Sempre me irritaram um bocado aqueles “retalhistas da hermenêutica” que, para explicar a evolução de um autor, se apressam a dividir a sua obra em metades. Fala-se, esquizofrenicamente, de um “primeiro” e de um “segundo” Godard, de um “primeiro” e de um “segundo” Heidegger (mas, por que não de um “terceiro” ou de um “quarto”?), e isso sugere que há, nos seus trabalhos, um momento de ruptura. É verdade que há casos em que é difícil não pactuar com o tique. Um deles é o de Béla Tarr, cuja obra parece articular-se (de uma forma quase “natural”) em duas fases bem distintas: a dos “pequenos” dramas realistas sobre a decomposição da Hungria socialista das décadas de 70 e 80 [é o eixo que vai de Családi tuzfeszék (O Ninho Familiar, 1979) a Öszi almanach (Almanaque de Outono, 1989)], e a das “grandes” tragédias formalistas que fariam o relatório de autópsia de um mundo já colapsado [é o eixo que vai de Kárhozat (Danação, 1988) a A torinói ló (O Cavalo de Turim, 2011)]. A despeito do carácter escolar da divisão (que, como diria Cioran, é “demasiado simétrica para ser verdade”), uma coisa é certa: a partir de Danação, a obra de Béla Tarr mudou. Não me referirei aqui (por preguiça) ao modo como essa transformação foi catalisada pelo encontro de Béla Tarr com uma equipa de colaboradores que – ao que tudo indica – o ajudou a cumprir as promessas do seu cinema, dotando-o, por exemplo, de banda-sonoras reiterativas que espelhavam o enquistamento físico das personagens (foi o trabalho do compositor Mihály Vig). Em vez disso, referir-me-ei apenas àquilo que parece ser evidente: a vontade revelada pelos “últimos” filmes do cineasta de traduzir em termos de duração (isto é, em planos sequência) aquilo que os seus “primeiros” filmes haviam procurado articular em termos de espaço (isto é, em planos cerrados). A saber: a asfixia daqueles que vão tentando libertar-se da lei da repetição, encetando movimentos de fuga que, num mundo destituído de horizonte (diz-se que Deus morreu e vê-se que Lenin está morto), os reconduzem inevitavelmente aos seus respectivos pontos de partida.
Esta maneira confortável de “arrumar” o espólio de Béla Tarr (segmentando-o em dois blocos formalmente muito diferentes) é traída por dois filmes de 1982, onde a construção do tempo desempenha um papel fundamental. Falo do Macbeth (1982) que o cineasta realizou para a televisão húngara (condensando a tragédia de Shakespeare em dois planos sequência), mas, também, do magnífico Panelkapcsolat (Relações Pré-Fabricadas, 1982), cujo sentido depende – quase por inteiro – da caótica organização temporal da narrativa.
A obra em causa arranca com uma sequência que explora um recurso incomum no cinema de Béla Tarr: o contraste irónico. Nela, uma longa panorâmica circular foca os rostos compenetrados dos membros de uma banda filarmónica que, num campo de futebol de cimento emparedado entre dois gigantescos blocos de apartamentos suburbanos, vão extraindo dos seus instrumentos os acordes de uma marcha. O contraste estabelecido entre o tom celebratório da composição e a aridez do décor (acentuada por uma granulosa fotografia a preto e branco) é quanto basta para vertebrar um comentário político: há um “grande projecto” em curso (o da Hungria socialista), mas aqueles que o “interpretam” não colheram ainda os frutos das suas promessas. Depois, e enquanto a música prossegue, a câmara derivará entre os rostos anónimos das famílias que vão assolando às janelas para contemplar o espectáculo.
É justamente na vida quotidiana de uma delas que o filme irá mergulhar, começando por coreografar aquilo que parece ser o fim da sua história. De facto, logo no princípio, Béla Tarr saca da cartola um plano sequência com cerca de cinco minutos de duração, que, em cerradíssimos enquadramentos, detalha o momento em que o pater familias abandona a casa sem dar explicações, deixando para trás uma mulher chorosa e dois filhos pequenos. O que se segue é uma amálgama de episódios sobre o dia a dia daquela família, que, no seu apegamento à lei de causalidade, o espectador interpreta como um conjunto de flashbacks destinados a ilustrar os motivos da cisão do casal. Nesses planos, assistimos quase sempre à repetição (com ligeiras variações de discurso e de cenário) de uma mesma discussão conjugal: aquela em que ela o acusa de não a ajudar a cuidar dos filhos, e em que ele tenta abreviar ao máximo a conversa, para poder ir ver televisão ou beber uns copos com os amigos.
