O Porto/Post/Doc está de regresso entre os dias 26 de Novembro e 4 de Dezembro, com a sua terceira edição. O festival, que decorre nos habituais locais da baixa do Porto – o Teatro Municipal Rivoli, o Cinema Passos Manuel e o Espaço Cultural Maus Hábitos – continua a sua missão de dar a conhecer obras na vanguarda da exploração dos limites entre a realidade e a ficção, sob o seu lema “as nossas histórias são reais”. Se o género do documentário atravessa uma fase de renascimento, muito se deve à profusão de obras que através de diversos formatos experimentais e re-apropriação de estruturas estabelecidas, colocam em causa a definição de filme documental e questionam constantemente a percepção da realidade pelo espectador. Se a qualidade mais associada ao documentário tradicional é uma qualquer aproximação à realidade (mais até do que uma presunção de verdade), neste período “post doc”, o novo documentário parte dessa suposição tradicional para apresentar a realidade como algo subjectivo, como se fosse cada vez menos credível ou incontestável.
A mostra de filmes que melhor exemplifica esta mudança concentra-se no programa da competição, mas o âmbito do festival alarga-se para além dessa secção. Este ano o festival apresenta uma retrospectiva integral do cineasta brasileiro Eryk Rocha, filho de Glauber Rocha, que ao atravessar as últimas décadas da história recente do Brasil, regista as metamorfoses da sociedade. O festival dedica também uma retrospectiva ao Sensory Ethnography Lab, um inovador laboratório de documentários da Universidade de Harvard. Além disso, há ainda tempo para confirmar a forte ligação do festival à música, com alguns concertos e documentários, entre os quais Gimme Danger (2016) de Jim Jarmusch sobre The Stooges; o fascínio do festival pelo mundo da moda revelado em edições anteriores na secção Doc is The New Black, com um retrato de John Casablancas, criador da agência Elite Model em Casablancas, l’homme qui aimait les femmes; e a continuação do programa Working Class Heroes: Lionel Rogosin, retrospectiva lançada no ano passado em colaboração com o À Pala de Walsh, com a exibição de Good Times, Wonderful Times (1966), um manifesto anti-guerra e anti-apatia, actual como nunca.
Tal como nas edições anteriores, a selecção de filmes da competição incide em vários realizadores ainda relativamente desconhecidos, a deixar em aberto a possibilidade da descoberta de novos talentos. Este ano a competição inclui três filmes portugueses, entre os quais alguns dos filmes mais aguardados: Eldorado XXI (2016) de Salomé Lamas (exibido já no Festival de Berlim, Viennale e MoMa), um estudo envolvente sobre uma remota aldeia mineira no Peru, a 5500 metros de altitude; Ama-San (2016) de Cláudia Varejão, filme vencedor da competição portuguesa no último DocLisboa, uma obra que retrata uma tradição milenar de pesca por mergulho executada só por mulheres, numa vila piscatória no Japão; e Tarrafal (2016) Pedro Neves, uma viagem até ao Bairro S. João de Deus no Porto, que incide sobre a vida das pessoas que habitam no bairro. Entre os restantes filmes em competição, destaque para: Under The Sun (Debaixo do Sol, 2015) de Vitaly Mansky, realizador russo que se deslocou à Coreia do Norte para filmar o que lhe era permitido, ou seja, a ficção apresentada pelo regime para o resto do mundo, mas que ao mesmo tempo nos mostra o que acontece no intervalo dessa ficção, num exercício de desmontar o filme que lhe era proposto; Bangkok Nites (Noites de Bangkok, 2016) de Katsuya Tomita, exibido no Festival de Locarno, promete uma imersão de três horas no universo nocturno de Bangkok e as suas personagens surpreendentes; Ascent (Ascensão, 2016) de Fiona Tan, também apresentado em Locarno, é um singular exercício visual, ao construir um filme apenas através de fotografias (mais de 4000), sobre uma viagem poética ao Monte Fuji; Mimosas (2016) de Oliver Laxe, vencedor do prémio da Crítica no Festival de Cannes, conta a história de uma expedição que acompanha um velho e doente xeque através do deserto marroquino, para que este possa morrer perto dos seus, numa corrida contra a morte; e Tales of Two Who Dreamt (Histórias dos que Sonharam, 2016) de Andrea Bussmann e Nicolás Pereda, exibido no Festival de Berlim, sobre um prédio em Toronto onde vivem centenas de famílias de imigrantes ciganos, e as suas vidas em suspenso enquanto preparam respostas ensaiadas e criam uma ficção sobre o seu passado para as entrevistas de concessão dos visto de residência. Finalmente, existem ainda outros filmes que chegam ao Porto com a cotação em alta: Les Sauteurs (Aqueles que Saltam, 2016) de Abou Bakar Sidibé, Estephan Wagner e Moritz Siebert, vencedor do prémio do Júri Ecuménico em Cannes, sobre a zona de fronteira entre Marrocos e a cidade espanhola de Melilla, onde migrantes africanos procuram um caminho para a Europa; e Kékszakállú (2016) de Gastón Solnicki, vencedor do prémio da Federação Internacional de Críticos no Festival de Veneza, que é um invulgar retrato de letargia espiritual que incide sobre várias raparigas no limiar desamparado da entrada na vida adulta.
