É certo que a obra de Oliveira é rica em exemplos meta-cinematográficos, o filme dentro do filme, o realizador-personagem, a rodagem dentro da rodagem, a ida à sala de cinema. Só recentemente (no novo milénio) é que a sua obra começou a incluir filmes que revisitam explicitamente outros filmes seus, ou seja, que incluíam excertos desses outros filmes. Nesses filmes Manoel de Oliveira não se limita a combinar uma colecção de melhores momentos da sua obra, ou a recuperar títulos menos conhecidos, mas, pelo contrário, fá-lo no sentido da análise autocrítica, de uma reescrita, da continuação de um trabalho nunca encerrado e como ferramenta de rememoração.
Desse conjunto de filme o inaugural é Porto da Minha Infância (2001) que trabalha com imagens de Douro, Faina Fluvial (1931), Aniki Bobó (1942) e O Pintor e a Cidade (1956) — mas também com actualidades do Jornal Português. Depois viriam filmes como Romance de Vila do Conde (2008) e O Poeta Doido, o Vitral e a Santa Morta (2008), onde Oliveira trabalha sobre imagens de um projecto até então nunca terminado; O Velho do Restelo (2014) que regressa a Amor de Perdição (1979), ‘Non’, ou a Vã Glória de Mandar (1990), O Dia do Desespero (1992) e O Quinto Império – Ontem Como Hoje (2004) e, por fim, 1 século de energia (2015), campanha publicitária para a EDP que o faz regressar a Hulha Branca (1932).
A questão da revisitação em obras finais, em que a debilidade dos realizadores é um dilema com os quais os próprios e a produção têm que lidar, é muitas vezes colocada como uma alternativa ao regular modo de fazer cinema com uma câmara e actores diante dela. Ou seja, como solução possível mas não necessariamente desejada. No caso de Porto da Minha Infância a saúde de Manoel de Oliveira não era um problema, no entanto outra adversidade logística se impôs, como o próprio descreve na folha de sala que acompanhou a primeira exibição do filme na Cinemateca Portuguesa:
Filmei dentro do que era possível, pois a cidade estava completamente tapada nas praças e nos monumentos, limitando-me de todos os lados. Assim, recorri à Cinemateca para buscar o que encontrasse possível de ser utilizado, aos meus antigos filmes, a fotografias e a algumas encenações, para que este filme não fosse um álbum fotográfico.
Os taipais constituíram um motivo para o recurso às imagens de arquivo, nomeadamente das actualidades do Jornal Português dedicadas a exposições de carros e flores no Palácio de Cristal, à exposição do avião que Sacadura Cabral utilizou para a travessia do Atlântico, ou a subida de um artista de circo ao topo da Torre dos Clérigos ou de excertos selecionados de O Pintor e a Cidade incidindo nas ruas, no movimento dos carros, nas gentes, nos barcos do Douro e na passagem do comboio sobre a ponte D. Luís. Aqui a utilização de imagens de um filme seu pouco mais resulta do que uma solução prática, com o simples propósito de dar imagens de um Porto do passado. Isto porque não só as imagens não se destacam das demais, como a sua identificação só resultará de um conhecimento próximo da obra citada.
Inversamente, a utilização das referidas actualidades resulta um trabalho mais apurado no olhar do cineasta. Num dos casos Oliveira encontra num plano do Jornal Português duas figuras masculinas que devido à distância que têm da câmara e à fraca qualidade da imagem assemelham-se (sem ser possível confirmar mais do que essa parecença) a Fernando Pessoa e José Régio. Oliveira inventa um cartão, qual cinema mudo, onde se lê “Pela semelhança e por estarem parados a pousar, são por certo os poetas Fernando Pessoa à esquerda e José Régio”. Nesta solução o realizador constrói uma simples ficção a partir de um documento, isto é, tirando partido da aura benjaminiana das actualidades da época, recorrendo a um dispositivo recorrente dessas actualidades (o cartão descritivo) e capitalizando na conhecida relação de amizade que teve com Régio, faz-nos encontrar nas imagens granulosas as duas figuras da poesia nacional.
O cineasta consegue introduzir naquilo que é um documento do passado e um atestado de existência de um outro tempo, uma fantasia da sua memória, anulando a ideia de univocidade do testemunho das imagens de arquivo e demonstrando o quão simples pode ser o dispositivo de re-coreografia dos materiais fílmicos. Outro exemplo, é a referida escalada da Torre dos Clérigo que é intercalada com contra-campos de Jorge Trêpa interpretando o avô, enquanto jovem, filmado a cores e em plano picado, observando. Converte deste modo as imagens do Jornal Português num plano subjectivo do próprio realizador, e portanto um acesso directo à sua memória. O documento converte-se numa recordação, o testemunho da câmara verte-se testemunho do cineasta. Ou como nos diz o próprio, a certo momento da narração que acompanha todo o filme:
Graças ao cinema, podemos ver e rever, estes bocados. Recordar coisas que só em nós viveram, só a memória de cada um o pode fazer. E fazê-lo não será a melhor maneira de nos dar a conhecer? Porém, com a passagem do tempo, muitas memórias ficaram sepultadas.
