Opor ao relevo do teatro o liso do cinematógrafo. (R. Bresson)
O filme começa com uma panorâmica sobre extensas colinas de carvão, de um negro arroxeado, onde apenas subsistem uns raquíticos tufos verdes. No meio deste nada, uma casa. Não se acredita que possa ali viver alguém.
Dentro de casa, sentada frente à janela, uma mulher reza o terço… Há um pequeno crucifixo na cómoda por trás dela – por todos os poros do grão do 16mm passa sofrimento. Um menino no reflexo dum vidro da porta / um bebé a chorar / uma mulher loira, em camisa de noite, sentada de costas na cama – julgamos por um momento tratar-se da Wanda do filme / pega na criança ao colo e vai para a cozinha / um homem vai para o trabalho, sem palavra e sem café, bate a porta e sai… vê-se então, a dormir no sofá, uma mulher toda tapada, só com uma perna nua de fora. O cabelo muito louro de Wanda aparece debaixo do lençol. Acorda, muito lenta (o choro da criança… o barulho das escavadoras) e apoia a cabeça na mão: “Está chateado por eu estar aqui”. E, “o filme começa” no grande plano de Wanda, de cara deitada na almofada, ensonada ou acordada, sem vontade para aquela casa, para aquela família, para a luz agressiva do dia, para a paisagem desolada e as escavadoras que abocanham os montes de carvão. Senta-se – o soutien preto – no emaranhado daquilo tudo, emaranhado como o do cabelo repuxado por um elástico.
A montagem é semelhante à escolha que faz a morte dos actos da vida, arrumando-os fora do tempo. (P. P. Pasolini)
Na sequência seguinte, um plano muito largo sobre a paisagem negra das minas. Duas chaminés altíssimas. Uma minúscula figurinha branca ao longe. Wanda já não está a olhar para a paisagem, está dentro da paisagem.
Corte seguinte: um carro aos solavancos por baixo de uma ponte / Uma fábrica / Um homem (Goronski) avisa um colega que tem que ir ao tribunal e vem mais tarde / Wanda, de rolos na cabeça, pede algum dinheiro a Tony (um velho que anda a vasculhar no carvão). Wanda apanha uma camioneta vazia, senta-se lá atrás. Na sala de tribunal, onde chega atrasada, ainda de rolos, de cigarro na mão, não olha uma vez sequer para os filhos ou para o marido que tinha acabado de a achincalhar publicamente. Quando o Juiz lhe pergunta se abandonou os filhos e o marido, responde: “Listen Juge, if he wants the divorce just give it to him”.
Nestes primeiros cerca de quinze minutos de filme, quase mudo, sempre perto e à distância – espantoso trabalho de câmara de Nick Proferes – foi dito quase tudo do “não-dito” que é Wanda (1970). Já sabemos que the lady is… “just no good”.
Mas, ao mesmo tempo, já estamos totalmente dentro do silêncio de Wanda/Loden. Desde os grandes planos do sofá, vai-se esgotando “tudo o que se comunica pela imobilidade e pelo silêncio” e transformando o que é duro e bruto numa oferta terna e subtil, o que é feio numa coisa bela… e a ignorância em conhecimento. Sabemos que Wanda é a única que tem razão, os outros é que estão errados.
Ficaram poucos traços da vida de Loden. Do passado de Wanda Goronski, Barbara Loden também não nos deixa muitos traços. Filme e vida, sem linhas de fuga.
Barbara Loden, nascida em 1932 num bairro pobre em Marion, Ohio, foi para Nova Iorque aos 18 anos, “Queria ser artista para que a vida fizesse sentido” (Proferes). E, depois do Actor’s Studio e dos palcos, Kazan reparou nela e deu-lhe um pequeno papel em Wild River (1960) e, wild foi-o logo a seguir, na época de Splendor in the Grass (1961), num magistral papel – lembram-se de Ginny, a irmã rebelde e mal comportada de Bud (Waren Beatty), que servia de mau exemplo para tirar o diabo do corpo a Natalie Wood? Kazan, que acabou por casar com Barbara Loden em 69, disse nas memórias: “Ela põe-me fora de mim, mas respeito-a porque ela não esconde nada.”
Neste filme, o único que Barbara Loden realizou, e único no panorama do cinema independente nova-iorquino dos anos 70, não precisamos de muito para entender a sobreposição Loden/Wanda. “Normalmente há uma distância entre a representação e o texto, entre o sujeito e a acção. Neste caso, essa distância está completamente anulada, há uma coincidência imediata e definitiva entre Barbara Loden e Wanda” (M. Duras). Acredito que Barbara Loden é, na verdade, mais ela no filme, que o terá sido na vida, um perfeito milagre.