Um dos grandes destaques do festival é a retrospectiva dedicada à cinematografia do realizador brasileiro Eryk Rocha, filho de Glauber Rocha, nome incontornável do cinema brasileiro. É uma herança pesada que o próprio Eryk Rocha enfrenta desde logo com o seu primeiro filme, o documentário Rocha que Voa (2002), uma biografia sobre a obra e influência do legado de Glauber Rocha. Utilizando as próprias palavras do pai, retiradas de uma entrevista, para comentar as imagens de arquivo e de filmes de Glauber que Eryk organiza como se tratasse de um longo vídeo-ensaio, estabelece-se o percurso de uma vida. É um filme com uma componente sentimental pelo testemunho das pessoas que foram próximas de Glauber e pelo impacto que este deixou, porque também é o retrato de um filho à procura de memórias do pai, mas sempre sem perder de vista um compromisso político e uma forma de pensar a vida. Se Glauber Rocha se confunde com a história do cinema brasileiro, esse é um tema que Eryk Rocha regressa no seu mais recente filme, Cinema Novo (2016) – o filme de abertura do Festival e que contará com a presença do realizador – sobre o movimento que teve em Glauber Rocha um dos principais autores. O filme, que ganhou o prémio para melhor documentário exibido este ano em Cannes, é uma justa homenagem ao legado desse movimento, e recupera a importância e possibilidade de um cinema eminentemente político e social. Uma belíssima composição visual a partir de imagens dos filmes do Cinema Novo (a lembrar o filme de Thom Anderson apresentado na edição anterior festival, The Thoughts That Once We Had, 2015) e uma viagem-ensaio que utiliza a poesia das imagens para criar um encanto sensorial próprio apenas do cinema. O filme revela também algumas valiosas imagens e entrevistas de arquivo para contar a história do movimento, e tem pelo menos um efeito imediato, que é despertar a vontade de descobrir as obras evocadas – um deslumbre cinéfilo, a não perder [a Sabrina D. Marques escreveu em maior detalhe sobre o filme neste texto].
Eryk Rocha enfrenta também esse legado de activismo político com a sua própria intervenção em pelo menos dois dos seus filmes. Em Intervalo Clandestino (2006) Eryk Rocha continua a manipulação de imagens de arquivo para construir um retrato da política brasileira, durante a campanha para as eleições presidenciais de 2006. É um documentário sobre política, mas sem políticos, porque é na rua que encontra as pessoas que lhe interessa, e mais do que respostas, encontra dúvidas e inquietações sobre o estado da sociedade brasileira. Ao acrescentar declarações políticas gravadas a partir da televisão, Eryk Rocha distorce e joga com essas imagens para sublinhar o seu carácter artificial, quase surreal, que depois contrasta com imagens “reais” capturadas junto das pessoas na rua. É nesse trabalho de organização das imagens e no encadeamento das sequências que encontramos a voz de Eryk Rocha, no meio de todas as que surgem ao longo do filme. Com Pachamama (2008), Eryk Rocha parte numa viagem espiritual até à zona fronteiriça entre o Brasil, Bolívia e Peru e aos ritmos, sons e paisagens que ocupam esses cenários unidos por uma história partilhada. É o próprio Eryk Rocha que o afirma numa breve introdução: este é um filme inventado dia a dia, sempre em movimento, onde o guião é determinado pelo trajecto incerto do seu realizador. Pachamama é assim uma espécie de diário de bordo de uma viagem de auto-descoberta, que recorre a uma linguagem poética, à procura de respostas para a questão de identidade sul-americana, e à procura de repensar o Brasil através de outros povos. Este documentário é assim também sobre o próprio processo de filmagem ao longo desta viagem. Voltando às palavras de Eryk Rocha: “Faço cinema para descobrir quem sou eu. Para descobrir o que penso, e o que sinto”.
