A principal razão pela qual decidi marcar presença na última edição do Festival de Locarno foi o tributo a Paulo Rocha, o realizador português falecido em 2012. Na filmografia de Rocha foi principalmente Os Verdes Anos (1963) a obra que mais impacto me causou. Vi o filme em Paris há 20 anos na Cinemateca Francesa, creio, e deixei-me imediatamente seduzir pela sua modernidade e pelo seu lirismo. Acima de tudo fiquei impressionado pela forma sensual de descrever a paisagem urbana, a de Lisboa, uma cidade que ainda não conhecia mas que decidi visitar esse mesmo ano, devido à influência do filme.
Os Verdes Anos conta a história de um trágico romance amoroso entre Júlio, um jovem que vem da província para Lisboa para aprender a ser sapateiro numa poeirenta oficina estabelecida na cave de um edifício moderno, e Ilsa, uma mulher-a-dias que trabalha num edifício das redondezas. Juntos vagueiam por Lisboa, dos quarteirões modernos à cidade antiga, revelando-se a pouco e pouco um ao outro. Mas o seu amor encontra um forte entrave devido às suas origens sociais e à pobreza. As aspirações de Ilda a uma vida confortável e burguesa levam-na a querer separar-se. Júlio, completamente desesperado e cheio de raiva, apunhala Ilda até à morte, um acto de loucura que impregna o filme de uma profunda melancolia.
Feito durante os anos da ditadura do regime de Salazar, Os Verdes Anos, como Acto da Primavera (1962) realizado no ano anterior por Manoel de Oliveira, anuncia o nascimento do cinema novo português, uma corrente em breve seguida por outros realizadores como Fernando Lopes, António Reis e João César Monteiro. A importância do filme, para além da sua modernidade estética, está numa visão crua e desencantada das diferenças de classe em Portugal, e a sua habilidade para analisar o condicionamento social e psicológico das classes trabalhadoras, uma visão que ia ao encontro de um certo exotismo que caracterizava até então as descrições da cidade de Lisboa na história do cinema português.
Uma sequência em especial tocou-me particularmente, a única aliás de que me recordava de maneira precisa. Ela associava todos os elementos do filme que me haviam marcado: realismo, romantismo, poesia urbana. É domingo à tarde e Júlio e Ilda caminham pelas ruas vazias da cidade, errância essa pontuada pelos gritos da multidão que assiste a um jogo de futebol nas proximidades. O estranho e calmo barulho abstracto provindo do estádio ao longe acompanha a solitária e silenciosa marcha dos amantes, como se se tratasse de uma respiração interna. Eu esperava impacientemente pela projecção de Os Verdes Anos no final do festival, esperando reviver as intensas emoções que o filme me havia provocado vinte anos antes, sobretudo essa bela sequência dos amantes vagueando pelas ruas vazias da cidade, com essa muito “original” banda sonora da multidão que assistia ao jogo de futebol.
A sala estava cheia para esta sessão apresentada por José Manuel Costa, o Director da Cinemateca Portuguesa, por Isabel Ruth (a Ilda do filme) e outros dois representantes da geração mais jovem do cinema português, Pedro Costa e João Pedro Rodrigues. A sessão começa: eu reencontro os rostos familiares, uma cidade que amo profundamente, um doce lirismo retocado com melancolia. O casal passeia por Lisboa, um confuso encontro com um turista inglês, uma conversa tensa entre Júlio e o seu tio, Ilda acabando com a relação, o assassínio e depois a fuga do herói na noite, cercado pelas luzes dos faróis dos carros.
Mas para meu grande espanto, nem o mínimo rasto da “sequência do futebol”, o único que tinha verdadeiramente ficado gravado na minha memória: ela tinha desaparecido completamente. Siderado, dirigi-me aos anfitriões da noite para esclarecer este mistério. José Manuel Costa disse-me que certamente a cópia não era perfeita, que talvez faltassem algumas imagens, mas que a sequência em questão nunca existiu e que ela tinha provavelmente sido apenas fruto da minha imaginação. O Pedro Costa sugeriu que talvez eu estivesse a confundir Os Verdes Anos com um outro filme português realizado na mesma época, Belarmino (1964) de Fernando Lopes, no qual a errância pelas ruas de Lisboa ocupa um lugar central. Mas na minha memória eu nunca tinha visto o filme de Lopes. Ou talvez tivesse confundindo com Recordações da Casa Amarela (1989) de João César Monteiro, no qual o herói escuta um relato de futebol pela rádio? Mas o filme de Monteiro é a cores e a sequência da qual me lembrava era, seguramente, a preto e branco…
“Os filmes mais belos são aqueles que nunca vimos”, disse uma vez Godard. Filmes fantasiados, filmes inventados, Os Verdes Anos é sem dúvida para mim um filme sonhado. A sequência em Falta, no sentido lacaniano do termo, é provavelmente fruto da associação de dois desejos que me remetem à minha infância: o cinema e o futebol. De facto, até aos doze anos joguei futebol numa equipa da minha cidade natal em Israel (Hapoel Ramat Gan), até que um acidente de automóvel me fez pôr termo à minha carreira desportiva, evento que coincide com a minha maravilhosa descoberta do cinema. A minha invenção de uma sequência inexistente de Os Verdes Anos não corresponderá, simbolicamente, à reparação de uma ferida? Não seria esta uma maneira de prolongar o filme, de dele me apropriar? É incrível que de todos os filmes possíveis tenha sido um filme português de 1963 a despertar em mim estas lembranças da infância. Como se fosse necessário um afastamento geográfico e temporal para que este acto de projecção e de deslocamento pudesse ocorrer.
