Muito conhecida por acolher desde há vários anos os festivais IndieLisboa e DocLisboa, a Culturgest tem, desde 1993, proporcionado aos cinéfilos lisboetas dezenas de ciclos de cinema, para além de espectáculos de teatro, dança e música. O Grande Auditório foi o local de sessões memoráveis como a projecção de Maria do Mar (Leitão de Barros, 1930) com acompanhamento musical de Bernardo Sassetti, interpretado ao vivo (quem viu, nunca mais esqueceu a imagem da orquestra inteira desaparecendo lentamente no fosso motorizado), as retrospectivas de cinema árabe e africano organizadas por António Loja Neves, os ciclos de cinema asiático programado por Augusto M. Seabra, ou mais recentemente, todo o cinema experimental seleccionado por Ricardo Matos Cabo.
Escola de cinefilia que complementou e estendeu o que se podia ver na Cinemateca, a Culturgest também foi o cenário de uma das minhas memórias preferidas de uma sessão de cinema. Em Outubro de 1995, os Art Zoyd acompanharam uma projecção do Fausto (1926) de F.W. Murnau no Grande Auditório. Pouco depois de começar o filme-concerto, uma figura esguia correu escadas abaixo até ao palco e tentou derrubar os sintetizadores enquanto gritava o mais alto que podia: “Stop! No music! Quero a minha maçaroca: fui enganado!” Uma parte da plateia aplaudiu, a outra assobiou, e a pequena figura, estranhamente parecida com o Nosferatu do mesmo Murnau, foi docemente conduzida para a saída pelos assistentes de sala. A música electrónica dos Art Zoyd nunca deixou de tocar (lá se ia o sincronismo com o filme se parassem) e a sessão continuou. Mesmo quem não assistiu ou nunca ouviu contar esta história adivinha facilmente de quem se tratava: era, claro, o grande João César Monteiro.
“Stop! No music! Quero a minha maçaroca: fui enganado!”
Américo Firmino lembra-se perfeitamente desta história e não consegue parar de rir quando falamos disto. É o Coordenador Audiovisual da Culturgest desde 1993, nosso anfitrião nesta visita. O percurso de Américo é muito diferente do dos seus colegas que entrevistámos até agora. Ao contrário deles, Américo nunca trabalhou como projeccionista profissional. Foi fotógrafo, cineasta amador premiado e autor de dois documentários inacabados: um sobre os moinhos de maré do Seixal e outro sobre Jorge Palma, com apoio da FPCA (Federação Portuguesa de Cinema e Audiovisuais), interrompido após um ano de rodagem. Era um projecto pensado ao estilo do “cinema directo”, conta Américo, muito influenciado pelos célebres Ateliers Varan, que alguns amigos seus tinham frequentado em Paris. Trabalhou ainda nos festivais de cinema da Figueira da Foz e de Tróia.
A partir de 1980 fez vários cursos no FAOJ (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis), incluindo um de projecção de cinema. Cumpriu o serviço militar no CAVE (Centro de Áudio-Visuais do Exército), trabalhando no arquivo fílmico e fazendo revisão de cópias para as sessões semanais recreativas dos quartéis de todo o país. Saiu da tropa com o curso de cabos projecionistas, mas depressa retomou a sua antiga ocupação profissional: a electrónica naval, mais concretamente a certificação de sistemas de navegação por satélite. Nesse período viaja muito e trabalha frequentemente embarcado, em saídas de teste.
Em 1989 entrou para o Teatro Nacional de São Carlos como técnico de som e imagem, sendo destacado para a Companhia Nacional de Bailado durante alguns anos. Dali saiu em 1993 para acompanhar a fase de instalação da Culturgest, sendo seu Coordenador Audiovisual desde então. Ao longo destas mais de duas décadas trabalhou com vários programadores de cinema (entre os quais, António Loja Neves e Augusto M. Seabra) e sob vários directores técnicos (Eugénio Serra e Paulo Prata Ramos) e artísticos (António Pinto Ribeiro e Miguel Lobo Antunes).