Para um cineasta tão ligado ao género do documentário como forma de expressão nas suas diferentes variantes, mesmo que por vezes espreitando os limites entre realidade e ficção, Transeunte (2011) surge como uma obra singular no percurso de Eryk Rocha. Esta é uma ficção com raízes estilísticas no documentário, onde a câmara é uma testemunha que segue a única personagem principal, de nome Expedito, um reformado sem ninguém, à medida que este procura preencher o tempo e refazer rotinas. Ao acompanhar de perto a forma como o solitário protagonista vê o mundo à sua volta através dos estranhos que passam por ele, o filme acaba por mimetizar a solidão que o cerca. A ausência de diálogos desloca a atenção para os sons do dia-a-dia, e os pequenos gestos assumem assim uma dimensão importante para revelar como Expedito se relaciona com a sua aparente invisibilidade. Um retrato pleno de humanismo e sensibilidade, coloca o espectador próximo de uma experiência única ao tornar-se cúmplice do filme na forma como este resgata um rosto anónimo e esquecido para o centro da atenção.
O outro grande foco do festival é o programa dedicado ao Sensory Ethnography Lab. Se o nome parece remeter para algo próximo da ficção científica, que o carácter experimental de alguns dos seus filmes parecem confirmar, estes procuram na verdade uma tentativa de aproximação total à realidade, numa interpretação sensorial que procura emular os diferentes impulsos visuais e sonoros de uma experiência. Leviathan (Leviatã, 2012) de Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel (sobre o qual escreveu o João Lameira aqui, e o Luís Mendonça aqui e aqui) será o filme mais conhecido deste movimento, e chega a ser por vezes um verdadeiro ataque sensorial ao espectador, tal é a multiplicidade de técnicas utilizadas. Mas é aí, nessa dedicação à estética, nesse terror sensorial, que reside o fascínio nesta experiência excepcional, em que os vários elementos conjugam-se para criar uma simulação do que será a vida a bordo de um barco piscatório. Do lado oposto, Manakamana (2013) de Stephanie Spray e Pacho Velez (sobre o qual escreveu o Carlos Natálio aqui), é próximo de uma meditação espiritual, ao retratar em plano fixo várias viagens de um teleférico que liga uma montanha a um templo nepalês. Ao filmar nesses planos fixos de dez minutos os vários ocupantes do teleférico nas viagens montanha acima, partilhamos da estranheza e acalmia dessa viagem, reflectida nos rostos dos viajantes, que por sua vez reflectem o seu olhar para o espectador, como se fossemos descobertos do outro lado de um espelho de dois sentidos. São dois filmes que no estudo da passagem do tempo revelam um fascínio pela efemeridade, pela mortalidade. Já os filmes da cineasta checa Jana Sevcíková, apresentados como escolhas de Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, revelam um profundo interesse pelo humanismo das suas personagens. Opri Zebrík O Nebe (Escada Encostada Ao Céu, 2014) é resultado de um longo trabalho de estudo sobre uma pequena aldeia eslovaca onde um padre dirige um refúgio para os abandonados pela sorte – pela sua militância formal é próximo dos filmes de Frederick Wiseman, com a diferença que aqui a câmara é também uma confidente.
Uma nota final para uma pequena primeira obra que pode ser a surpresa escondida do festival, mas que arrisca-se a passar despercebida já que será exibida apenas uma vez, ao mesmo tempo que o “peso-pesado” Gimme Danger. Da norte-americana Anna Rose Holmer, The Fits (2015) é uma ficção que assume a forma de documentário para apresentar um retrato social e realista de um centro comunitário, num filme que ameaça caminhar para uma fantasia no final, num percurso que parece inevitável. É uma composição enternecedora sobre uma solitária rapariga de 11 anos que treina boxe com outros rapazes, enquanto as raparigas da equipa de dança olham para os rapazes através da janela para o ginásio. Deslocada entre dois mundos, à medida que aproxima-se do grupo de raparigas que inveja, começa a perder o seu espaço próprio. Quando se vê do outro lado da janela, a observar o seu antigo reduto de treino, vê o seu mundo invertido, porém é só o principio do mistério – é a realidade a intrometer-se na ficção.
Não faltam motivos a justificar uma visita a uma sala de cinema no centro do Porto nos próximos dias: a programação de 2016 do Festival integra cerca de 100 filmes de 31 países, sendo que 3 serão apresentados em estreia mundial, 3 em estreia europeia e o Festival terá um total de 39 estreias nacionais. A programação diária do Porto/Post/Doc está disponível neste link.