No seu livro “L’hallucination artistique. De William Blake à Sigmar Polke”, Jean-François Chevrier aborda o cinema como uma actividade mental, ligando observação e imaginação. O autor refere-se ao texto de André Bazin sobre Umberto D (1952), o filme de Vittorio de Sica, apontando o erro do crítico francês na sua descrição da famosa cena do despertar matinal da jovem doméstica. Bazin descreve-a a afogar formigas no lavatório da cozinha, quando de facto essas formigas surgem numa sequência anterior e não no lavatório mas na parede (a mulher tenta queimá-las com um jornal em chamas). É interessante que esta “alucinação” seja provocada por um filme neorrealista e expressa num texto que procura salientar o sentido de duração de De Sica e a sua atenção aos gestos e objectos quotidianos. “Bazin – escreve Chevrier – descreve a sequência ao passar ele próprio ao limite da percepção, isto é, do campo da percepção consciente ao inconsciente[1]”. Enquanto na história do cinema a imagem das formigas aparece inevitavelmente associada ao icónico filme surrealista Un Chien Andalou (1929) de Buñuel e Dali, o texto de Bazin sobre Umberto D é um exemplo de “percepção alucinatória” no próprio coração do realismo cinematográfico. Ou como diz Chevrier: “Bazin define o neorrealismo, mas ele está assombrado pelo surrealismo.[2]”
É preciso dizer que este tipo de erros era recorrente antes da chegada do vídeo e mais tarde do DVD e do VOD, época durante a qual a projecção em 35mm, a maior parte das vezes numa sala de cinema, era a única forma de ver os filmes. A possibilidade de visionar o mesmo filme várias vezes em vídeo ou DVD, de regressar a uma sequência ou a uma imagem específica, reduz sem dúvida a margem de erro[3].
Contudo, os erros, de um tipo ou de outro, existirão sempre no domínio da interpretação dos filmes, como um factor “inato” da recepção fílmica e da natureza “fantasmática” do objecto cinematográfico. Sem entrar nas afirmações barthesianas sobre “a morte do autor”, hoje ultrapassadas, os erros fazem parte das margens de interpretação e da liberdade de julgamento deixada aos espectadores. Elas permitem reduzir a autoridade absoluta do autor sobre a sua obra para fazer um objecto autónomo e aberto. Ao prolongar a obra, ao personalizá-la, mesmo através de erros, o espectador transforma-a num objecto dinâmico, vivo, em movimento, que pode transformar-se no seu encontro com diferentes públicos e em função de um contexto histórico em mudança. Em vez de um texto fechado, o erro permite ver o filme a partir da sua fragilidade, como potencialidade infinita, cuja significação é fruto de uma tensão entre as intenções do autor e a inteligência, a sensibilidade e os fantasmas daquele que a recebe e dela se apropria.
Quer queiramos, quer não, o efeito alucinatório está ainda largamente presente no cinema contemporâneo, e mesmo, sob diferentes formas, nas suas grandes celebrações globalizadas. Pensando por exemplo na experiência dos festivais de cinema no qual o crítico pode chegar a ver cinco filmes por dia. Nesse caso vejo-me imerso num estranho estado, quase alucinatório, no qual um dos efeitos perversos é o de misturar os filmes entre si. Este é o momento no qual a intriga de um filme se confunde com a de outro, no qual as personagens de um policial coreano se encontram com os camponeses de um drama iraniano, o momento no qual crio um meta-filme imaginário alimentado por todas estas fortes sequências impressas na minha memória desde o início de um festival. É também este o momento no qual decido marcar um momento de pausa passeando pela Côte d’Azur ou pelas montanhas de Tessin, uma maneira de reencontrar o sentido da realidade e, talvez, prolongar as experiências dos filmes por outros meios.
Ariel Schweitzer
Tradução: Carlos Natálio
Ariel Schweitzer é um historiador de cinema, crítico na revista Cahiers du Cinéma e professor (Paris VII /Tel-Aviv University). É autor do livro Le nouveau cinema israélien (Paris, 2013), Le cinema israélien de la modernité (Paris, 1997/ Tel-Aviv, 2003) e o editor de Il cinema israeliano contemporaneo (Veneza, 2009). É também o tradutor para hebraico de Notas Sobre o Cinematógrafo do realizador francês Robert Bresson e o curador de várias retrospectivas, em Israel, Itália, França dedicadas a Bresson, Jean-Luc Godard, David Perlov, Amos Gitai e Uri Zohar.
*Um agradecimento a Bernard Eisenschitz. As suas empolgantes observações no autocarro que nos levou desde Locarno ao aeroporto de Milan Malpensa foram a inspiração para este texto.
[1] Jean-François Chevrier, L’hallucination artistique. De William Blake à Sigmar Polke, Paris, Éditions L’Arachnéen, 2012, p-584.2).
[2] Idem.
[3] Admitamos que no caso de Bazin os erros ou inexactidões eram bem raros. Bazin era conhecido pelo seu rigor e pelo hábito de ver varias vezes os filmes que apreciava.