Se é possível fabricar uma bomba com o recurso a uma caixa de fósforos e a uma garrafa de bagaço, não deixa de ser naturalíssimo que uma curta metragem de “terror” seja construída à base de uma câmara minúscula, um programa de edição e de meia dúzia de dinheiros para acessórios. É este o kit de sobrevivência da maior parte dos realizadores amadores que têm enchido os sites de partilhas de vídeos com centenas ou mesmo dezenas de obras do género; em particular, foi com estas ferramentas e este minimalismo que o sueco David F. Sandberg andou a produzir pequenas maravilhas (disponíveis no seu canal de YouTube) entre 2013 e 2016, antes de ir para Los Angeles realizar Lights Out (Terror na Escuridão, 2016), a versão longa de uma sua curta de 2013.
Cam Closer (2013)
Lights Out, estreado este ano entre nós, é um filme que dura, se a memória não me falha, uns cinco minutos, sendo a partir desse momento um pastorear de personagens monótonas que justificam a sua existência como caução para os jump scares que se sucedem a um ritmo de máquina de montagem que fariam Henry Ford bater no peito cheio de orgulho. Como diz o próprio Sandberg neste vídeo, “simple is always better”, e aquilo que era uma curta metragem tão esquelética na sua produção como efectiva nos seus resultados, transformou-se num filme repleto de gorduras e tão eficaz como estar hora e meia a olhar para um frigorífico (tanto cheio como vazio). Deve ser coisa pouca e de influência nula, isto de se passar de um regime de produção que envolve duas pessoas para um outro que aglomera umas quatrocentas, desde o executivo no estúdio a enfardar lagosta ao singelo distribuidor de pão pelas equipas.
Sandberg usa a casa onde vive como matéria cinematográfica: quadros, cofres, sótãos, sofás, um conjunto de objectos que na sua irrelevância, e com a ajuda de uma assinalável percentagem de imaginação, poderão constituir boa maquinaria dramática.
Essas duas pessoas, Sandberg e a esposa, Lotta Losten, constituem a super equipa de realizadores, produtores, argumentistas, electricistas, técnicos de som, chefes de catering e actores que foi responsável pelas suas curtas durante três anos, e o que se apreende da sua visão conjunta é uma realidade imbuída de “terror doméstico”, uma vida quotidiana numa casa quotidiana a ser constantemente invadida por demónios, espíritos, cadáveres e demais criaturas do além. Sandberg usa a casa onde vive como matéria cinematográfica: quadros, cofres, sótãos, sofás, um conjunto de objectos que na sua irrelevância, e com a ajuda de uma assinalável percentagem de imaginação, poderão constituir boa maquinaria dramática. Ninguém disse que não se poderiam capitalizar as tralhas do Ikea como armas do horror.
Terror que surge numa compressão narrativa de três actos a carburar em pleno. Há o estabelecimento (geralmente com Lotta Losten a ouvir um barulho estranho em casa), o desenvolvimento (Lotta a tomar conhecimento da origem dos estranhos sons), e a conclusão (Lotta a desgraçar-se para a vida, normalmente). Esta conclusão, o money shot, tem o seu proveito emocional directamente relacionado a um método peculiar de Sandberg em fazer evoluir a sua pequena escalada de inquietude: colocando Lotta, a cada milésimo de segundo (também não há muito mais tempo), mais próximo do “Mal”. É assim em Lights Out (2013), com as constantes ligações e interrupções de luz, em Cam Closer (2013), com um telemóvel que capta uma realidade paralela, ou em Pictured (2014), em que um simples gesto de uma mão consegue elevar o ritmo cardíaco para níveis pouco abonatórios para a saúde. É um programa de antecipação que finalmente terá a sua descarga nervosa no último plano, não sem, por vezes, irmos parar a regiões mais humorísticas, como em Not So Fast (2014) ou Closet Space (2016).
Para a funcionalidade dos seus trabalhos, David e mulher, como amantes do género, sabem que têm que colocar a câmara no lugar certo e exacerbar as qualidades sonoras de cada ínfimo barulho. O mero som de se andar por casa tem de constituir prova de desequilíbrio emocional, e não vamos lá com som directo. Não deve haver um único som nestas curtas que não tenha sido adicionado em pós-produção (Vergonha!, exclamam os realistas cinematográficos, a empregarem matérias estritamente cinematográficas numa obra de cinema, acrescentarão ainda, ao passo que outros dirão, Escândalo! Artificio!. É verdade, caros e caras Wisemans wanna bes, absolutamente inacreditável, isto de se trabalhar no cinema com métodos especificamente cinematográficos. Petição, já! Bom, chega disto). Esta cristalização sonora recolhe os seus frutos no fora de campo, como em Lights Out ou Pictured, com correrias pela casa a constituírem evidente forma de nos provocar um aumento gradual da tensão. Originalidade? Nenhuma, nem para aqui deve ser chamada.
Estas curtas de Sandberg aliam modéstia a um mínimo de sofisticação na sua execução, e senão revolucionam (para quê?, já agora) um género, cumprem exemplarmente, com menor ou maior sucesso, a sua cartilha do medo em movimento. São como breves ensaios sobre os clichés do género e basta ver, para isso, os catorze segundos de See You Soon (2014). Esperemos é que a brusca passagem de uma ambiência individual e doméstica para o terreno colectivo e globalizado de Hollywood não faça muito mossa a Sandberg, embora depois de termos visto Lights Out, as esperanças sejam residuais. Annabelle 2? Bom, dinheiro no bolso não faltará.
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