No decurso do processo de reiteração dessa cena elementar, a nossa atenção desloca-se, de forma insensível, da superfície para o fundo, ou seja: para as divisões de um apartamento arrendado ao estado (estávamos, então, em plena crise imobiliária na Hungria). Trata-se de um décor que se destaca pelo seu aspecto “descarnado”: basta inspeccionar en passant a nudez das divisões, para perceber que a família vive à míngua (e é comovente, no seu understatement, a cena em que o marido oferece à mulher um spray de laca para o cabelo, de modo a assinalar a passagem dos seus nove anos de casados). Mas, mais do que anoréctica, a casa é claustrofóbica, operando como um colete de forças que aprisiona os movimentos das personagens (ela diz que já não aguenta passar os seus dias fechada no apartamento, ele está sempre com vontade de sair dele…).
As duas sequências em que o casal se evade do espaço doméstico mais não fazem, no entanto, do que reforçar essa sensação de clausura. A primeira é aquela em que eles se deslocam até à piscina do bairro (uma espécie de fossa séptica ensombrada pela chaminé de uma fábrica), descobrindo que o seu movimento os reconduziu ao passado, ou melhor: à mesma discussão que haviam tido antes. A segunda é aquela em que o casal passa uma noite com os amigos num salão de baile. Estamos perante uma sequência musicada que parece arrastar-se inutilmente no tempo, e que – como aquelas que Béla Tarr viria mais tarde a encenar em Danação ou Sátántangó (O Tango de Satanás, 1994) – promove um não-evento. Por ela, nada vem, a não ser isto: uma nova exposição do atolamento das personagens, com a câmara a vaguear livremente entre o rosto desolado dela (que espera em vão pelo momento em que ele a convide para dançar) e o rosto absorto dele (imerso nas nostálgicas canções que vai entoando com os amigos).
Os vários espaços do filme (sejam eles públicos ou privados) funcionam, desta maneira – e numa lógica de matrioscas –, como jaulas dentro de jaulas, lugares de cativeiro que não oferecem aos corpos quaisquer pontos de fuga, limitando-se a enquistá-los um pouco mais num quotidiano que, apesar de uma ou outra diferença de superfície, se vai incansavelmente repetindo na sua substância. O tempo que é gerado pela justaposição desses espaços é, pois, e por assim dizer, um “tempo satânico”, onde, como no livro do Eclesiastes, o futuro se confunde com o passado: “aquilo que foi é aquilo que será; aquilo que foi feito há-de voltar a fazer-se: e nada há de novo debaixo do sol” (1:9). Não é esse o tempo que é anunciado – a partir da televisão que desponta no centro da sala da família – por um dos historiadores do regime: um tempo progressivo e teleológico, que se encaminharia de forma linear no sentido da emancipação do homem (“houve a pré-história, depois o feudalismo e, agora, o socialismo combate o capitalismo para preparar o comunismo”). Amanhã haverá, talvez, o paraíso na Terra. Para já, há apenas um inferno cozinhado em lume brando. Designadamente, um intervalo histórico (aquele que separa a realidade socialista do sonho comunista), onde os homens se descobrem condenados a habitar um quotidiano moroso e indiferenciado, feito da incessante repetição dos mesmos gestos: trabalhar para o advento de uma libertação que parece estar cada vez mais longe de se materializar, e, depois, regressar a um apartamento pré-fabricado que se assemelha a uma célula prisional (bela contradição).
Não se estranhe, por conseguinte, que a penúltima sequência de Relações Pré-Fabricadas pareça descrever, circularmente, os momentos que precederam a ruptura do casal. Nesse quadro, o marido diz à mulher que o patrão da sua fábrica lhe propôs um trabalho na Roménia, onde, ganhando o dobro, ele poderá facilmente juntar dinheiro para comprar um carro (isto é: um meio de evasão). Ela, por sua vez, diz-lhe que o que importa é que estejam juntos. Findo esse diálogo, e em jeito de falso corolário, Béla Tarr reenxerta no filme a sequência de abertura: aquela em que o marido discute com a mulher e abandona o apartamento. Mas, convém fazer notar que a sequência que então vemos não constitui a simples reprodução – antes, uma reencenação – daquela que havíamos visto no início (as variações são infinitesimais, mas claramente perceptíveis). Não é por acaso que assim acontece. Entenda-se: aquilo que aqui (e como sempre) cativa o cinema de Béla Tarr, não é (nunca foi) a possibilidade de construir círculos temporais perfeitinhos – isso fica para os amantes de simetrias deste mundo. Aquilo que o cativa é, sim, a construção de uma duração (a dos excluídos da História) onde a diferença é tragada pela repetição, e onde, portanto, o progresso se torna insensível. Escusado é pois perguntar se o que vimos foram as cenas que preparam a desintegração de um casal, ou os episódios que detalham a sua reconciliação; se aquele marido ainda não saiu de casa, ou se a ela já voltou depois de ter partido. Na verdade, tanto faz: é que, para os eternamente vencidos, antes é depois e depois é antes. Sempre.
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