à virtualidade.
[28] O mesmo que dizer: detentor de um real virtual, isto é, de um virtual com pretensões de real.
[29] No cinema de Yoshida, contrariamente, o olhar é impotente em ambas as definições do termo: não consegue produzir um sentido bruto, nem excitar-se com o sentido que produziu. As estratégias de mise en scène em Yoshida expressam sempre linhas de sombra, anfibolias e jamais certezas. Ora, alguém nessa situação radical de impasse, priva-se de prosseguir com a espontaneidade alastradora e pouco reflexiva do desejo. Um indivíduo com dúvidas não ejacula.
[30] O cinema, entendido como teoria das superfícies, põe a descoberto a relação entre essência e aparência e os modos falaciosos como acedemos à primeira realidade a partir da segunda. Partindo do pressuposto que a extensão plana da tela é tudo o que temos disponível, qualquer profundidade só pode ser dada através de uma interpretação dos dados dessa superfície primeira. Ou seja, do parecer para o ser, sobrevive sempre qualquer coisa similar a um salto de fé.
[31] E desde que os últimos se enamoram das primeiras sem ser preciso resposta.
[32] O erro da pretensão de conhecimento relativo à vida exterior das actrizes não difere nada de todas as outras pretensões de conhecimento que o cinema também nos oferece. Presos na superfície, apenas podemos adivinhar profundidades sonhadas.
[33] Não esqueçamos Bresson: “O actor é duplo. É da presença alternativa dele e do outro que se habituou o público a gostar” (Bresson 2000, p. 92).
Bibliografia citada:
Bresson, Robert (2000). Notas Sobre o Cinematógrafo. Porto: Porto Editora.
Capel, Mathieu (2015). Évasion du Japon: Cinéma japonais des années 1960. Paris: Les Prairies Ordinaires.
Mulvey, Laura (1999). “Visual Pleasure and Narrative Cinema.” In Leo Braudy e Marshall Cohen (Eds.), Film Theory and Criticism: Introductory Readings (pp. 833-44). New York: Oxford UP.
Russel, Catherine (2008). The Cinema of Naruse Mikio: Women and Japanese Modernity. Durham: Duke University Press.
Saito, Ayako (2010). “Women and Fantasy: Yoshida Kijû and Okada Mariko.” In Dick Stegewerns (Ed.), Yoshida Kijû: 50 Years of Avant-Garde Filmmaking in Postwar Japan (pp. 33-41). Oslo: Norwegian Film Institute.
Yoshida, Kijû (2004). Ozu ou L’Anti-Cinéma. Paris: Institut Lumière, Actes Sud, Arte Éditions.
Yoshida, Kijû (2010). “My Film Theory: The Logic of Self-Negation.” In Dick Stegewerns (Ed.), Yoshida Kijû: 50 Years of Avant-Garde Filmmaking in Postwar Japan (pp. 15-19). Oslo: Norwegian Film Institute.
Yoshida, Kijû (2011). “Medo al espacio.” In Juan Manuel Dominguez (Ed.), Kijû Yoshida: El Cine como Destruccíon (pp. 153-159). Buenos Aires: Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente.
Todas as traduções são da responsabilidade do autor.