Começamos a visita às cabines pelo Grande Auditório. Aberta uma discreta porta de madeira no piso 2, entramos num espaço amplo, impecavelmente arrumado, mas apinhado de material. Os indicadores luminosos nas racks de equipamento electrónico que cobrem as paredes de alto a baixo, os computadores e os monitores de imagem por baixo das vigias para o auditório fazem pensar numa régie de televisão. Américo Firmino nomeia, orgulhosamente, todos os formatos de projecção que esta cabine pode passar: película (16 e 35mm), muitos (mas muitos, mesmo!) tipos de vídeo, e cinema digital. Pela película responde um Kinoton FP38 cujo sistema de pratos horizontais substitui agora um segundo projector, transferido em 1998 para o Pequeno Auditório. Américo explica como a instalação dupla se relacionava com a preocupação de projectar adequadamente cópias de arquivo (cujas bobines não podem ser montadas) e cinema mudo (razão pela qual estas máquinas têm variadores de velocidade de projecção). As passagens entre bobines eram uma arte, recorda Américo, que exigia atenção e perícia. As ante-estreias e as sessões especiais acabaram por levar à instalação dos pratos, maneira mais prática, já sabemos, de projectar filmes inteiros. Uma enroladeira eléctrica, um conjunto completíssimo de adaptadores para vários tipos de encaixe de bobines e uma mala de lentes (incluindo uma anamórfica para 16mm) complementam este Kinoton. Actualmente, confirma Américo, a projecção em película é residual e a maior parte do trabalho é feita com outros dois projectores: um Barco RLM-W14 (para vídeo) e um projector de cinema digital 4K (um SONY Cinealta SRX-R320, com servidor e media block integrado). Estes dois projectores estão ligados a um conjunto de leitores vídeo que parece saído de um arquivo de televisão ou de uma cinemateca, tão diversificado é o número de suportes, tanto correntes como obsoletos, que aqui podem ser lidos: DVCam, Betacam, VHS, S-VHS, Hi-8, U-Matic, etc. (a lista continua aqui e inclui tanto os DCPs lidos pelo SONY 4K como muitos outros formatos de ficheiro digital; e claro que existe outra lista para os formatos de som…). Leitores, conversores, amplificadores e equalizadores, mesas de mistura e projectores estão interligados e podem ser controlados a partir de um pequeno ecrã táctil que comuta fontes, sinais e saídas de imagem e som – para além de gerir as luzes da sala, as máscaras motorizadas do ecrã de cinema, a abertura e fecho das cortinas de cena, e até o próprio aviso sonoro de aviso de sessão.
A disponibilidade de Américo Firmino levou-nos, de seguida, à cabine do Pequeno Auditório, onde nos mostrou e descreveu os projectores de vídeo SONY SRX-R310 e Barco IQ350 e o par do Kinoton que víramos antes no Grande Auditório, para além de uma nova bateria (embora não tão completa) de leitores de vídeo, conversores e amplificadores (tudo descrito aqui). Mais pequena e em forma de corredor, esta cabine tem duas características únicas: o guincho eléctrico usado para carregar as grandes bobines de película no Kinoton (4000m de filme pesam várias dezenas de quilos); e uma grande parede de vidro que torna o trabalho do projecionista, pelo menos nesta cabine, um pouco menos anónimo.
A visita termina no palco do Grande Auditório. Apesar do corrupio da montagem de um novo espectáculo, Américo pede que seja descido da teia o ecrã de cinema. Atrás de mim, as cortinas abertas ao fundo do palco deixam ver um dos vários jardins interiores do quarteirão da CGD e a grande chaminé, memória da oitocentista Fábrica de Cerâmica Lusitânia que antes ocupava este mesmo espaço. Caminho na direcção oposta, até ao limite do palco, mesmo por cima do fosso motorizado, para ver toda a plateia: o ponto de vista dos filmes, dos actores e dos músicos. E tento imaginar o que teriam pensado os Art Zoyd quando viram o João César Monteiro a correr na sua direcção.
Fotografias de Mariana Castro
Agradecimentos: Américo Firmino, Paulo Prata Ramos e Francisco Frazão