O cinema que se conservou nos arquivos, esse não ficou sepultado e portanto é usado como mecanismo de reavivamento da memória, ou de construção de novas memórias. Aliás, há um jogo entre as voice over do filme, a dominante é a do próprio realizador, recordado. Mas por vezes uma outra imiscui-se, a do referido Jorge Trêpa que, interpretando Oliveira, ajuda o primeiro a lembrar-se dos pormenores que lhe fugiam, dos nomes, de uma ou outra situação. Pondo de forma simples, como o diz Iván Álvarez, “Tudo aquilo que o cineasta já não seja capaz de recordar deve ser imaginado através da auto-ficção”.
Ainda assim, o exemplo mais notório e o único momento de evidente auto-re-coreografia no filme (já que a introdução de imagens de Douro, Faina Fluvial reduz-se ao marco histórico, simples apontamento de um evento do passado) faz-se com a inclusão de duas pequeníssimas sequências de Aniki Bóbó. O realizador descreve uma sua prima, Gilhermina, com a qual estava enamorado. Posto isto surge um plano de Carlitos e Terezinha cruzando-se e trocando olhares silenciosos e comprometidos. Continua a narração em que explica que “à noite, subia as escadas ao seu encontro, cauteloso para não acordar ninguém” e “com inocência de crianças trocávamos um cândido beijo”. Ao que se segue um plano do casal protagonista Aniki Bóbó trocando um beijo nos telhados nocturnos do Porto. Assim várias camadas de significado se estabelecem: há o evento da infância do realizador, o conto de João Rodrigues de Freitas, Os Meninos Milionários, a sua adaptação inspirada pela biografia de Oliveira, e agora a sua memória do primeiro através do terceiro. Ou seja, mais do que uma ilustração de um episódio biográfico, as imagens de Aniki Bóbó configuram já uma forma de biografia, elas já são a manifestação de um outro passado, diferente daquele que nelas está figurado.
Posto de outra forma, o cinema é ferramenta de acesso a um passado, mesmo que o passado que nos ofereça não esteja exactamente representado: é o “cinema enquanto material tornado ele próprio ‘memória’” como o descreveu Luís Miguel Oliveira ou como o pôs João Bénard da Costa, “fantasmas cinematográficos de que só com cinema pode existir, do que só o cinema faz existir”. Não tendo o espectador certeza do beijo cândido de Guilhermina e Manoel, podemos agora, através do cinema, aceder a esse momento através da propriedade colectiva que são as imagens deste filme — uma posição a distância optimal entre o cinismo cego e o fetichismo iconófilo.
Citado por Augusto M. Seabra, Oliveira apresentou-se perdido no jogo de espelhos por si próprio instalado:
O mundo então é uma ilusão, a única coisa verdadeira é a memória, mas a memória é uma invenção, quer dizer no cinema a câmara pode fixar esse momento, mas o momento que ele traça no fundo é um fantasma desse momento, já é não a certeza se esse momento existiu fora, se a película é a garantia de existência desse momento, não sei, ou sei cada vez menos.
Por essa confusão é que o elemento arquitectónico ganha importância recorrente em Porto da Minha Infância (uma e outra vez regressamos à imagem das ruína da casa onde nasceu) e na sua obra como um todo. Há na ruína uma certeza de passado que não há nem na memória nem no arquivo cinematográfico, como diz João Bénard da Costa na folha de sala que escreveu para acompanhar a filme de 2001, “É uma busca de espaços e tempos perdidos, reencontrados pelo cinema e graças ao cinema”. Espaços esses que a câmara pesquisa com vontade de neles encontrar a segurança de uma existência, uma testemunha de equivalente nível epistmológico. É esta, parece-me, a chave da auto-recoreografia oliveiriana, o desejo de encontrar um sinal presente dos eventos (e pensamentos, e desejos e tudo mais) do passado. Olha-se para o espaço presente e procura-se, na alvenaria ou no bronze, um sinal de um tempo, perfurado pela continuidade dos sítios.
A este propósito o final de Porto da minha Infância é particularmente significativo, já que o último plano do filme, sobre o qual correm os créditos retrata o Farolim de Felgueiras, o mesmo que abre Douro, Faina Fluvial. Como refere Iván Álvarez, Oliveira ao encerrar o seu auto-retrato urbano, encontra a imagem fundacional da sua obra. Mas talvez sejam as palavras de João Bénard da Costa que melhor esclarecem esta recorrência:
Se a luz do farol indica aos que navegam no mar a entrada do porto, a luz do cinema — quando cinema é tão grande como é o cinema de Manoel de Oliveira — indica aos que navegam no tempo e na vida, como é possível não nos perdermos nem no tempo nem na vida.
O farolim funciona como marca orientadora, sinal supremo de existência, de passado e da circularidade do tempo. Confirmação da intemporalidade que só o cinema consegue construir.
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Porto da Minha Infância é exibido na Cinemateca Portuguesa — Museu do Cinema no dia 17 de Novembro na sala Luís de Pina pelas 18h30 no âmbito das sessões Linha de Sombra que destacam o lançamento, na livraria situada no Espaço 39 Degraus da Cinemateca, do livro Documenting Cityscapes, Urban Change in Contemporary Non-Fiction Film, do referido investigador e crítico Iván Álvarez (da revista digital galega A Cuarta Parede).