Um road movie? White trash? Fábula de um casal de gangsters? Cinema experimental? Documentário? Cinema vérité? Retrato da condição precária da mulher na América dos anos 70? Um filme de losers? O que faz deste filme tudo isso e nada disso? Tudo e outra coisa.
Quando o compararam a Bonnie and Clyde (1967), Loden explicou: “Escrevi o guião 10 anos antes desse filme. Não me interessou o filme de Arthur Penn porque não era realista e ele dava imenso glamour aos personagens… Gente assim nunca se podia meter em tais alhadas nem levar uma vida daquelas. Eram bonitinhos demais… Wanda é anti-Bonnie and Clyde”. Segundo Loden, a ideia do filme veio-lhe ao ler num jornal uma história de uma rapariga (Wanda Goronski) que tinha sido cúmplice num assalto e foi condenada a vinte anos de prisão… Quando o juiz leu a sentença, ela limitou-se a agradecer. Na espantosa cena em que se vê explorada pelo patrão e depois despedida, sob o pretexto de ser “too slow”, Wanda cala-se e, depois, agradece.
A ideia de viagem pressupõe em si uma direcção, um destino, uma ideia de deslocação. Wanda não se move. Tudo nela é inteiro e fixo do primeiro ao último plano. Essa mesma estranha fixidez que treme no olhar de Marilyn… à deriva, justapondo-se às coisas. Wanda é, antes de mais, um filme sobre a Mulher no mais profundo sentido, no sentido da lógica do “tudo” e do “não tudo” – o ser que recebe, que acolhe, que espera ser dirigido – e isto não tanto no sentido pigmaliónico, em que é o homem que molda a rapariga para fazer dela “alguém”. Wanda é uma espécie de ilha flutuante, como o foi Delos na mitologia grega. Só que não houve ninguém que soubesse ver nela o que dela vinha, ou que fosse capaz de a agarrar, como aconteceu à ilha de Apolo quando as raízes a prenderam ao fundo do mar.
Mas, voltemos ao filme. Quando Wanda sai daquele sofá emprestado pela irmã e pelo cunhado, corta o último laço com a família, com o passado. Nas próprias palavras de Loden, “Ela na verdade quer largar tudo. Não sabe o que quer, mas sabe o que não quer”. Acaba por fazer aquilo que lhe parece melhor: sair dali… daquela existência miserável, mas não sabe como isto se faz. A vida para ela é um perfeito mistério. Não é capaz de tratar dos filhos, de manter o trabalho, deixa-se enganar, roubar… Wanda não tem nada. Sem saber o que fazer, atrela-se ao primeiro homem que lhe aparece para acabar sozinha, largada no meio da estrada, como um cão. Resigna-se, consente – o tal consent de que falava Melanie ao homem, sem uma perna, que o The River (O Rio Sagrado, 1951) do Renoir tinha trazido.
Mesmo desconfiada e meio apática, a relação que estabelece com Mr. Dennis está longe de ser passiva. Na noite em que o encontra, é ela que se impõe, e não ele que a engata. Mal ela entra no bar ele enxota-a: “We’re closed”. Mas ela empurra-o, avança por ali a dentro e não arreda pé. Consciente disso ou não, desta vez é Wanda quem o escolhe para companheiro. Quando, no meio de uma série de coisas que Wanda engendra para ganhar tempo, diz: “Não tens um pente, ou assim?” (mais uma vez o cabelo de Wanda…) já Mr. Dennis, não sabe o que fazer dela. E, no fim, antes de saírem, é Dennis quem diz a palavra “us”: “Let’s go!”
Na cena seguinte, no jantar de esparguete, são já “um casal”. Depois da cama, ele mostra-se irascível e pouco disposto a perguntas idiotas –“Mr. Dennis, don’t you wanna know my name?” – por mais irritado que Mr. Dennis se mostre, não há volta a dar. E irritado se mostra, depois na cena do carro roubado, quando Wanda encontra as chaves, enquanto ele tenta desesperadamente fazer uma ligação directa.
Depois, o jornal com o relato do roubo… o sorriso secretíssimo de Mr. Dennis quando Wanda lê a parte do “casal” em fuga…
É no encontro com o pai, numa visita às catacumbas, que se percebe que tudo o que Mr. Dennis procura é a aceitação do pai que recusa receber o dinheiro sujo do filho. E então, vem o plano do roubo grande demais para eles… já lá vamos.
Não corras atrás da poesia. Ela entra pelas junções (elipses). (R.Bresson)
Vamos, antes disso, àquele momento em que o acaso e a felicidade parecem andar a par. Michael Higgins (Mr. Dennis) disse uma vez, a propósito do filme: “Nunca tive antes, nem depois, uma tal experiência de liberdade”. Explicou, doutra vez, que no outro lado do campo aberto em que filmavam, estava um homem com o filho a brincar com um avião de controle remoto. Barbara disse-lhe: “Consegues fazer alguma coisa com aquilo?”. “Claro que sim!”
Trata-se da belíssima cena passada numas badlands onde o casal, com o carro parado, está a comer e a beber cerveja, numa paz relativa, sob um céu ácido. Aparecem uns cães vadios por ali… A uma dada altura Mr. Dennis afasta-se do carro e quando volta tira o casaco para o pôr nas costas dela – “the sun is going down”. Mr. Dennis olha muito para ela, para aquele cabelo: “Your hair looks terrible”, expressão que em tudo contradiz o seu olhar. Continua… “Devias usar um chapéu”. Mr. Dennis chama-lhe “estúpida” porque Wanda diz que não tem dinheiro para chapéus – “if you don’t have money, you’re nothing! You’d better be death”. “Ser nada”, que importa isso a Wanda? No auge desta cena de ténue ternura e de ‘segredos’ desvelados, Mr. Dennis salta para cima do tejadilho do carro e desata a acenar para o avião no céu “Come back! Come back!”… depois, do sono dos copos a mais, Wanda não consegue arrancá-lo. Fica só o frio do sol deposto. Os cães vadios.
Na cena do assalto ao banco, Mr. Dennis força-a a participar numa coisa que ela “não consegue”. “Listen to me. Wanda. Maybe you never did anything before. Maybe you never did. But you’re going to do this!” Mr. Dennis dirige-a, no verdadeiro sentido do termo, como se dirige um actor – por trás dela, agarra-a pelos ombros e fala-lhe baixinho. Um plano mostra que eles estão ao espelho e que ele está a falar também para si próprio. (Kazan, segundo Barbara Loden, também a convenceu a fazer o filme. E, o acaso quis que o fato castanho que Higgins usa na cena, fosse um fato do próprio Kazan e que um fotógrafo, uma vez, o tivesse apanhado, durante um ensaio, precisamente naquela posição, a dirigir Loden.)
No princípio do roubo “she did good”, mas estraga tudo quando é retida por um polícia, no trânsito. Nós sabemos, mas ela não sabe que a morte de Mr. Dennis foi só por culpa dele: falha no cálculo dos tempos e pura teimosia (antes levar um tiro do que voltar para a cadeia).
E, depois da morte, a inquietude, um sobressalto interior. O filme parece deslizar para outro tom. Pela primeira vez, Wanda defende-se, bate-se para escapar dos braços do militar que a quer possuir à força. Foge espavorida no meio de uma paisagem escavada, insólita e nua como a do início – terra sempre deserta, mas agora branca.
E fica tanto para dizer deste filme. Aquele cinema encarnado e vazio onde Wanda, no descaminho, entra e se deixa dormir – no écran Raphael e aquela inacreditável Ave Maria; a saída a meio da noite para ir buscar hamburguers a Mr. Dennis que lhe prega uma estalada à chegada e a descompõe por causa da mixórdia das cebolas; os vómitos de Wanda quando é ‘empurrada’ para o assalto ao banco; as roupas e o batom atirados pela janela fora: “enquanto estiveres comigo, só usas saias!”… Daí para o vestido, os sapatos, o chapéu/lenço florido – toda muito de branco… muito de noiva? Os imensos olhares de Wanda: para os outros, para os manequins nas montras, para Mr. Dennis, contorcido pelas enxaquecas, e mais que tudo, aquele imenso olhar para a morte de Mr. Dennis que não vemos, senão na expressão dela.
Se Wanda tivesse, ao menos uma vez, chegado a dizer o nome de “Mr. Dennis”…
Barbara Loden, não quis o acaso, que voltasse a filmar (foram-lhe encontrados imensos guiões escritos). Não quis o destino que desempenhasse o papel em que ia fazer “de si própria”, no filme seguinte de Kazan, The Arrangement (O Compromisso, 1969) – baseado na vida de Kazan com Loden –, ao lado de Marlon Brando. Partida do destino, e o arranjo foi outro: foi Bonnie (Faye Dunaway) que lhe ficou com o papel e com Kirk Douglas em vez de Brando.
Na última sequência, no bar, au hasard, no meio de estranhos, “vi” Balthazar, tão só, tão perdido, no meio das impávidas ovelhas, lembram-se? Wanda, de cabeça baixa com o cigarro na mão, um gesto que se prende com qualquer sinal de eternidade. No longo silêncio desta imagem de compaixão infinita, fica, como no início do filme, a história que poderia começar: Era uma vez a solidão…
Rita Azevedo Gomes
O texto que reproduzimos, com a autorização da autora, foi publicado originalmente no Jornal dos Encontros Cinematográficos 2013, publicação do festival de cinema do Fundão Encontros Cinematográficos. O À pala de Walsh entrevistou o director do festival, Carlos Fernandes, em Março de 2014. Agradecemos à realizadora Rita Azevedo Gomes e aos organizadores dos Encontros esta oportunidade.